Só porque o arroz-doce é tradicional. Eu gosto de tradições. Mesmo que não as cumpra. Por preguiça. Por memórias. Por avessos e contrários em que elas se transformam. Na dona Perpétua, evidentemente. Ao sábado. Na habitual gulodice partilhada. E com ele. O Biel é um garoto feliz. Vê-se nos olhos! Nas mãos. Nos pés alegres e contentes que não se moem de tanto correr. De rir e de gritar. Rodas. Rodas de moinhos. Luzes. Olás. E Lidas. Muitas Lidas. Tanta azáfama. Tanto trabalho. Também ele comeu arroz-doce. E deu. Assim, com uma colher grande que enfiava na boca da avó. Sempre com consideração. Cada colherada é rematada com um “ É bom?”. E era! Mesmo na inversão de papéis. Mesmo na bodeguice dos grãos polvilhados com canela. Ele é um menino feliz. Vê-se nos olhos.
Mas há os predadores de crianças. Perversos. Calamidades. Vermes que não se enxergam. Escondem-se em subterrâneos pantanosos. Em carapaças cobardes e pútridas. Uns ineptos, uns párias. Prefiro as minhocas. Que não são prejudicais à saúde humana. E todos os dias são informação. E não os vemos! Mascaram-se. Saqueiam. Espoliam. Na blogosfera também. Ouço falar de ninhos de cobras. De charcos podres. E as crianças são nenúfares.
Um pouco de paciência, e de tempo, basta para entrar num mundo de sítios de pais babados. Orgulhosos das suas crias. Demasiados Blogs com fotografias infantis. Enlevo fotografado. Amor desnorteado pelo mundo. E eu não entendo o gesto. Para quê tanta fotografia de criança linda? Cada vez mais somos alertados para os perigos. E as nossas crianças correm na Internet. A sociedade é ruim!
Eu sei que a vida é madrasta. Que vivemos abraçados a perigos. Basta sair de casa. Ou não sair. Que a cobertura pode desmoronar-se na mesma. Eu sei.
Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!...
Augusto Gil
Pelo sim ou pelo não, acabei de comprar mais um álbum. Pequeno, feito de cartão canelado. A cor? Vermelho-criança, certamente. Com triângulos transparentes nos cantos. Cada página separada por folhas de papel vegetal. Não há-de ser qualquer sedução digital online que me obriga a renunciar ao tradicional álbum para fotografias. Assim como não deixarei de comer o tradicional arroz-doce.
Não por uma questão de verborreia saudosista. Antes por causa das crianças. Y los niños, caballeros? Los niños?
(imagem de www._doces_momentos_.blogger.com.br/menino.jpg)
Hoje apetece-me subir ao monte e explicar ao céu que a terra não é redonda. Que os rios não correm para o mar. Que o Sado navega ao contrário. E não disse nada a ninguém. Que amanhã é já hoje. Que ontem é passado. Que as raivas se abraçam todos os dias. E finge-se a paz. Que o meu nome não é o meu nome. Porque odeio possessivos. Que o vento é apenas o vento. Não sabe o que faz, o tonto. Que os poetas são enganosos. Eles roubam-me as palavras. Aquelas que eu quero, e sei, para narrar emoções. Ocultam-nas para que eu não as arruíne com admiração e amor. E entoam sentimentos mascarados de engano. Disfarçam-se e querem que eu finja também. Inventam situações para camuflar as palavras, os poetas. Jogam um jogo que não sei jogar. E as palavras escondem-se e mostram-se e calam-se e comunicam e dizem-nos. Os poetas sabem o léxico todo. Sinónimos e contrários. E querem mais. Inventam palavras que emudecem as minhas. O mago da palavra burila-a. Como se fosse de cristal. Tira-lhe a luz. Extrai-lhe as impurezas. Cura-lhe os males. Copia-lhe a beleza. O poeta lança as sortes. Invoca os deuses e as forças da natureza.
No monte, oiço a musa do poeta. Que escreve poemas. Ao som da lira...
O meu gáudio advém do facto de eles se traírem. Baralham o esconder com o mostrar. Só para que eu perca o jogo. E me desnorteie na discórdia de sentidos. E brincam comigo para me deslumbrar. No desacordo de opiniões. Na subjectividade dos olhares. O poeta baralha o que quer mostrar escondendo. O poeta trabalha o mostrar e o baralhar para não ter que dizer o que quer esconder.
Mas não posso! Não sei trepar.
Nota - Hoje, os meus alunos viram assim os poetas. Este texto é quase só deles…
(imagem de www.aleac.ac.gov.br/.../stories/poesia_25.jpg )
Eu vejo-o assim. Com um megafone. Talvez com um microfone na mão. Com o seu nome rabiscado em letras apressadas. A lona é vermelha. Ele é moreno, talvez resultado da dureza dos exteriores. Tem bigode, talvez por causa do génio. Já ouvi que não há acordo quanto à etimologia da palavra bigode. Uns filmaram-na na China, outros associam-na aos visigodos. Depois, há os que a consideram grega e até mesmo portuguesa. Enfim, uma trajectória de narrativas abertas. Partilho, sem qualquer fundamento, a tese germânica. Parece que era hábito jurar pela honra do bigode, "Beit Got!". Ou seja "Por Deus!". A gritaria do “corta”, “corta”, de quem desgraçadamente observa os planos de nós. Imagino o mau humor do realizador sentado numa cadeira de lona. Por Deus, berra o homem farto de mandar repetir a cena. Arrufos de contadores de histórias.
