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ponto de admiração

ponto de admiração

31
Jul08

pisar

Paola

   há quem goste de pisar pés incautos

 

 

Admiráveis os pés que a gente tem! E que importa se não tenho culpa de os ter assim? Quem não aprove não gaste e deixe estar. Andar a dois pés é humano, por isso ando. Tanto que às vezes sinto que os gasto até aos joelhos. Depois poupo-os. Mas gosto.

 

Suportam pesos. Belezas e vontades. Aborrecem-se e calçam botas para esconder tempestades. E partem para manobras acrobáticas, persuadidos que andam nas nuvens. E caem dos saltos pontiagudos que a vida tem. Depois riem, enfiam uns chinelos nos dedos e palmilham o mundo inteiro. Sem parar porque a praia é o destino. No deserto a areia enrola-se nos dedos. Os passos não fluem e os pés enterram-se à espera que a tempestade cesse. Tapa o céu, de horizonte a horizonte, e os dromedários só têm uma bossa. Os camelos é que têm duas. Os pés desnorteiam-se, não reconhecem o caminho. E vão, sem rumo e andar é um movimento ilegal se um pé paira no ar. Por isso, movem-se os dois. São uns andarilhos, os pés. Contorcem-se padecidos. Impõem calçado cuidado quando sabem que a deslocalização é o fim. Então clamam a urgência de consolidar a tradição.

 

Os pés deambulam à beira-mar. Encontram livros na biblioteca. Ensaiam passinhos de dança e trauteiam canções de embalar. Desvendam flores campesinas e cobiçam o rio que corre sem parar. E à noite, levam-me para a cama. Gosto que os meus pés me carreguem com eles. Que me convidem a passear e a olhar. A colorir os sonhos com memórias e o arco-íris com vitórias e derrotas. Com afectos, também. Com pessoas. Gosto que os meus pés me transportem pelo mundo e dividam comigo viagens a haver. Gosto que os meus pés me sussurrem ao ouvido que hoje não vamos ali. Eu cedo. E ficamos aqui.

 

Os meus pés são incautos e crédulos. Tão simplórios! Andam atrás das pessoas. E vão com elas. Não admira que os pisem. Tivessem cuidado, berro abespinhada. Desiludida e pisada. E é nestes momentos que invejo a força da pata de um elefante. Pelo peso, tamanho e força descomunais. A boca de um hipopótamo também serve.

 

Enfiados nos chinelos, os meus amados viajantes olham para mim e riem. E partem em bicos de pés. Et voilà! Chaque danseuse a ses astuces personnelles...

30
Jul08

beber

Paola

 a criação humana num copo de água

 

 ou

 a nociva exuberância da gente

 

E o tédio é um caos. Tudo numa inquietante tranquilidade. De vez em quando uma rã coaxa sem saber o que vem aí. A exuberância da vegetação esconde segredos calados. Adão está desesperado. Tanta terra para cuidar! Só tem que trabalhar. E ele não percebe nada de jardinagem. Eva também não. E têm fome. E a maçã é uma estratégia. Começam os desencontros. Os interesses acumulam-se. A felicidade é uma miragem. O mal e o bem existem no pecado original. E eles vivem o tormento desse momento banal. E que importância tem se não existem bares para afogar as mágoas? A angústia e o desespero atrapalha-lhes a vida e não agem por mal. Têm fome de tudo. De amor também. Sofrem. Valem-se a si próprios. Não se bastam. A solidão enruga-lhes a apreensão da realidade. Circunscreve-lhes o mundo, porque estão nus. E a nudez é pecado. E lamentam que ninguém  se  encurrale numa árvore qualquer e descubra o paraíso.

 

O mundo está aí. Tal e qual como o Homem quer. À sua imagem e semelhança. Com cobras e lagartos. Guerras e fomes. Misérias humanas originais. Pequenas e grandes transgressões, porque as fotocópias já não são desculpa e o pecado não é o original. Um copo de água ajuda?

 

28
Jul08

perceber

Paola

a consciência humana é gulosa 

 

 

A admiração começa onde acaba a compreensão. Charles Baudelaire, poeta francês, tem razão. Por isso, é que nos assombramos quando deixamos de perceber. Com os sentidos todos. Também com o corpo. E com a alma que não sei bem o que é, mas é aquela parte de nós que tem direito a ir para o céu. Os humanos têm, os outros bichos não. Até concordo. Em alguma coisa nos havíamos de diferenciar. Que seja na alma. Às vezes, a filosofia dá jeito.

