Dá-me um abraço! Deixa-me tatear nos teus beijos. Agarra-me as mãos e escreve com elas um poema que toque nas estrelas. Dá-me um abraço para que os teus dedos sejam asas e eu voe com eles. E, quando chegada ao mar, possa atirar-te às minhas noites. Dá-me um abraço. E avisa-me quando chegares. Antes que partas, dá-me um abraço. Depois, só depois, é que te deixo tomar um café. Sem açúcar para que procures o meu corpo. E te adoces nele. Dá-me um abraço. Entra nos meus braços. Embriaga-te com o perfume que um dia escolheste para mim. Dá-me um abraço como se eu fosse a primavera onde buscas as andorinhas. Onde colhes as papoilas. Rasga-te nelas. Adormeçamos na decomposição da cor. Dá-me um abraço. Espreita o meu lado inacabado. Corrige-o como se estivéssemos na escola. Ri, mas dá-me um abraço. Agora podes olhar em teu redor. Podes, se fores capaz de perceber a felicidade que brota de mim. Dá-me um abraço! Se ficares feliz assim. Dá-me um abraço. Um copo de sangria sabe sempre bem. Dá-me um abraço antes que eu acorde e deixe cair o copo. Ou os braços. Abraça-me e lambe as feridas expostas pela melodia do dia. Enxota os pardais e deixa-me ouvir a canção que passa na rádio. Abraça-me. Decifra-me como se eu fosse uma folha em branco. Escreve-me para que me possas ler. Depois conta-me uma história. Sem alterar as palavras. Ou os planos. E estende-me uma narrativa aberta. Sabes que não aprecio fins determinados. Deixa-me ouvir sem pressas. Com repetições. Descobre frases para repetir. Há parágrafos que devíamos trilhar como se o caminho fosse esse. Abraça-me para que sejamos mais do que a história. Mas cala-te! Não canses as palavras. Liberta-as da voz egoísta do narrador. Gasta as tuas. Abraça-me mais uma vez. Depois mostra-me a fotografia. Para que eu recorde o princípio. Quando nos abraçámos com os olhos. Abraça-me! Para que eu celebre o momento.
Acordei, levantei-me e saí de casa com o silêncio na algibeira. Sobras de uma noite calada. Sem o incómodo da Lua. Acredito que, também ela, tenha dormido bem. Não a ouvi a ressonar. Nem consta que tenho caído da cama.
Só quero um café. Quente, sem açúcar. Essencialmente silencioso. Calado, mesmo. Na total adesão à crença de que chegaria para sair do sono que teimava em perseguir-me, lá fui.
Um carro não parou na passadeira. E fui premiada com uma alegre e ruidosa buzinadela, uma saraivada de sonidos. Parva e desnecessária. Eu parei. Irra! Esta gente não entende nada sobre o sono. Exibicionistas!
Persisti, determinada na aromática busca de um café. Sem tumultos. Na esplanada, vivia-se a guerra dos toques. Das vozes e da parvoíce assumida. As pessoas gritavam umas com as outras. Não deveriam conversar? Respeitar os silêncios?
Os telemóveis vociferavam com quem estava ao lado. Sem antes se terem prestado a uma feira de músicas. Vaidosos! Mal-educados! Eu tinha de ouvir um chorrilho de palavras malcriadas? Eram séries ininterruptas de vocabulário singular. Um telemóvel tocou. Insistentemente. E clamava que queria ser atendido. Urgentemente. O dono não parecia ouvi-lo. O assunto da mesa ao lado era-lhe caro. Foi para lá que virou a cadeira. Só que o zingarelho não se calou. Ufa! Que alívio! Tou? Tou? Sim, sou eu. E tu estás acordada? Estou na esplanada. E vieram as alarvidades todas. E o meu café não vinha. Pum! Um homem sentado no interior do café entusiasmou-se com o toque do seu telemóvel. Se calhar, há muito que não o ouvia. Entusiasticamente, não controlou as mãos. A chávena estatelou-se no chão. O pires foi atrás dela. Andavam cacos por todo o lado. Perguntavam-lhe se precisava de alguma coisa. Se estava bem. A esperança de beber um café no sossego do meu sono extinguia-se a cada instante. Estas coisas são mesmo assim. De fora para dentro, entrou um barulho danado. Seria anedótico, se eu já tivesse tomado café. Acredito que teria desatado a rir. E participaria no carnaval. Afastei-me do balcão, para facilitar a ruidosa limpeza.