A sala escurece e lá ao fundo o ecrã reluz. O filme começa com um grande plano. Um rio. Azul. Sereno. Um rio que corre tranquilamente por planícies alentejanas até se abraçar à cidade. Uma linda história de amor. Uma paixão acalorada. Abençoada por cegonhas brancas. Apadrinhada por roazes brincalhões. A câmara procura as dunas, geralmente pouco povoadas. Fixa-se numa. Um plano de pormenor mostra um casario branco. Com barras azuis. Não mais do que cinco ou seis casas. Uma delas eleva-se ao primeiro andar. A janela fez-se olho da câmara e mostra o rio e os arrozais. O areal... São cenas repetidas. O passado sobrepõe-se ao presente que está ali. A minha cabeça está cheia de murmúrios. São sinfonias com cheiro a maresia.
Disperso algures pela plateia, um homem toca concertina em animada interpretação. Toca-lhe como acarinhava a mulher. Sabia-a de cor por tantas vezes a executar. Tinha sempre audiência. Não muito longe dele, uma menina sustem o impulso de lhe falar, de lhe dizer o quanto gosta de o ouvir. Por essa altura, já os espectadores, homens, mulheres e crianças, se tinham dado conta que se tratava uma realização em registo de amor. De alegria. De vez em quando, o homem da concertina recita poemas. Quadras que inventa no momento. E ri. Os figurantes aplaudem nos seus corpos sentados nos degraus de uma escada que conduz ao piso superior. As personagens secundárias gritam enfado. Mas riem e cantarolam também. Os acordes do acordeão escapam-se com elas pela porta da cozinha. Chegam até ao pinheiro. Manso na sua folha persistente. O corpo arredondado sugere um guarda-chuva, sobretudo no Inverno. Mas é Verão. No tronco a casca grossa, parda e muito gretada denuncia-lhe a idade. No lugar dela surge uma coloração castanho-avermelhada. Num dos seus braços baloiça-se um balancé de corda. A menina adora-o e brinca com ele.
A câmara alonga-se num plano de conjunto. Fixa-se na fonte. Mostra as piteiras orgulhosas dos figos suculentos. Mas os picos, senhor! Colhem-se com uma tenaz e rolam-se na areia. Os pormenores passam em forma de analepse presentificada. Técnica de cinema. Um ângulo perfeito. Volta à fonte em jeito de clareamento. O escuro mostra um homem. Alto, com os passos cansados pela idade, cabelo curto. Muito curto. Segue descalço pela areia. Percebia-se que a manhã mal tinha principiado. O Sol ainda não tivera tempo de aquecer o caminho. O homem aproxima-se. A câmara acompanha-lhe os movimentos. Aponta para um painel de azulejos, uma imagem, uma legenda. O Sagrado Coração de Jesus, afinal a fonte tem nome. É lugar mágico, um espaço mítico, inserida num tecido feito de areia e de piteiras com cheiro a rosmaninho. Um lugar poético. Um cântaro vazio espera pelo final do ritual, apesar do cansaço dos braços que o voltariam a encher e a carregar. O homem e a fonte fundem-se num só. A água lava-lhe o rosto, os pés, as mãos. Mata-lhe a sede de viver. Ele acredita que a morte não gosta daquela água. É pura, santa, de nascente. O homem pega na bilha de barro à espera que seja de novo manhã. Repetirá a acção. Certamente!
A câmara abre o ângulo, vira-se para a esquerda. Não dá importância ao quintal. Às batatas-doces, às cebolas, nem às melancias. Corre desenfreadamente. Mais para a esquerda, mais... Pára! Acção, grita a claquete. A sala de cinema pinta-se de azul. É um rio. Não! É o rio nos fluxos e refluxos das marés. E os caranguejos escondem-se nos juncos.
No areal vê-se um enxovalho total. Uma casa pré-fabricada instalara-se ali. Que abuso! Grita a plateia. Um aglomerado de madeira protegido por fitas que proíbem o contacto de intrusos com a arte. A câmara mostra. Ali se instalou um estúdio de cinema. Um acervo de actores, actrizes, fitas, realizadores, bobinas, projectores, guiões, bandas sonoras, fotografias, ópticas... tudo a falar francês, sem acento alentejano.
A minha mãe chorou. Não pela praia, mas por se ver impedida, por uma fita amarela, de entrar na casa que a vira nascer. A fonte é actriz de cinema, mãe! Depois rimos. Rimos com a certeza que nenhum daqueles actores terá melhor desempenho que o meu avô.
Numa película a preto e branco... com sabor a mar!
Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda-as para realidades impossíveis, tornando-as incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem.