  

Admiro-me sempre. Só porque tenho sensibilidades plurais. Tanto que não entendo que queiram reduzir os professores deste país a uma multidão silenciosa. A circunscrevê-los porque gente com opinião.

 

E não posso deixar de me admirar, no sentido de não ficar indiferente, quando leio que se preparam para oferecer um pequeno complemento salarial a alguns avaliadores, que é como quem diz a alguns controladores, isto é, aos capatazes. Esse complemento não excederá os 100 euros mensais mas será suficiente para comprar as consciências de milhares de aspirantes a controladores. Em época de profunda crise económica, social e cultural e face à aparente ausência de alternativa ideológica e económica ao modelo único globalista neoliberal, 100 euros é o suficiente para comprar as consciências e a vontade de milhares de professores que o são sem vocação. E serão esses, os professores sem vocação, que mais depressa venderão as suas consciências a trairão os colegas de profissão. E é então que esta manobra de grande perversidade atingirá o seu zénite: os piores professores, aqueles que vieram parar ao ensino sem vocação, serão gradualmente transformados em capatazes e, subitamente, uma realidade tão maligna que eu diria digna de uma conspiração à escala nacional, virá à luz do dia: os piores professores farão parte dos eleitos, serão os capatazes, muitos deles ficarão libertos da maçada das aulas e verão a sua traição recompensada com um complemento salarial. Este cenário parece-lhe irreal? Digno de um filme de terror? É apenas a realidade apanhada no seu processo de criação de forma idêntica à do fotógrafo que consegue uma foto no exacto momento em que as minúsculas cobras se libertam dos ovos. *

 

E eu, que não suporto cobras,  já sinto na pele, e o tacto é um sentido, a gula da ascensão… Não comprendo, mas também não admiro. Apenas me espanto.

 

E o inferno passará a ser um local arejado, com várias salas, a que se acede por um enorme portão. E as almas que por lá andam são obrigadas a trabalhar como fazedores de papéis. E ardem, ardem sem que ninguém perceba o seu sofrimento.

 

* Ramiro Marques

 

imagem da Internet

27
Jul08

conduzir

Paola

as crianças precisam de colo

 

pai é pai - sem preconceitos

 

 

 

Ontem, vi carrinhos com bebés conduzidos pelos pais. E crianças ao colo dos pais. E pais às cambalhotas com os filhos na relva. Alguns faziam corridas de bicicleta. Outros salpicavam-se na água que se fingia cascata na cidade. Com afectos, despidos de preconceitos idiotas. E as mães? Perguntei. Estas crianças não têm mães? Insisti sorrindo, já que elas andavam por ali, e controlavam tudo, ainda grávidas de orgulho. Parece que só têm pai! Acrescentei. A resposta saiu com um sorriso transparente e fresco. Hoje é sábado. É dia do pai... E ria.  Não. Os pais têm que sê-lo a tempo inteiro. Caso contrário não são pais ou não sabem ou não querem. E nem calculam o que perdem.

 

Um mal estúpido e feiíssimo impede-me de ter pai ao sábado. E nos dias todos. E tenho saudades… Porque hoje é domingo. E ao domingo eu tinha sempre o meu pai.

 

Hoje é domingo e recebi este vídeo de um amigo. E neste mundo admirável, uma criança é sempre um prazer inesperado.

 

 

26
Jul08

poder

Paola

 não coma mais colesterol

 

 

 

Um sábado gostoso. Passado como quem saboreia os acepipes que, na mesa, alimentam a fome que se senta à espera de mais. Um menu de colesterol para quem come. E comemos todos. Esta história das refeições terem preços acessíveis e depois colocarem à frente dos nossos olhos ou da boca, o que é bem pior, aquelas coisas fantásticas não dá. Desde as azeitonas e manteiga ao queijo, do presunto à linguiça assada, morcela e outros que tais, torresmos ou gambas à la qualquer coisa, de preferência em francês que é para dar um tom distinto ao repasto, alheira de caça, presunto com melão e tudo o mais que nos passar pela cabeça, vale tudo neste jogo de sedução alimentar. E mais o vinho daqui e dali e também do estrangeiro. E depois? Encomenda-se o quê, quando já se comeu o que havia em cima da mesa? Nem valia a pena perguntar. Mas lá vem o empregado muito solícito, simpático e, na maioria das vezes, barrigudo e com bigode enrodilhado nas pontas. A encomenda faz-se no meio de estou cheio, já não posso mais e coisas assim. Todavia pode-se. E come-se e bebe-se e come-se. Muito bem. Tão bem que se volta na primeira oportunidade que surja. E recomenda-se. E eles também vão e comem. E recomendam. E voltam.