Dois jovens conversavam animadamente. Gargalhavam. Enquanto exaltavam os feitos. Como não tinha bebido café, não consegui perceber se estavam a gabarolar-se de factos ou se terminavam os sonhos. Devem ter dormido bem, os senhores. Grosseiros! Burgessos! Ordinários! Tentavam falar de mulheres. Tentavam. Quase tive pena deles. Quase, só que a repugnância sobrepôs-se. No meio disto tudo, tudo foi mau. Nada estava bem. Nem podia. O meu café não chegava. Apenas os telemóveis duravam. Uns despiam a intimidade das pessoas. Outros exibiam vídeos burlescos. E havia os que cavaqueavam em alta-voz. Não fosse perder-se algum cochicho. O inevitável deu-se: alhos e bugalhos. Parvos! Não havia necessidade de tantos vulgarismos. Nem perceberam que eu ainda não tinha bebido café. Que praga! Custa assim tanto conversar com palavras limpas e asseadas? Os carros passeavam o roncar dos motores. A velha vociferava que ia perder o autocarro e acenava ao motorista, pedindo-lhe que parasse. Uma mota estacionou, sem que tivesse resistido a umas tantas habilidades que, sem café, não entendi. Decibéis a mais e exagero de roncos e fumarolas. Tanta barulheira evitável.
E dei por mim a pedir às pessoas que se calassem. Que estava assustada com a violência dos impropérios. Que não tinha nada a ver com a vida dos outros. Que tinha direito a beber um café. E acordar com o silêncio que trazia no bolso. Queria lá saber do homem que partiu a loiça ou da desgarrada dos telemóveis! Um café, apenas, please. Qual quê! Exaltaram-se as vozes. Umas mais do que outras. Que chatice! Tantos erros ortográficos naquela escrita esgoelada.
Fui-me embora. E dei por mim a pensar que as pessoas estão a ensurdecer. Coitadas! Só se ouvem aos gritos. Ou então é a vaidade que as move. Deve ser o exibicionismo que as faz falar assim. Ou não é nada disto. Berram para não se ouvirem. Para amortizar as alfinetadas da vida.
Esta gente anda sempre aos gritos. Talvez se deva à abençoada palmada recebida, sem pedir, ao nascer. De imediato, reivindicaram em alta voz o direito à vida. Sem se incomodarem com o sossego dos outros que também acabavam de chegar ao mundo. Uma questão de berço, só pode. E de hábito. De contágio.
Tomei um fabuloso e lindo café, duas ruas abaixo. Ao lado de meia dúzia de vasos com flores. Uns tantos metros de relva e algumas árvores. Suportei o zumbido das abelhas. O pipilar dos pardais. O melro, esse nem se atreveu a colocar a alegria do canto em alta-voz.
A noite chegara sem que elas a vissem. Foi por isso que Beatriz acabou por dormir lá em casa. Beatriz era a amiga e tinha um coração enorme. Sempre escancarado. Acordou cedo. Faltou-lhe a almofada em que gostava de adormecer os sonhos. As desgraças e os sorrisos do dia. Foi à cozinha. Tirou um café da máquina que estava em cima do balcão perto da janela. E saiu para a varanda. Ela e a chávena vermelha que tinha sido comprada numa velha loja de antiguidades. As duas perdiam-se por aquelas coisas. Velhas. Usadas. Com histórias gigantescas escondidas. Às vezes, gastavam horas a adivinhá-las. E riam tanto. Porque eram, quase sempre, narrativas de rir. E tanto rir, choravam. Só para rir outra vez.
- Aqui? Já?
A surpresa quase entornou o café. Jacinta, que mal dormira, ali estava. Desassossegada e sonolenta. Acompanhada e sozinha. Naquela manhã, precisava de companhia.
- Ficas?
Beatriz ficou. Agarrada à chávena, perguntou-lhe se estava bem. Claro que não estava, mas isso pouco importava.
Jacinta enrolou-se no roupão de seda. Olhou para longe como quem olha exatamente para lá. E começou a dizer. Beatriz não se atreveu a qualquer palavra. Mesmo pequenina. Ouviu.