Pedi, hoje, aos meus alunos que falassem de poetas. Isso mesmo, “O poeta é...”. A intenção era começar pelo autor para chegar ao poema e à poesia. A tarefa não foi, de início, bem aceite. É que os meus alunos aborrecem-se com a escrita. E enfastiam-se a pensar. É tudo uma canseira. Nada melhor, dizem eles, do que o professor ditar apontamentos. Fantástico mesmo é uma ficha com tudo escrito. Assim como uma lata de salsichas para cachorros-quentes. Com abertura fácil. Tem sempre a enorme vantagem de dispensar o abre-latas, instrumento obsoleto que só complica o processo. Basta abrir. Pensar é que não. Não é que a culpa seja deles. Até penso que não! Mas como a culpa não morre solteira, alguém tem que assumir este pântano de facilidades, de aberturas fáceis em que os nossos jovens se enlatam diariamente. Essa coisa de estar sempre a culpar o sistema já irrita. Particularmente, porque não estou a falar de futebol. Desculpem, mas não consigo ver nas pernas e nos pés dos meus alunos dribles espantosos e muito menos uma jogada estudada. Também nenhum deles se chama Ronaldo ou Luís. Podem sempre mudar, lá isso podem.Todos acreditam nas suas potencialidades. Todos se vêem ases da bola. Todos fantasiam um futuro jogado num relvado verde, com muita assistência e com contratos de milhões. Porque é essa a realidade com que se deparam todos os dias. Na televisão, nos jornais, nas revistas... os craques da bola são sempre a primeira página. Para eles a luz da ribalta. São as vidas caras, as caras da vida deste país que nutrem os sonhos dos mais jovens numa verdadeira euforia à inglesa. Mas muitos ainda não olharam para os seus pés. De barro, em muitos casos.
Nada contra, até gosto de futebol. O problema está na perda da consciência da vil realidade. E é neste mundo de facilidades que a maioria dos nossos jovens vive. Assim, alienados. Tal como o país. Acreditou que era europeu. Bastou-lhe assinar um tratado para se sentir espanhol, sueco ou finlandês. Puro engano. Por muito que isso nos custe, Portugal apenas é, cada vez mais, europeu por casualidade geográfica e a sua alma erra por aí, apostada na imitação de modelos desconformes e incompatíveis com vontades batalhadas há séculos. É este querer reproduzir os outros que me aborrece. Talvez seja por isso que detesto imitações e que elejo o slogan que repete, sem que seja ouvido por quem de direito, que o nacional é bom. Deixem a Finlândia para os finlandeses. E já agora, a bola para o Ronaldo.
E a poesia é dos poetas que não são passíveis de cópia. E não ter noção que o plágio é um crime que lesa os direitos de autor é coisa feia. Não concordo com a teoria do elogio. Que se copia para engrandecer o copiado. Tretas! Ideias roubadas, são ideias roubadas ponto final. Venham donde vieram. Do Chile ou da Finlândia. De França menos mal. Gosto tanto de acreditar que os bebés chegam no bico das cegonhas... Apesar de nunca ter percebido se falavam a língua de Panoramix. Bolas! Não me tirem isto também!
E lá foram saindo algumas definições por bocas sem hábitos poéticos. O poeta é um romântico. Um sonhador. Um inventor de palavras. Um fingidor. Um trapaceiro da gramática. Um mentiroso. É quem escreve poesia. Todos explicavam as suas crenças numa língua feita de enormes imperfeições. E continuaram. Um poeta é um sentimentalista. Um criativo. Um poeta é aquele que nos faz chorar. E rir, acrescentou alguém. Eu fui dizendo que sim. Aprimorando as frases, desfazendo equívocos.
Um dedo levantou-se de repentinamente. Como que animado por uma qualquer ideia brilhante, ergueu-se expedito e determinado a ser atendido. Mal o vi, disse-lhe que sim.
- Um poeta é um mágico! – Afirmou convincentemente.
- Porquê? – Perguntei.
- Ora, porque esconde, mostra e baralha as palavras. - Explicou.
E, nesta aula, ficou acordado, por unanimidade, que um poeta é um ilusionista de palavras.
Porque
“Ser poeta não é uma ambição minha. /É a minha maneira de estar sozinho.”
Comi. Porque ontem foi sábado. Porque me apetece sempre aos sábados. Porque sim. A gulodice soube a arroz-doce. Da dona Perpétua, claro! Há hábitos que não gostam de ser contrariados. Perdem o sabor e o aroma. Muito tempo no frigorífico acabam por secar.
Fiz compras domésticas, comezinhas. De comer. Sim, porque um prato de serviço lectivo, bem acompanhado por umas boas reuniões gerais e regada com conversas furtadas aos intervalos e doces sobremesas não lectivas, desnutriu-me a despensa. A míngua já era evidente.
Comprei livros. Um vício puro e simples, não uma doença congénita. Espero que transmissível. Um é especial pelas memórias que contém. Pela singularidade da sua autora. Conhecia-a menina, muito menina. Leiam-se as Mafaldisses - crónicas sobre rodase descubra-se a vida feita determinação.
Entenda-se que «a solidariedade constitui-se num dos mais fundamentais princípios da vida social. É um valor que se atribui aos outros e à comunidade que reúne os homens. Este valor traduz-se em actos concretos como partilhar, ajudar, aceitar, integrar, cuidar e preocupar-se. Logo, quem o faz, deveria fazê-lo com a mesma naturalidade com que esfrega os olhos para o dia todas as manhãs.» Ao, ler este livro de crónicas, lembrei-me das rampas em cimento que foram colocadas na sala quatro e na oito e …
Falei, falei e disse. Também ouvi. É costume dizer coisas ao sábado. Não é que resolva algum problema, mas que fico mais aliviada, lá isso fico. São partilhas, confidências, actualização de dados introduzidos durante a semana. Nos outros dias não há tempo. Nem lugar. Nem condições atmosféricas favoráveis.
Ri. Rimos. Enfim, ninguém é demasiado velho para rir, nem para chorar. Ri tanto que as lágrimas se intrometiam entre o ver e o ler. Impossível. Por isso, ainda gargalhávamos com mais intensidade. Caricatas, estouvadas, ridículas terá pensado quem nos viu e não compreendeu que só estávamos a rir. E que bem faz rir. Quem não ri é triste. Não entende. Não riem aqueles que não tiraram férias de si próprios. Há tanta coisa que me faz rir. Coisas despretensiosas. Desmedidamente simples. Não gosto de rir de coisas sérias. Fico sem vontade! Mas rio-me de mim própria. Assim, divirto-me sempre.
