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ponto de admiração

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15
Dez08

regressar

Paola

 

Monte Natal de areia

 

O Monte. Sempre foi assim que os meus pais me falavam daquela fila de casas brancas e azuis. Do alto do enorme monte de areia, espreitavam o rio, espraiavam-se ao sol, iam à pesca de robalos, xarrocos e chocos... Um acto de amor. Por vezes, já fartas e cansadas, ficavam pelo areal, deliciavam-se com os caranguejos, berbigões, canivetes e ostras. Era uma gente tranquila, com uma vida tranquila... Do outro lado, eram as moitas, os matos abastados em bicharada e em murtas. Mais abaixo a horta. Magnífica! A minha infância perde-se e delicia-se nas batatas-doces assadas no braseiro que crepitava junto à entrada da cozinha. Esplêndidas e generosas.
A fonte era um lugar sagrado. Pelo nome, Coração de Jesus, pela água pura e cristalina que saciou a minha sede e que alguém não preservou. Sagrada porque o meu avô acreditou que ela lhe retribuía as passadas com  bilhas de saúde. Todos os dias, pela calada da manhã lá ia ele. Bebia, lavava a cara e acreditava que tinha rejuvenescido. Também o meu avô foi fantástico. Gente simples e pacata... A poesia divulgava-se na cozinha, junto à chaminé. Adorava declamar os seus poemas! Quadras de rima pobre com sonoridades de ternura. A concertina dançava nos seus braços e os seus dedos percorriam-lhe o corpo como se fosse uma mulher. A música acompanhava os versos que a memória retinha e a festa constituía a sobremesa esperada.

 

O monte, vamos ao Monte passar o Natal, diziam-me os meus pais. E eu estremecia perante o percurso a trilhar para lá chegar. Um caminho feito horas pela berma do canal, por veredas ladeadas por pinheiros e eucaliptos com os fetos abraçados aos troncos. E o verde confundia-se, aqui e além, com o azul o Rio. Sim, o meu Rio era azul. Uma jornada difícil! Não havia alternativa. O Monte ainda não se tinha rendido à civilização. Orgulhava-se de olhar magnificamente para o Sado e altaneiro para a cidade que, na outra margem, se insinua vitoriosa. O fim do mundo, alcunha que detestava, estava mesmo ali, no estuário do Sado. No entanto, a lembrança do rio, dos golfinhos, dos caranguejos, da batata-doce, do berbigão e do pão faziam-me transpor os obstáculos com alguma agilidade. Grandioso aquele pão! Uma fatia barrada com água-mel faria qualquer citadino crer na verdade do néctar celestial. O Monte ... bravo no apelido da família, bravo na escassez de riqueza, bravo nos acessos, bravo nas piteiras fartas em figos, bravo por se afirmar na diferença de outro qualquer lugar, bravo pela dureza que impunha aos que lá viviam, bravo porque único. Um nome próprio como a gramática nos ensina. Único, próprio e admiravelmente singular. Na minha cabeça o Monte ainda existe ... com tudo o que ele tinha. Os meus avós,  a fonte, a horta, a praia e os caranguejos ... a minha cabeça não quer creditar que sobre a areia, a praia... que tudo já se cumpriu. O Monte morreu à medida que as pessoas morreram também. 

 

E eu deixei de ter local para passar o Natal. O meu avô não toca concertina, a minha avó não vai comprar o pão… e os meus pais já não me dizem “Vamos ao Monte, neste Natal!” . O Monte morreu... e é com palavras que eu ressuscito aquela paisagem. O rio ainda existe e ainda é azul. Só que mais pardacento...

 

Escrevi este texto há quase um ano, quando me iniciei nesta "coisa" dos Blogues. Porque é Natal, ressuscitei-o.

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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