 

Portugal é um país onde se come bem. Sem dúvida. Portugal é um país onde a obesidade é um dos principais agentes de risco para o aumento de outras doenças que lesam a saúde. Hipertensão, diabetes, colesterol alto e acidentes vasculares cerebrais sucedem-se. A estatísca confirma a enfermidade. Portugal é culpado de estar doente. E continua a servir admiráveis iguarias à mesa da gente. É verdade que estes hábitos vêm de outros tempos. Logo com o nosso primeiro. D. Afonso Henriques era muito forte e alto, caso pouco comum na época. Obviamente devido a uma excelente alimentação. Só pode. Não é por acaso que as desavenças com a mãe deram no que deram. E o Capuchinho Vermelho? E a boca enorme do lobo que queria comer a menina? E os pitéus que a mãe colocara na cesta para a avó? Enfim, não há mesmo cura para esta gula colectiva. Este gostinho transmite-se por direito de sucessão. Nunca mais nos livramos do maldito do colesterol.

 

Por causa do colesterol, e porque gosto, prescindi das entradas. Comi muita salada, fruta e peixe. E bebi água, claro. Não vá o diabo tecê-las. Não me consta que o dito tenha morrido de ataque cardíaco.

 

E antes e depois e durante, passeámos palavras ao sabor do vento e do sol. E da fome. E deambulámos à beira-rio. Sentimos a brisa. O fresco. Espreitámos o horizonte. Entre nós e o Sol e as nuvens existia o ar! E rimos até as gargalhadas  atrapalharem as lágrimas. É que pela manhã não renunciámos à tigelinha de arroz-doce. Com canela. É só ao sábado…

 

 

(fotografia de Olhares, Fotografia Online)

24
Jul08

Jacinta - V

Paola

 Jacinta chora. Constrange-se com a dor que lhe assola um corpo carregado de lembranças e afeições. O corpo de Jacinta tem paixões. Umas passaram por ela sem que ficassem vestígios. Esfumaram-se com o tempo. À medida que o seu corpo florescia. Enrolaram-se na areia dos desertos que percorreu. Da praia que descobriu. E as gaivotas gritaram restos que lhe povoam o ser.

 

O primeiro beijo… Puro e inocente. Infantil. Foi à tardinha, já o Sol se escondia no horizonte, nas traseiras da casa que habitava com os pais e a avó paterna. O João beijou-lhe o rosto. Ela corou e ele também. Um beijo espantado. Desprevenido. Disseram-se palavras que nenhum escutou. Porque em redor das suas cabeças, as emoções gaguejavam promessas de amor eterno. Os lábios do João rebolaram mansamente nos dela. E foi assim, que a partir daquele instante, passou a ter um namorado. Todas as meninas da sua idade tinham. Clandestino. Sem que ela tivesse concorrido para o facto. Aconteceu e pronto. Jacinta e João viveram o segredo com a intensidade de quem descobre um ninho no laranjal. Lembra-se vagamente do rosto do rapaz. Acredita que se tenha feito homem. Eventualmente bonito. Provavelmente feliz.

 

Jacinta amou mais vezes. Talvez não. Acredita que a amaram. Permitiu que a amassem. Se amar é sofrer, então apenas uma vez amou de verdade. Amar é só olhar. Apenas uma vez olhou. E sorriu. Ser bonita dá-lhe firmeza e inunda-lhe a alma de ousadias. Mas apetece-lhe ser menos apetecível. Tantas vezes que pediu para ser feia. Mesmo que a subjectividade a deixasse na dúvida. Beleza é uma percepção individual. Agrada aos sentidos. Não se explica. Depende do contexto e do universo de quem a observa. Saboreava o prazer com que os olhos azuis do seu pai lhe repetiam a vaidade. O orgulho. E a sua mãe que a alindava com vestidos de estrear ao domingo. Porque afectos incorruptíveis. Legítimos e sãos.