Chorava a rir. Os olhos fechavam-se embaraçados pela situação. Particularmente com o peso das lágrimas. Minúcias. Prazeres repentinos. Partilhados. Então, como ler a legenda da embalagem? Conhecer os ingredientes? Por uma questão de segurança alimentar era importante que o fizesse. Mas as lágrimas não permitiam. O corpo cedia ao compasso das gargalhadas. Num instante dominado, mal controlado, consegui dizer uma espécie de frase. Uma aliteração desarticulada, e nada intencional, de não sei quantos “lês”. Soou a chinês, japonês. Não sei, são línguas que, de todo, desconheço. Que estranhámos.
- Lê lá ali!
- Lêláli?Lêláli...
E ali, rigorosamente na padaria, junto à prateleira do pão embalado. Por causa da Broa de Batata, chorámos a rir. Nem de Milho, nem de Avintes e muito menos castelar. Uma gargalhada que nos acompanhou na viagem de regresso. Não comprámos o pão, mas ficámos com a memória. Um dia, não muito distante, uma outra amiga assegurava-me que “são partilhas de quem tem memórias. É isso também a vida.”
ardim primeiro. Paraíso perdido. Desobediência infernal. Se é verdade que Adão e Eva foram expulsos do paraíso, eu não fui do meu. Se o deles é mítico, o meu é real. Hoje, ambos estão igualados na desgraça. Ambos sucumbiram aos pés de interesses privados, também públicos. O meu éden deve ter dado abrigo a condomínios de luxo, a auto-estradas desenhadas no interesse de alguém. Resta-me a memória.
O meu jardim não obedeceu a artes de jardinagem. Não cedeu a modas vindas do mundo. A sua beleza advém-lhe da autenticidade. Da irregularidade das formas, da multiplicidade de vidas, de cheiros e de sabores. O meu horto não sabe a maçã. Celebra as cerejas, as ginjas, os figos e as ameixas. Os pêssegos. E as nêsperas. Tudo com muitas mimosas amarelas.
Não foi complicado esquecer a Boneca. A de papelão, com olhos escancarados e pintas a fingir de nariz. Apesar de no livro das minhas recordações lhe ter dedicado uma página, poucas vezes a relembro. Tenho pena do vestido com florinhas cor-de-rosa que a minha mãe costurou para ela. Só dele.
Eu tinha árvores e frutos. E os pássaros que gorjeavam no medronhal. E o sobreiro. Um tronco enorme, gordo. As raízes não cabiam na terra, por isso espreguiçavam-se à superfície. E tanto que eu gostava de me sentar nelas… E comia boletas. Bolota é termo de dicionário. Eu gostava das boletas com sabor a terra. À falta de castanheiros, a competição não existia. E eu cantava e dizia palavras com asas nas sílabas. E frutos silvestres nas consoantes. As vogais cheiram a figos. A pontuação é escassa, ficam as exclamações construídas de prazer, de êxtase, de conivência, aclamações proferidas a cada instante.
O tempo de calor amarelara quase tudo. O verde escasseava, a escola ficara para trás. Em Outubro tudo recomeçaria. A rotina do regresso cumprir-se-ia sem solavancos. Então, renovar-se-á a saga do óleo de fígado de bacalhau. As provas em folha de 25 linhas com dobra à esquerda. As orações meia hora antes de terminar a aula. As orelhas de burro. A humilhação pública. As minhas, as que me ajudam a percepcionar o mundo, nunca foram constrangidas. Não, não experimentei próteses de imbecilidades feitas em cartão. Asnices pedagógicas à janela. Eu lá me ia livrando das ditas. A Rita é que não. Teve azar. Foi apanhada de surpresa numa linha de comboio, a do Norte. Ela que nunca tinha usado tal meio de transporte!
Perguntei à Rita se já tinha estado em cima de uma figueira. Devolveu-me um não imbuído de insultos. Ousou um que parvoíce. Olhei para ela e, sem que me ouvisse, exclamei um que pena, coitada. Infeliz rapariga que só sabe o quinto andar de um imóvel da Praça do Brasil. Encurralada na gaveta de uma cómoda com azulejos verdes. Um dia, Rita, vais comigo. E comerás figos e levar-te-ei ao medronhal. Ela concordou.
A Rita bateu à minha porta saída de um Ford Anglia. Não me lembro se super, se deluxe. Um anglia azul-claro petulante. Calçava uns sapatos pretos de verniz. Com uma fivela, creio que preta também. Cabelos anelados, livres. Um gancho vermelho aprisionava-lhe a franja. O vestido era branco. De piquê, soube depois. Nas mangas, em forma de balão, corria o escarlate da fita grega que as completava. Uma fitinha ondulante que se vendia a metro. Grega? Desconheço o móbil. Tive a sensação que aquele vestido acabara de sair do guarda-vestidos das festas de família. Cheirava a naftalina. Eu também tinha um assim e uns sapatos castanhos, de verniz. A Rita estava ridiculamente trajada. Descomposta. Ela vestia hábitos urbanos e era uma menina.
- Rita, que vestido magnífico! Que lindo! Não o podes sujar… Vou ter que te emprestar roupa. E umas sandálias…
Ela vestiu. E ficou mais bonita. Mais autêntica. A Rita devolveu-me um sorriso transparente.