Bastava uma personagem. E um espaço para que a narrativa se dissesse. Para que o tempo fosse outro. E a ação se encostasse ao rio. Até dispensava o narrador. Porque a história se dizia na primeira pessoa. Beatriz bebeu o último gole de café. Arrumou a cabeça. E olhou para longe. Como se procurasse o local onde a amiga se encontrava. Mas não chegou. Não foi capaz. Não sabia onde era. E a Jacinta não lhe indicou o caminho.
O dia mal tivera tempo de acordar e já o lago chamava por nós. E nunca um lago me doeu tanto. À sua volta, os pinheiros albergavam meia dúzia de aves. As que resistiam ao barulho das motas de água. E às sonoras gargalhadas que estavam guardadas nos cestos dos piqueniques que poisavam na relva que ficava no outro lado. Apenas uns metros de ervas. O resto era areia. Lembro-me que se ouviam os pardais, tordos e cotovias. E os melros que bebiam água na margem. Descaradamente. E a música tocava no bico dos pássaros. Ele ouvia. Eu ia tropeçando na alegria verde dos seus olhos. Pediu-me para dançar. Garantiu que aquela música não nos agasalhava. Tínhamos de ter uma só nossa. Porque merecíamos! E uma canção soou. Só nós a escutávamos. E queríamos tanto que aquela tarde fosse proibida de entardecer. Para que a noite não confundisse o dia.
O lago estendia-se por ali. Preguiçosamente, oferecia a água. As margens e o Sol. Tanto Sol. E fomos. De mão dada, entrámos na água. Arrepiámo-nos e sorrimos. Mergulhei e ele foi buscar-me com um beijo. Dois. E outros tantos. E os nossos corpos abraçaram-se numa ânsia louca de se amarem. Como se não estivesse ali ninguém. Como se nos afundássemos no momento. Eu retribuí com o meu amor todo. Com o meu medo todo. Que um espaço não se dissesse. Que o tempo não chegasse. Que a ação se afundasse no lago.
Beatriz escutava. Percebia a lágrima que escorregava pelo rosto da amiga. Enquanto o gato da imensa cauda amarela dormitava arrumado no tapete. Supostamente não conhecia a história. Supostamente.
Sabes, Beatriz, tenho tanto medo de molhar os pés. É o que sinto. Se não sentisse, serviria para alguma coisa? As gaivotas coloridas e sólidas enchiam o lago de alegria. E as pessoas tinham sorrisos gigantescos. Pareciam capazes de pedalar as suas dores como se fossem Sol.
Começa-se a ler um livro e pronto. A gente fica agarrada ao dito. Que dependência! Nem sei a razão. Porque sim. Ou nada. Ou porque o autor anuncia bem a coisa. Pode ter sido uma palavra. Uma frase. Talvez o título. A capa. Não sei ou já me esqueci. Nem preciso saber, certo?
Colei-me às páginas. Devorei frases, capítulos. E as personagens foram envelhecendo à minha frente. Tantos tropeços e tantos rios nos olhos. Gargalhadas e lágrimas de chorar. Outras de rir. Mas vivem comigo, como se fossem gente. Se calhar até são. Eu é que não as conhecia antes. Vou andando com elas assim. Para as conhecer melhor. Tenho cá um palpite que isso nunca irá acontecer. Levo-as ao colo. Em abraços pesados. Até aos ossos é que sabem bem. Mesmo que se embargue a voz. Mesmo que não consiga fechar o livro ou que os olhos passem a ser água em abundância. Gostei tanto de as ter conhecido! O narrador é um chato. Deixo o aviso. Finge uma distância que não tem. Uma imparcialidade que não consegue. Deve ser por isso que está sempre a disfarçar ser outro. Enche-me de perguntas. O problema coloca-se, porque nem sempre tenho a resposta para lhe dar. Depois fico a pensar no assunto. Às vezes, no dia seguinte, ainda ando a cogitar no mesmo. E nem sempre gosto de festejar certas coisas. O autor nem se atreve a aparecer. Depois de expulsar o livro do útero, não o desejou mais. Diz que já não lhe pertence, que é do leitor. Que criancice, linda. Como se eles se pudessem separar. Eu acredito que os autores têm uma relação quase narcísica com os narradores. Espelham-se. Amam-se e odeiam-se. Querem-se tanto que, quando se desligam, choram. E grita o autor com o leitor, desenrasque-se que eu já fiz o que tinha a fazer. E continua a fazer, senhor autor.