 

Todavia gostava da perturbação com que os homens olhavam para si. E os namoros calhavam, na sua vida, naturalmente. Depois caíam no chão. Como as laranjas no laranjal. Por causa da seca. Diferenciavam-se pelo sabor. Umas doces, outras tão amargas que nem para o amor serviam. Por vezes, desconfiava. E incomodava-se. Considerava-se um troféu. Uma variedade rara que fora apanhada. E enjaulada. Patenteada. Jacinta suspeitava dos homens. E não sabia se o amor lhes germinava no coração ou nos olhos. Predadores obstinados. Não podem ver um rabo de saias, troçava com acidez.

 

Numa manhã fresca de Outono, e tantas já passaram, abalançou-se no desvario. Foi ela que deu o primeiro sinal. Só porque lhe apeteceu. Queria jogar um jogo que ainda não havia jogado. Agitar-se. Ainda era uma mulher muito bonita. E ele disse-lhe que sim.

 

Está calor. Jacinta, ainda nua e prostrada na cama, chora convulsivamente. A sua mão direita aperta com lágrimas um telemóvel com uma chamada não atendida. Jacinta chora as tábuas partidas de um amor que desistiu de consertar. E navega ao sabor da maré e do vento da sua paixão.

 


 

Foto da Internet

23
Jul08

pescar

Paola

 

melhor vida para o coração

 

 

Pela boca morre o peixe. Pois morre e ainda bem. Gosto dele e não o comeria vivo. Agora que é uma chatice é. Não havia necessidade de um rifão popular para adubar a morte. Já basta saber que ela existe. E chega com eufemismos diletantes, por isso irritantes. Óbito, falecimento e término da vida não é tudo o mesmo? Ir para o céu é uma expressão danada. Então a gente morre e inicia uma viagem destas? É que o céu é longe. Se as agências funerárias já cobram uma quantia elevada só para o cemitério local, imagine-se para o céu. Bater a bota não gosto mesmo. Porque impossível, porque grotesca. Ninguém se lembra de comemorar a sua morte com uma batidinha de botas. A morte é tão lerda que não merece primores vocabulares. Tem o que merece. Cá para mim, até podia ser pior. Há que enxovalhá-la para que tenha vergonha naquela fuça hedionda.

 

O peixe até pode esticar o pernil que é como quem diz a barbatana. Ninguém o manda ser guloso e engolir o anzol. Coitado! Foi assim que o compuseram. Só acata as disposições da natureza. Por isso é peixe e não outro bicho qualquer. A morte também, só que mais horrenda. Prefiro a boca do peixe. Grande ou pequena tanto faz, desde que peixe. Não se pense que a humana boca não é dada a devorar ardis alimentares.

 

Terrível, a boca da gente. E é por estas e por outras que ando para aqui preocupada com a minha. Só porque não quero morrer com ela aberta. Não questiono se vou para o Céu ou para o Inferno. A minha metafísica é tão terrena! Quem cá ficar que decida para onde me quer enviar. E é por causa da minha boca que tenho a cabeça, pelos vistos o corpo, cheio de triglicerídeos. Uma palavra cuidada para nomear a destrambelhada da gordura que me circula no sangue.

 

De boca bem fechada, pasmo-me com a coisa. Saturadas e insaturadas. Mono e poli. Ómega 3 e ómega 6. Origem vegetal e origem animal. Enfim, uma parafernália de prefixos e sufixos. Gorduras boas e gorduras más. E eu sei escolher de palavras difíceis e conceitos tumultuosos e nocivos para o meu coração? Por isso, vou aboli-los do meu dicionário. Não as quero, não.

 

Prefiro a prelecção clara da médica que escreveu e escreveu numa folha de papel com muitas linhas e depois disse e disse. Também explicou. E murchou a minha vontade. Tudo aceitável. Tudo exequível. Mas limitar a minha gula queijeira ao despretensioso queijinho fresco é que não lhe perdoo. E os amanteigados, meu Deus?

 

Porque pela boca morre o peixe, até vou cumprir a deliberação. Contrariada. Mas vou. Pelo menos vou tentar. Pelo coração. Gosto de me admirar e de me desiludir.  De amar e de sentir. De chorar e de rir. Gargalhar com lágrimas. Preciso do coração, não é?

 

22
Jul08

peneirar

Paola

traições amigáveis

 

 as 3 peneiras

 

Ao passar pelo Revisitar a Educação  deparei-me com este texto de António Botto. O boato e a mentira não são invenções modernas, todos sabemos. Deve ter nascido no momento em que o Homem começou a ouvir. Depois a falar. Há muito que andam por aí, têm a mesma idade que nós. São males danados na vida da gente. Propagados por quem não tem nada para fazer. Também por quem os edifica na má fé. Na ingorância ou na vontade descontrolada e narcísica de afirmação. São bocas escancaradas convencidas que morder é próprio do cão. Existem mentirosos de todas as cores. Temos boateiros de todos os sabores. Que os há, há.