A meio da tarde, já cansadas das histórias da professora Celeste, que também tinha um ford anglia, decidimos ir para a rua. Vamos, vou mostrar-te as minhas árvores.
A figueira de figos moscatéis tinha um tronco generoso. Foi fácil convencê-la a trepar comigo. Subimos até ao tronco onde me costumava sentar. Uma tábua, que eu colocara há tempos, oferecia-nos algum conforto. A Rita dizia que dali chegava ao céu. Eu concordei. Nós, os figos, os pássaros e o céu. Repartimos gargalhadas. Sorrisos. Sustos, sempre o ramo se perturbava com as nossas palavras. Lágrimas e figos que disputávamos com pardais, estorninhos e tordos. Esqueciam-se completamente de nós. Ignoravam-nos e escolhiam os figos mais maduros. Debicavam um e outro e voavam. Regressavam mais tarde ou no dia seguinte. E nós comíamos esses figos provados por bicos sabedores. São os melhores, comentava eu.
Os olhos da Rita acumulavam deslumbramentos. Encantos de quem se transforma em personagem de livros para crianças. E assegurava-me que aqueles figos sabiam a figos. Prometi-lhe que, no dia seguinte, comeria figos roxos, com lágrimas de mel. Além, revelei com o dedo.
Apesar do papa-figos, ave de cores muito vivas, estar em vias de extinção, a Rita espreitou por entre as folhas da figueira. Sorriu e disse que sim.
Corri desenfreada para a rua. O meu corpo franzino não comportava tanta alegria. Uma boneca de papelão! Até então, eu só tivera uma de trapos. A rua era, apesar de tudo, o meu brinquedo favorito. Dava-me tudo o que a minha fantasia prescrevia.
Na mão levava um pedaço de giz, furtado na escola no preciso instante em que a professora enfiava uma colher de óleo de fígado de bacalhau pelas goelas da Rita. Na escola primária havia a terrível hora do fígado do peixe, liquido e sem aromas. Uma tortura que não entendia. Nas pernas a determinação de percorrer os sossegos instalados por ali. Não tinha ninguém por perto. Só no lado de lá da elevação de terreno que estremava as terras de semeadura. Uma espécie de fronteira natural que se intrometia entre mim e os outros. E isso afigurava-se muito distante. Tão longe que acreditava que ali não habitava mais ninguém. A minha rua estava aquém de qualquer intromissão humana. A minha liberdade gritava-se na totalidade. Na rua, eu edificava castelos com coberturas de serapilheira e paredes de tremocilha, com flores amarelas. Transformava velhos cacos em pratos de porcelana. Todavia, a minha boneca era de papelão.
Hoje, não. A boneca nova afastava-me de qualquer outra brincadeira. Excepto com as minhas admiráveis árvores. Afago-as. Converso com elas. Empoleiro-me nos seus troncos. Mimo-as com carinhos e elas retribuem-me com frutos, com sombra, com beleza. Lembro-me da cerejeira que, antes de me oferecer a carne dos seus frutos, me brindou com o esplendor das suas flores. Apesar de efémeras, tenho tempo para ouvi-las a cantar. Deito-me no chão, bem encostadinha ao tronco, fecho os olhos e espero um pouquinho. As melodias sucedem-se numa fantástica rapsódia de música tradicional japonesa. E eu canto e bailo com elas, vestida e perfumada pelas pétalas de flor de cerejeira. Ao fundo, a uns escassos metros do local onde estou, uma ginjeira exercita expressões de escárnio e de maldizer. Dirige-se-me uma tentativa de agressão verbal. Uma sátira indirecta, uma enxurrada de duplos sentidos. Não lhe oiço o meu nome, mas não duvido que esteja a olhar para mim. Os ciúmes toldam-lhe a razão. Não entende que as cerejas são mais doces.
Levantei-me, despedi-me da cerejeira e prometi-lhe que voltava. Que lhe queria muito. Que a sua beleza era alucinante.
A minha debutante boneca... A promessa de partilhar com ela as minhas árvores, começava a cumprir-se. Temia que a minha mãe fechasse a porta do jardim. Ou que ele próprio as fechasse. Era assim, quando as horas de comer apareciam transformadas em deveres sentados à mesa, ela afiançava que a rua ia fechar. E eu acreditava. Um jogo só nosso. Eu assumia que sim, ela confirmava o embuste. As mães sabem brincadeiras espirituosas. Sempre que eu violava a implícita regra, coisa que raramente acontecia, o meu ausente pai era transformado em prenúncio de severa admoestação. Por princípio, acautelava zangas escusadas. Não valia a pena! Às queixas, ele aconselhava-a a nada temer, que eu era uma criança, que devia brincar, que por ali apenas existiam árvores. Pois, aí é que está! Refilava ela. E se a rapariga cai, interpelava antecipando danos partidos. A terra é fofa, concluía. Portanto, de nada me favorecia criar embaraços domésticos. O meu pai sempre me compreendeu, apesar de optar por frequentes silêncios e lhe bastar um encolher de ombros. A minha mãe ficava arreliada com ele. Tu estraga-la com mimos, é sempre o mesmo. Eu ia para a cama dormir à espera que o amanhã chegasse. A minha mãe deve ter-se esquecido do lanche…
Resolvi mostrar a figueira de figos pretos à minha boneca de papelão. Uma árvore redonda, frondosa, média na altura, generosa nos frutos. Feminina. Única na sua espécie de figos pretos. Melosos. Especiais. Carnudos. Gulosos. O encanto da figueira reside mesmo no fruto. Árvore estranha. Feia quando despedia. Egoísta. Não aceito que encubra as flores. Que não as partilhe. Dissimula-as nos frutos. Só pode ser por amor. Ou por vergonha. Não quer que as cerejeiras a vejam. Despida é feia. Acorda desgrenhada no caule tortuoso. A casca cinzenta e lisa é pele de cetáceo. Os ramos frágeis são pernadas de miséria. Sobram os figos que não são pretos, antes roxos. A boneca não entendia a conversa. Eu, propositadamente, não lhe permiti nome. Boneca servia. É que não havia outra. Prometi-lhe que um dia a levaria junto dos figos moscatéis.