E leio página a página com a mesma ganância com que roubava os caramelos que a minha avó trouxe de lá. Foi numa excursão, contava. E ria-se tanto que acabava sempre a chorar. O pior, ou melhor, não sei, é que eu acabava também a chorar. E ela afiançava que todos tinham comprado caramelos para adoçar os dias. E esperançávamos juntas. A minha avó está longe. Há muitos anos que não estou com ela, mas conversamos. Apesar da distância. O céu fica tão longe!
À minha frente, as personagens estatelam-se no chão ou no amor que, por vezes, é quase o mesmo. E a gente chora sem motivo ou por milhões deles. Confundimo-nos nas suas vidas. Percorremos os seus lugares. Agarramos as suas lágrimas como se fossem nossas. Na verdade, o que eu quero mesmo é entender que desgraça é aquela. Como vai tudo acabar. Resisto. Asseguro que, desta vez, não fui à última página. Não fui, mas custou-me um pouco. E se a narrativa for aberta? Vou ficar assim, sem saber nada? Não, não pode. E chego a pensar que me vou arreliar a sério com o narrador. Ou será com o autor? Eles mentem tão bem. Não a quero fechada. Que indefinição, a minha. Que teimosia a deles. Fecham a vida das personagens como se fecha um livro. Há casamentos e tudo. Para pior, bastam os funerais. Não gosto nada, declaro. Isso força-me a pensar no meu. Depois de morrer, quero lá eu saber. Vou para o céu e pronto. Não volto mais. Ignoro se as personagens morrem de morte desgraçada ou porque se acaba o prazo. Isto de estar fora do prazo de validade é mesmo uma maçada. Leva-nos às lágrimas vezes sem conta. A vida tem termo certo, não tem? Ou será que a inspiração do autor também morreu? Como a minha avó que gostava de ir comprar caramelos. Talvez não tenha mais páginas em branco para escrever. É tão bom ter uma folha de papel em branco! Ou uma parede que é bem maior. Mas não dá jeito nenhum. Mas consegue-se sempre. Não sei se vou experimentar. O que é mesmo obrigatório é um lápis. Há lá coisa melhor para escrever! Será que o autor escreve com um lápis? Ou é daqueles muito modernos que registam tudo através do teclado? Não sabe o que perde. Nada como um lápis de carvão. E um rascunho, claro. Assim risca-se livremente. À medida da nossa vontade. Só que fica lá o que se escreveu. Às vezes, risco tudo.
No outro dia, vi um pato. Estava sozinho numa espécie de piscina, próximo do rio. O que é uma coisa rara, pois o pato costuma encontrar-se com a sua mulher ao lado. Amam-se tanto, os patos. Olhei-o e percebi que bastava uma única personagem para que a narrativa se contasse. E chegava aquele espaço. Para que a ação se aconchegasse. E penso se o narrador seria capaz se fingir. Ou se o autor se atreveria a esconder-se. Eles contam histórias um ao outro, eu sei. E choram muito, depois de se rirem tanto. Eu é que tenho alguma dificuldade em distingui-los. Mesmo que os seus corpos falem com letras e palavras e frases e parágrafos e emoções. Tantas perguntas. Exclamações e reticências. E depois querem que eu os separe. Há vezes que não consigo. Mais uma razão para ter gostado tanto de ter lido o livro. As outras, não digo. Perdi-me. Chorei. Aplaudi. E desatei a rir. Até sorri. Fui até ao fim com o narrador e o autor a meu lado. Os dois. Ou os dois são um. Não sei. Só conheço o narrador, conheço? Juro que é verdade. Estive com os dois. Ou não foi nada disto? Mas não se podem destruir os factos. As opiniões, vá que não vá.
Só se for por malvadez. Não se destroem os sonhos desta maneira. Eu não quero chorar mais. Às vezes choro. Outras, não. Tenho esse direito, certo? Existem banalidades boas. Acredito. E fazem tão bem. Amor, ao livro, ao leitor, também é isso. Estar no outro lado. Como se estivesse aqui. Pronto, eu agradeço ao autor. Mas deixem-me sossegada com o narrador. Com as mulheres dele. Com o amigo dele. Está bem? Porque “há coisas muito tristes mas perder a infância é certamente uma das piores, não acham?
