A minha mãe queixava-se amiúde da tortura que lhe advinha de ter os pés grandes. De nada servia o colo daqueles que tentavam acalmá-la. Que era alta, bonita… Como queria ela amparar tantos adjetivos se os pés fossem pequenos? Irritava-se sempre com a solenidade de tais palavras. E os sapatos? Só há números para bonecas!
O pior era quando o meu pai se metia na conversa. Lembrava ele os benefícios dos pés grandes. E tecia elogios descarados à beleza dos ditos. Que aquilo sim, eram pés. E tudo descambava quando o confronto se punha entre duas palavras: pés e patas. Que não! Ela tinha uns pés lindos, vistosos que lhe assentavam muito bem. Ainda se lembrava de vê-la a caminhar na areia. No desembaraço do movimento. Enquanto os outros se arrastavam num passo hesitante e desleixado. Um passo para afrente e dois para trás. Como os caranguejos que corriam para a água. Pronto, lá voltava a conversa das patas. O caranguejo tem oito para correr e mesmo assim fá-lo de lado. Deve ser, pensava ela, por andarem descalços. Coitados. A minha mãe sempre lutou pelo livre acesso aos sapatos. Dizia ela que o problema não estava no que calçava, mas nos calcantes. Não percebia a crise dos números. A razão por não ser produzidos sapatos para todos os pés. Escasseavam os modelos e os que apareciam, eram para as clientes habituais.
Ela sabia fazer rendas e tricôs, camisas e vestidos. Também calças. Sapatos é que não. Valia-lhe o verão que era esbanjador em chinelos. O pai é que sofria durante todo o Inverno. De vez em quando, lá andavam à patada.
Agora, que o tempo é fartura, as montras estão atoladas de números e cores. Eu sei que há pés e patas para todos os modelos. Mas há as patadas. Que mais não são do que pancadas com a pata ou pé. Deve haver por aí, muita gente com pés grandes.
Sinto saudade das patas da minha Hera. Uma linda e doce cadela. E que patas! Sempre que me pisava, tinha a noção do peso. Olhava para mim, pedia desculpa e erguia-se num aceno de carinho. Depois, erguia a pata na direção de uma festa.
É por isso, que tenho saudade dos pés da Hera. E dos pés minha mãe. Que sempre me pouparam às patadas da vida.
Os meus Blogues
Blogues que vou lendo...
Sombras da Memória (Carlos Barão Campos)
Os livros que ninguém quis dar a ler