No chão de erva pintada de verde-macio esperávamos que os figos amadurecessem. A minha mãe não me chamou e eu adormeci. Cheirava a terra fresca, a azedas, a papoilas, a tronco de figueiras, a figos verdes combinados com os maduros. A Boneca não sei se dormiu, nem nunca saberei. Despertei atarantada. Por momentos esqueci o lugar e os eventos daquela tarde. Ao meu corpo chegavam pingos de água matizados de verde. Reflexos das folhas da figueira. Cada gota passava por mime desfazia-se no chão. Os pingos engrossados... intensos. Onomatopeias vermelhas. Sentia-me perto do fim e com um aperto no coração. A Boneca era de papelão. Depois da chuva veio o vento. Corri com ela nos braços. Aos poucos senti que o seu corpo se ia convertendo em nada. O vestidinho com florinhas cor-de-rosa era, cada vez mais, um farrapo encharcado. A Boneca ensopada. Boneca desfeita.
Entrei em casa, chamei pela minha mãe. Dei-lhe um beijinho e ela barafustou comigo. Que eu já deveria estar em casa, que a chuva não tardava - e há tanto que chovia -, que ia contar tudo ao meu pai.
- Mãe, a Boneca amoleceu e desfez-se... Morreu!
- As bonecas não morrem...Tens fome, não tens? Que tal uma sopinha quente?
Eu fingi que sim. Ela fingiu também. Amanhã, não vou aos figos. – Garanti. Depois, fui para a cama. Amanhã terei mais um dia para percorrer ociosamente.
- De bonecas não gosto muito, mas à chuva insisto em querer. Hoje, se eu fosse criança hoje? Não sei se queria...
Muito se tem falado de doenças. Nunca, como hoje, se escalpelizaram tantos males. Exorcizam-se desgraças. Aplaudem-se curas. Tantas que eu nem as conheço, excepto duas que as sei de cor. São coisas ruins na vida da gente. Mesmo assim, continuamos a sobreviver e a permanecer mais tempo no lado de cá. São enfermidades plurais, com prefixos e sufixos danados que chegam do grego e do latim. Enfim, achaques terminados, por exemplo, em ia. Ai, se eu ia daqui para fora. Ia, ia! Mas não vou, não me deixam. Ainda bem, que romaria acaba assim e só faz bem à saúde.
No meu grandioso dia não-lectivo, vi-me nomeada numa praga nacional – as provas de aferição. Há quem acredite na cura. Eu ainda não dei por nada. Certamente resultado da minha grande distracia. Não há mal que não me chegue!
Fui, como dizia, nomeada aplicadora do nada. Juro que procurei entradas em vários dicionários, desta língua que eu amo, e as saídas foram estas:
adaptar; sobrepor; adequar; destinar; utilizar; empregar a atenção; pôr em prática; infligir, impor;
Ou seja, de aplicadora fiz muito pouco. Com muito boa vontade, até posso considerar que “pôr em prática” se adequa à coisa. Só aparentemente. Já estava tudo consumado. Eles concluíram tudo. É fácil de entender que eu não fiz nada. Ao aplicador foi pedido que lesse, eu li. Mas ler não é aplicar… Ao aplicador foi pedido que distribuísse enunciados pelos alunos, eu distribuí. Convenhamos que não é o mesmo que aplicar. Ao aplicador foi exigido que escrevesse no quadro, que o transformasse em relógio analógico, eu escrevi. Também não é aplicar.
Infligir. Aí está o que melhor se adapta. Infligi silêncios. Impus regras que me mandaram impor. Vigiei. Controlei. Testemunhei o desespero de uma aluna. Coitada da menina! Lá vem a história das doenças.
A jovem padece de um mal comum no reino de Portugal. Há pessoas que, ao longo do tempo, conseguem restabelecer-se. Completamente. Com êxitos assinaláveis. Outras têm resultados menos conseguidos, por vezes fatal.
Aquela menina, sentada na segunda mesa da fila do meio, chegou à porta da sala a disfarçar o seu sofrimento. Depois, a doença manifestou-se, afectando-a gravemente. Não percebi bem do que se tratava. É que esta coisa das enfermidades se chamarem por nomes estrangeiros, ou quase, complica-me a existência. Então não é que a rapariga padece de linguasia? Eu explico. Não tem o português como língua materna, nasceu a falar outro idioma. Logo, é linguasia, o nome da doença, não? Coitada. Nem sabia o que era uma quadrícula. Severo o seu estado. Como poderia responder a “Quem tem razão?” se não percebia “razão”? É um caso grave, a exigir internamento imediato. É estrangeira, disse alguém num tom de enorme benevolência e tolerância. A garota sofre de estrangeiria. Probrezita. Tão novinha.