Há dias em que volto ao rio. Para me tingir de azul. E amornar as lembranças que marinheiram ao sabor das marés. Para me segurar ao verde que cai da serra. Rir. E mergulhar nos afetos. Nas correrias assarapantadas dos caranguejos em direção aos juncos que povoavam a margem. A do lado de cá. Na outra está a cidade. As luzes e uma fonte luminosa. E a voz que embeleza avenida com líricas de amor. No entanto, o meu regresso concretiza-se no bote. O doce encanto do momento! É nele que viajo. Que vou e chego. E vejo. Depois percorro as vozes e os rostos que me seguraram. Estabeleço todos contactos. Ato e desato os laços. Mas é em jeito de reclamação que fico. Porque o rio corre para o mar. Onde tudo é água. Como as lágrimas.
Às vezes, não me lembro por onde caminho. Fico por lá. Mas é fantástico! É indispensável que o meu rosto esteja molhado. Pelo azul da água. Pelo sal. E pelo deserto do silêncio. Assim, vejo tudo nitidamente. Como se fosse já.
Quando vim ao mundo (ovo prodigioso) já ele cantarolava. Fui adolescendo e esse crescer quotidiano alicerçou-se numa distribuição de tudo. No espertar da manhã, no entusiasmo tão inquietante como arrebatado. Superior a relação que se estabeleceu entre nós.
Distinto galo! Jovial na forma, galeria de cores, galante no falar, gaiato nas notas de acordar. Todas as manhãs. Naturalmente. Poeta, também. Daqueles que veneram as palavras e as letras. Que verbalizam as sílabas delirantes de contentamento. Alheado de mundividências. Presente na emoção e na paixão que são a razão de eu permanecer aqui. No modo de dizer erva e estrelas-do-mar e terra e formiga e eu e tu e nós… tamanha sensibilidade! Enorme comoção. Com coisas simples. Com o desadormecer do Sol que se erguia para além dos montes. E chegava com flores. Papoilas. Rubras papoilas.
Triste galo. Enredado na teia do galinheiro. Destino a cumprir, calvário resignado, fado cantado pela manhã. Asas penadas que se derramam pelo galinheiro.
Amor amado, o nosso. Inveja da galinhada, claro. Tratados, crónicas, jornais, romances… Nada! Não houve notícia de amor assim. Na linguagem, na erudição.
Compreendem agora como fiquei? A que peso me entortei? Ao Amor. Traí propósitos e quebrei promessas. Apenas ambicionava ser uma galinha afortunada que rumorejava:
- Bom dia, Amor.
- Talvez um dia…
Embora um dia seja excessivamente tarde… e o muro muito alto. A capoeira é grande. O chão é plano. Sem ímpeto para saltar.
Havia a outra margem. Era o lado de lá que se desfazia em acenos. Satisfação. Água. Contentamento. E muita areia. Depois regressavam as cegonhas. E os ninhos. Tanto voo para alimentar as crias. Equilibrismos. Asas ao vento na mira dos pastos. A minha mãe explicava-me que era assim. Que as mães tinham que alimentar os filhos. Que dava trabalho, mas que os cansaços sabiam bem.
Em baixo, o canal bordejado de verde. O colo de uma água tranquila. Segura no cumprimento da sua missão. Alimentar as lavras do arroz. Corria lentamente. E os rapazes atiravam-se a ela em mergulhos destemidos. Em despique. Ela ignorava-os. O arroz bebia-a até à última gota. Uma ponte. Cansada. Rouca de tanto alertar os miúdos. A seguir, sempre em frente, era a totalidade de tudo o que existia. O meu tudo. O rio, sempre o rio. Azul. Sossegado. Seguro. Apenas quando chovia se mostrava desinquieto. Havia o bote e os remos. E eu ia. Por vezes, e foram tantas, saltava um peixe. Eu sorria. Ficava a olhar, calada no silêncio líquido da maré cheia. Eu sabia que chegaria a vazante. Que não podia sair dali. O meu pai tinha-me ensinado os rostos do rio. Houve dias em que me esqueci. A solução era deixar o bote. Saltar para a água e caminhar pela lama atá à areia. Foi assim que comecei a saber o rio por dentro.