 

Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”. Talvez não seja o caso. Não há sentidos ocultos. Interpretações hermenêuticas. Se uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma inferência moral, então este texto é uma alegoria. Ou quase.

 

Vale como exemplo.


O pequeno Raúl saiu da escola a correr, chegou a casa muito excitado e, depois de beijar a mãe, exclamou:
- Já sabes o que dizem do António?
- Espera um pouco, tem paciência. Antes de principiares, lembra-te das três peneiras…
- Mas quais peneiras, minha mãe?
- Sim; vais ouvir e saberás. A primeira chama-se verdade. Tens a certeza de que é certo o que me queres dizer?
- Não; se é certo, não sei.
- Vês?... E a segunda chama-se benevolência. Será benevolente, será boa, essa notícia?
- Não, minha mãe, não é boa.
- E a terceira chama-se necessidade. Será necessário repetires tudo isso que te contaram desse teu camarada e amigo?
- Não, minha mãe.
- Pois se não é necessário, nem benevolente, e talvez nem seja verdade, entendo que é preferível, meu filho, calares a tua boca.


In Os contos de António Botto (1942).

 

 

21
Jul08

enganar

Paola

  perigos e mentiras

 

   não tenho 3 meses de férias!

 

Sou do tempo em que a escola que respondia às necessidades de uma sociedade calada e torturada. Aprendia-se o que eles queriam que nós aprendêssemos num sistema agrilhoado e centralizado. Num livro único. A preto e branco. Com ilustrações estúpidas e distantes da realidade.

 

A escola que o Estado Novo impôs em Portugal era elitista. A população portuguesa era analfabeta. E Portugal a ignorância foi o expediente de um regime que censurava a informação e proibia as liberdades políticas. Impunha uma orientação religiosa. Separava os rapazes e das raparigas. Os professores utilizavam com muita frequência castigos corporais severos. É tudo verdade. Há testemunhos.

 

Atravessei a chamada “primavera marcelista”, apesar da minha inconsciência política. Por isso, só depois de 1974 é que comecei a perceber a razão dos meus acidentes escolares. Mas não me queixo muito. Uma ou outra reguada e pouco mais. O que odiei mesmo foram as chamadas a História, já no ensino secundário.

 

Nada do que aprendi, ou memorizei, me fez mal. Nem sequer a catequese ao sábado e a meia hora diária a cargo das freiras que viviam num convento mesmo ali ao lado. Talvez tenham contribuído para a construção da minha religiosidade. Ou a falta dela. Agradeço-lhes o tributo para o aperfeiçoamento do meu sentido crítico. É que a algumas práticas da igreja católica portuguesa não lembram ao mafarrico. Nem o óleo de fígado de bacalhau que provocava vómitos contidos e lágrimas pequeninas, não fosse a professora ver. Também não sei se fez bem. Mal não fez. Até as fotografias colocadas por cima do quadro, idolatradas por obrigação, foram úteis para mim. Aprendi a reconhecer os rostos daqueles que sugaram a liberdade e ofenderam um povo com a violência do poder.

 

Não foram as lições de Salazar, e seguidores, que me fizeram pensar como eles. Todavia, esses preceitos ensinaram-me que os deveria rejeitar. E ainda hoje não aceito que o País seja, como era, representado por uma galeria de santos, mártires e heróis. E tantos que fazem a primeira página dos jornais…

 

Aguentei e teimei. Hoje sou professora. Com um programa centralizado, e único, que cumpro. Com liberdade de dizer. Cerca de 34 anos depois de Abril, a sociedade portuguesa ainda não compreendeu que os professores de hoje não são os de então. Que se é professor 365, ou 366, dias por ano. E ao serão. E ao fim-de-semana. Agora também por email. Porque um professor não é um produto acabado.

 

Hoje, da mesma forma que odeio um regime que analfabetizou um país, não suporto que me digam que tenho 3 meses de férias. É que não tenho, nem nunca tive.

 

Quanto tempo mais é preciso para que se saiba que os professores não têm culpa das cambalhotas que o ensino tem dado em Portugal? É que eles também são vítimas.

 

Já chega! Abril cumpriu-se em 1974…

 

 

(Fotografia da Internet)

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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