A verdade é que a moça não tem culpa de nada. Nasceu ucraniana e depois? Tinha que nascer em Portugal para realizar a prova de aferição? É claro que o país não é responsável pela sua vinda, mas deixou-a entrar. E ela entrou! Ela quis matricular-se numa escola e o país deixou. Ela quer aprender português, mas o país ainda não lho ensinou. Por falta de tempo, acredito. A mesma nação que a vai avaliar por não ter aprendido. É doença grave, seguramente.
Como é que este país de provas de aferição, e outras avaliações, vai aferir os conhecimentos matemáticos dela? E os de Língua Portuguesa? Mais um caso de insucesso a fazer baixar as estatísticas. Logo a matemática! Outra doença, a matematicasia, que se multiplica por aí. E desta, há muito que oiço falar. E nunca mais se descobre a cura!
Diz quem percebe destas coisas que foi um "teste de uma simplicidade infantil, com muito pouco a ver com a Matemática". Se assim for, e eu até acredito, esta doença terrível tem os dias contados. Fico feliz por saber que se está a caminhar para erradicar este mal. A média nacional vai prová-lo. O país vai rejubilar de contentamento.
O medronhal acordou repentinamente. Sobressaltado. Os medronheiros espreguiçavam-se em movimentos cadenciados. As folhas, uma ou outra, deslizavam lentamente. Acabavam no chão a trautear trovas ao vento. Um soalho negro. Fresco e macio. Um tapete matizado de castanhos, de verdes e alguns amarelados. Aqui e ali, o vermelho-agonizante dos medronhos que não susteve o vento. Repito esta palavra por não conhecer letras para escrever outra. Pronunciei-a vento e soube-me a vento. Não sei outra.
Uma terra fertilizada pela sombra das grandes árvores. Uma terra que eu tinha nas minhas mãos porque a remexia na ânsia de encontrar isco para as ratoeiras. Formigas com asas, agudes para uns agúdias para outros, e uns bichinhos amarelos que se enroscavam numa vã tentativa de escapar, cujo nome já não me lembro. A memória é selectiva. Prefiro recordar os pássaros e os tais bichinhos sem nenhuma ligação entre si. Foi um vício horrendo que perdi no dia em que capturei um pisco vivo. Tratei dele numa gaiola que não tinha o cheiro húmido daquela terra. Não resistiu e eu derramei lágrimas de arrependimento. Nas ratoeiras nunca mais lhes mexi. A partir daí, apenas me tenho cruzado com aquelas que a vida arruma no meu caminho.
Uma terra, dizia eu, leve e solta. Cheirava a cogumelos silvestres. De todos os tamanhos. Com chapéu e lâminas cor violeta. Sem chapéu. Sem dúvida que preferia os Boletus aereus. Pela combinação de cores, pelo chapéu castanho-escuro, pelo pé castanho. Será por isso que os cogumelos dos livros usam quase sempre chapéu? Bem cedo aprendi a destrinçar os bons dos maus. Por sobrevivência. Por hábito. Todavia aqueles cogumelos eram carrascos de ninguém! Protegiam-se, só isso.
O grito que nos despertou ainda planava no ar. Uma contínua propagação sonora. Os piscos romperam a perenidade das folhas e abalaram. Os pardais insistiram na permanência, unicamente mudaram de medronheiro. As poupas, não as voltei a ver. Os medronhos teimaram em não continuar a amadurecer. Esperaram por mim. Eles sabiam que eu voltaria. Eu voltava sempre. A perturbação de silêncios assentou e doeu. As páginas escritas com caligrafias enternecidas, nas tardes que ali passava, acabavam de ser lidas por alguém que nunca as compreenderia. Por uma questão de linguagem. A minha, a dos pássaros e a dos medronheiros. Dos medronhos também. E dos piscos que trauteavam sublimes melodias.
- Já vou! Gritei de modo a ser escutada no lado de lá. Não queria intromissões.
A minha mãe persistiu no chamamento. Afinal, eram horas de lanchar. Convenhamos que a merenda vinha mesmo a calhar. Mas permaneci zangada durante algum tempo. Não era justo, resmungava eu, suspender sossegos. Cumplicidades e silêncios. Lanchei no mais profundo mutismo. De tal maneira, que a mãe resolveu compensar-me pelos danos provocados. Tinha uma surpresa para mim. Explicou que tinha dúvidas quanto ao momento da oferta, que não sabia se o deveria fazer. Eu persisti taciturna. Pensei que ela me estava a enganar, a corromper, com falsas promessas. Às vezes as mães têm destas coisas. Fantásticas, as nossas mães. Admiráveis, mesmo quando nos intrujam.
Levantou-se da cadeira em que se sentara. Olhou para mim, como quem olha para uma das maravilhas do mundo, e pronunciou qualquer coisa que não entendi. Eu continuava furiosa por ter sido compelida a deixar o medronhal. No exacto momento em que tinha apanhado uma formiga com asas. Uma dávida que tinha sobrado para mim.
Regressou com uma caixa de papelão. Grande. Muito grande, mesmo. Colocou-a calmamente no chão, devagarinho, numa dança mesclada de prazer, desejo e encantamento. Nos seus olhos destapei uma luz mais radiosa do que o usual.