No meio do rio, não pensava em nada. Não havia hora marcada para a doçura do marulho. Pressentia-lhe os desejos. Ouvia-lhe as vontades. Conheci-lhe a voz. A dança e o ritmo. Os sonhos. Via-os azuis. Com sopros de tranquilidade. Eram sorrisos com sabor a sal. Eu lambia os dedos. E quando tinha fome, mergulhava. O meu corpo jurava que a água estava fria e ele ria-se com pequenas ondas de cristas alvacentas.
Há pessoas que nunca provaram um rio. Não o mastigaram num silêncio perfeito. Ignoraram a espuma. Que nunca correram atrás de um caranguejo. Nem engenho para segurar os lingueirões que se encovavam na areia. O meu pai sempre lhes chamou canivetes e é assim que me lembro desses linguarudos moluscos. A verdade é que a concha retangular, adelgaçada e longa cortava mesmo. Os distraídos e desajeitados. Os que nunca tinham saboreado o rio. Os outros não, que sabiam como pegá-los.
Lembro-me dos homens indignados. Com o vento e com a forte ondulação. Com o nevoeiro. Afirmavam as âncoras e a ausência das redes. As mulheres ignoravam os queixumes. Criticavam as invetivas desmesuradas. Asseguravam a inutilidade dos ditos mordazes, ofensivos, provocatórios. Que o rio era assim. Que era uma questão de liberdade. De autonomia.
E eu, que era obrigada a ficar em terra, fundeava no meu porto de abrigo. Era um quarto pequeno. Com uma enorme janela para o rio. Ali, eu construía botes de papel. Navegava. Fugia. E voava ao ritmo da maré. Só voltava quando a minha mãe anunciava a hora do almoço.
Podias responder que sim! Eu entendia melhor…Pois podia, não me lembrei. Por vezes os adultos complicam tudo. Concordou comigo, sem deixar de acrescentar que os crescidos não sabem falar com as crianças. Que os miúdos sabem palavras mais pequeninas. Limitei-me a aceitar os argumentos, sem deixar de pensar como haveria de medir o tamanho das palavras. Desisti de imediato. Afinal, as palavras pequenas são mais doces.
De repente, como se o tempo e o lugar tivessem renunciado a ser grandes, perguntou-me se eu estava a ver os crocodilos e o vermelho que se estendia por baixo do escorrega. Respondi que sim, na esperança de ter recorrido a uma palavra de dimensão adequada. Confirmei que um deles tinha riscas pretas e amarelas. Que era muito estranho. Que não havia crocodilos assim. Pois não! Repara naquele! Tão lindo… é vermelho… o outro é verde. Olha aquele como é azul. Tão lindos, não são? Não duvidei, não fosse a descrição ganhar palavras desnecessariamente grandes.
Olhou para mim. Pelo rosto escorria a importância do momento. Apenas os olhos adivinhavam a noite que se aproximava, antecipando o brilho das estrelas. Sobrava um pouco de sol. Pediu-me que tomasse conta das crias. Obedeci. Rogou-me cuidados. Enumerou outros tantos. Sim? Perguntou com a certeza a refulgir nos olhos negros. Salva os ovos! Que os tirasse da margem por causa das pessoas que têm os pés pesados e desatentos.
Cuidadosamente, peguei nos ovos. Caminhei como se transportasse uma bilha de água na cabeça, aproximei-me do ninho. Aqui? Sim! E assegurou-me que eu acabara de fazer uma boa ação. Que tinha salvado os pequenos. Sorri na delícia do gesto e na doçura das palavras, mesmo que pequeninas. E os mesmos olhos ávidos de narrativas perguntaram se voltávamos no dia seguinte. Com certeza. Voltaremos. E voltou a explicar que bastava um sim. Que era uma palavra mais pequena. Como ele! Que descobrira crocodilos coloridos numa abandonada poça de água.
E foi nesse momento que me lembrei que, no meu tempo, as poças tinham rãs. Verdes. Não me lembro de outras cores...
Queria tanto ser o dia. A noite e o mar. Enfiar o Sol na algibeira e escorregar pelo momento. Pisar o verde. Beber o perfume das flores. Desenhar ramos de papoilas. Trepar aos frutos e comer os figos. Para deixar as árvores agarradas à raiz.
Queria muito acordar abraçada à voz do meu passado. Beijar a manhã contar uma história de encantar. Com duendes pequeninos. E fadas. E o pipilar dos pardais. Parar no crepúsculo que paira na nitidez do quadro que jaz solitário na parede do quarto.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]