caminhar pelo passado [para ouvir a cegonha]
Ignoro a existência de alguma lei que me barre a possibilidade de caminhar pelo passado. Com o mesmo compromisso com que ando por aqui. Deve haver, mas não me interessa a razão. Há pessoas que não têm um tempo para onde ir. Inventam leis. Não me importo. Eu vou sempre que quero. Às vezes não quero, mas vou.
Cheguei cedo à praia. Desci a duna, atravessei a ponte que cruza o canal. E fui. Molhei os pés. Sentei-me na areia. Rebolei satisfações. Vi os caranguejos que se entretinham com conversas arreliadas. Desorientados, encetavam viagens ao contrário. E voltavam sempre ao mesmo local.
Uma garça. Outra cegonha. Tanto silêncio. Um peixe sorria na água. Na outra margem a cidade. Uma onda sossegada que chegava e se desmazelava nos meus pés. Mais nada.
Entrei na água num mergulho ávido e fresco. Sacudi os cabelos. Tornei a entrar. Limpei os olhos da doçura da voz que me molhava o rosto. A minha mãe dizia-me que estava na hora de ir para cima. Que o almoço estava pronto. Que o pai não gostava de esperar. Só tive tempo de lhe responder. E gritei: já vou!
Ergui os olhos para o céu e sorri. E pensei que um dia destes hei de ir passear outra vez. No desconhecimento da lei.