- Vem ver. É para ti…
Eu fui, apesar de estupidamente despeitada. E vi o que sempre julguei impossível ver. O que acreditava impossível existir ao cimo da terra. O que não sabia que vivia. Assim tão bela. Ali estava, só para mim, uma boneca. Do meu tamanho. Uma perspectiva hiperbólica a mostrar quanto a boneca era, de facto, grande. Uma mulher! A minha mãe já a tinha trajado com um vestido cor-de-rosa, com folhos na saia e com uma fita que se transformava num enorme laço na cintura. Um vestidinho às florzinhas, como ela fazia para mim.
A boneca que antes tivera era de trapos. Dos retalhos que sobravam da costura da minha mãe. Paulatinamente, olhei para ela e tomei conta da realidade. Era de papelão, só a cabeça rodava, pés e braços esticados, olhos pintados de azul, boca vermelha, duas pintas fingindo as narinas, cabelo castanho-escuro. Apesar da minha incredibilidade, sorri para ela.
Hoje, tenho a sensação de ter aberto uma gaveta, dentro de mim, e ter reinventado o seu conteúdo. E dos silos dos meus sossegos reapareceu a saudade.
Sentei-me para espreitar pela janela. Aberta. Totalmente, como se não existissem caixilhos e vidros agarrados por aros. Numa cadeira que restava de uma mobília qualquer. Madeira escura com marcas de tempo que rangia perante a minha vontade de ver. Sem braços, o que me obrigou a sossegar os meus no parapeito de mármore que afastava a janela da rua. Um limite que ela queria galgar, todavia nunca ousou. A cadeira esticou as pernas numa magnânima tentativa de partilhar comigo segredos e fantasias. Tantas histórias que ela sabia de cor! Tantos livros que lera! De poesia, particularmente. Tantos os amores que celebrou, tantos os que chorou.
À janela, virada para a rua, eu espreitei o mundo. Lá ao fundo eu vi um jardim. Grandioso na simetria das suas formas, esplêndido na grandiosidade, majestoso na perspectiva, benévolo nas desigualdades. Geométrico. Generoso em água e luz - lagos, repuxos e fontes. Jogos construídos no desenho das sebes e arbustos. Deslumbrante, este jardim. Sumptuoso. Excessivamente formal. Perfeito. Desenhado. Sem dúvida com régua e esquadro. Também com transferidor. As plantas, as flores não comunicam entre si… extasiam-se. Estranham-se. Prefiro a roseira do meu jardim. Pela humildade, pela pureza, pela irregularidade. Nasceu assim.
Sempre ambicionei ter um jardim só para mim. Invento um com cheiros. Com bonsais, bambu, buxo com desenhos estranhos, estátuas por todo o lado. Degraus perdidos aqui e ali, numa relação harmoniosa com a natureza. Com cerejeiras e cascatas. Tudo muito arrumadinho e perfumado. E com a árvore da felicidade. Perfeito. Contendo esconderijos propícios a promessas de amor eterno. Com visíveis raízes de árvores milenárias. Não sei porquê, mas com cheiro a incenso. E com ladainhas de súplicas aos deuses. Recantos favoráveis à reflexão. À descoberta de mim. Quem sou eu? Não sei! Devaneios irreflectidos de quem está à janela.
Permaneço sentada numa cadeira que já está enfadada de mim. Eu subsisto. Ali.
É então que vejo montes e vales. Riachos e ribeiras. Pinheiros e oliveiras. E silvas com amoras pintadas de negro-maduro. Terreno desigual, sem estátuas nem jogos de água. Com caminhos desenhados nos carreiros enlameados. Porque chovera no dia anterior. Vejo cardos e tojo. Tudo cheira a rosmaninho e alecrim. A carqueja abrilhanta-se no amarelo das suas flores. No perfume das mimosas ouve-se no zumbido das abelhas. As papoilas misturam-se com as azedas – tantas que eu comi na minha infância. E onde crescem elas agora que não as vejo? Gostava do seu acre sabor... Para desenfastiar havia sempre um adocicado “rapazinho”. Uma seiva açucarada feita néctar divino expunha-se assim. Uma flor pequenina, de cor avioletada, cujo nome verdadeiro desconheço. Sempre lhes chamei “rapazinhos”. Está assim na minha memória. E vai perdurar. Tenho charcos que sobraram das chuvas e lá dentro residem rãs e sapos. Estes só como enfeite, porque os abomino. Ao fundo, estende-se um medronhal. As copas dos medronheiros abraçam-se e beijam-se descaradamente. As flores são brancas. Os frutos terminam vermelhos. Os medronhos embriagam-se de alegria. Voluptuosos, riem à gargalhada.
No medronhal moram piscos de papo amarelo. Um passarinho discreto, canoro, pensativo ao Sol. De vez em quando surge outra ave. Pedante na poupa pontiaguda que lhe deu o cognome. E aparecem melros. Negros. Mais à direita da casa principal, uma cisterna. Guardadora de águas. Um poço que não é poço. O acesso à água faz-se por uma espécie chaminé. Que não é chaminé. Tudo o resto é um imenso terraço forrado a cimento. Aí invento. Invento-me. Ouço-me. E grito. O vale repete-me. O vento passa e rouba-me o bocado de carvão com que gizo brincadeiras de criança. Jogo aos quatro-cantinhos sem saber que o mundo não acaba ali.
Eu não tenho jardim. Se o tivesse não o agrilhoava em moldes geométricos. Não o planeava formal. Projectado. Antes instintivo. Um jardim. Fechei a janela. A brisa da quase noite resfriava-me as pernas e os braços. A minha cabeça permaneceu no medronhal com a convicção de que um espaço só é venerado quando nele se avolumam os silêncios. Então, sobeja a saudade.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]