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ponto de admiração

ponto de admiração

30
Set08

jogar

Paola

  da Internet

 

 

A bola rebola

de cá para lá

num jogo ofendido

em campo perdido

desafio a correr

de tanto saber...

 

Percebem-se silêncios e ansiedades. Tremores e presunções. A bola aquieta-se. Depois, sai a correr para o campo de lá. A jogar. Mas os passos são curtos e é empurrada para o lado de cá. Movimenta-se junto à linha. Sem rede. Sabe que não a pode pisar. Só que pisa. Fora! E ela reentra e movimenta-se pela esquerda. Apressa-se e ataca. Erro tamanho! É sacudida. Esmurrada. E como se já não bastasse, pontapeada. Que crueldade colossal! Bola parada, volta a correr. Sobra para o outro. Mais um pontapé. Não desiste. Para cá, para lá. Pelos flancos e vem ao centro. Não gosta. E escuta aplausos, ignora os apupos. Entusiasma-se no desassossego de jogar. E aí vai ela. E é. Não foi. Quase! Salta e corre e salta. É impelida pelas faltas pessoais. E corre para o campo contrário. Dizem-lhe que o pontapé é livre. Não percebe. Pergunta quanta liberdade tem. Dão-lhe uma ração de quarenta e cinco minutos. Duas vezes com intervalo. Por vezes mais. Só quando há prolongamento. E persiste. Rola e rebola. Falta! É falta! Zás! Mais um pontapé. Assim não dá. O importante é estar no seu lugar. Driblar. Saltar por cima e voltar a jogar.

 

Masoquismo, decididamente. A bola é sexualmente perversa. Envolve-se num acto de amor real. E todos contemplam um espectáculo de humilhação pública. Espancada, atada e submetida ao sofrimento. E o prazer sexual, deste redondo ser, consolida-se na mágoa. Ameaçado e submetido a abusos. E persiste em correr de lá para cá. De cá para lá. Para fora. Ao lado. Dá canto. Dá? Não foi! Está a ser. Quase…

 

 

28
Set08

Jacinta - IX

Paola

  de Paola (Ericeira)

A calçada espreguiça-se até lá ao fundo. Onde se acantoa na rotunda das oliveiras. E as árvores caminharam de longe para ali. Generosas. Tolerantes. Espacialmente descompostas. Aquele não é o seu lugar e é por isso que se alvoroçam. E não riem, nem dão fruto. E os carros buzinam descontentamentos aos seus ouvidos. Travam receios. Aceleram pressas que lhes são impostas. E as raízes embrenham-se na terra na ininterrupta procura de água. E os automobilistas transtornados colhem folhas ávidos de misericórdia divina. Sem perceber que as estão a mutilar. E que aquilo não é redondo. Mas serve para andar à roda.

 

Na calçada, os passos andam de lá para cá. E ao contrário. É o tráfego normal para aquele fim de manhã. Numa terra em que as estatísticas denunciam envelhecimentos enrugados. Sentados nos bancos do jardim. Do outro lado da estrada. À espera que os venham substituir. O Ti António espreita clientes que fugiram para o gigantesco supermercado inaugurado no fim-de-semana. E lamenta que na sua mercearia só caibam três pessoas de cada vez. Porque o rol também ocupa espaço e não parou de crescer. Jacinta cumprimenta-o com um sorriso brando. De quem não tem tempo para desperdiçar e não quer encetar diálogos à porta da venda. O Ti António devolve-lhe um aceno escancarado, ao mesmo tempo que os seus olhos se mimoseiam com a passagem da mulher. Cada vez mais bonita, consideram ainda deslumbrados.

 

Agora, com mais serenidade, ela percorre o cinzento e empoeirado lajeado. Espezinhado por rotinas quotidianas. Que não deixam rasto. São pés ritmados no compasso dos afazeres. Tum-tum-tic-tic-tic… Que não entendem que aquela não é a calçada da glória. Que os seus apelidos permanecerão, como até ali, na sombra do analfabetismo. Há muito que cessaram os cantos na ladeira. E se estabeleceu a indolência afadigada que vomita ritmos estupidamente constantes. Jacinta vive um daqueles dias em que as palavras maltratam as suas reflexões. E as pedras da calçada são arma de arremesso. Sublevam-se, escarafuncham e abalam. As pedras são palavras que lhe sovam o corpo.

 

Jacinta pára junto ao número sete. Um primeiro andar, no fim da rua. Olha para a janela que está escancarada. Estendidos no parapeito, os tapetes denunciam arrumos e limpezas antecipadas. Não era sexta-feira. Nem sábado. Somente um dia da semana. O seu dedo indicador pressiona o botão da campainha. Trim-trim-triiim… som e voz de quem exige a porta aberta.

 

- Jacinta, querida! Entra… Podias ter telefonado …

 

27
Set08

apetecer

Paola

de Paola, as galinhas

Hoje é sábado, mas não me é consentido falar… Por isso, vou apenas murmurar. E se alguém perceber? Não, é melhor suspirar … Ai que me estão a ouvir! Assim não dá. Irra! Tanto que me apetece gritar. Talvez, rumorejar. Ai, ai que me estão a escutar. Tenho mesmo é que me calar.

 

Shiu! Apetece-me arroz-doce. Com muita canela. Admirável. Só mais um segredo pequenino e muito baixinho, sim? Tanto que me apetece praguejar! Mas só poder cacarejar é muito pouco. E muito devagarinho, apetece concluir que não percebo nada disto... Se eu disser que anda meio mundo a fingir é apenas porque me apatece. Ou então sou eu, que não me apetece pensar. Ou não me apetece escrever. Pode apetecer! Ou não? Mas apetece-me ser barco. Procurar o mar e vaguear. Pular as ondas. As tempestades e os temporais. E não voltar ao cais. Apetece-me!

 

 

26
Set08

ter

Paola

  de Jorge Soares, libelinha

 

Porque ter e não ter é mesmo a questão. Ou ter até ver. Ou não ter e até ter. E que tenho eu? Não tenho voz para falar. Nem mesmo murmurar. Nem vontade para esbracejar. Apenas uma lágrima se lançou da janela. Sem saber onde fica  o mar. Sem ter jeito para tocar viola. Porque não tem intenção de cantar. Só de chorar. E quando ter se conjuga sempre no presente e repentinamente já só tem condicional? Sem futuro. E com um pretérito muito imperfeito? Ter e perder, ai tanto que dói. E é neste instante que as letras se volatilizam e deixam as palavras nuas. E as frases despedaçam-se em interjeições que são frases excessivamente impressionáveis. E muitas admirações. E acentos. Graves. Também agudos. E tem pontos finais.

 

- Quem lá ia muitas vezes era o seu paizinho que Deus tem…

 

Não sei se tem! Se Deus tem o meu pai é porque já o levou. Se o pai é meu não o deveria ter eu? Não tenho notícia que o possessivo não especifique a posse. A sintaxe tem regras. O sujeito sou eu. Nem concordo que Ele mo tenha surripiado. Nem Lhe fica bem tamanha ousadia. Os pais são dos filhos, acabou-se a discussão. E os filhos dos pais. Mas não entendo a razão por que se roubam amores. Nem o regozijo a mim. Ter, não tenho. E ele tem? Tem!

 

 

25
Set08

pensar

Paola

de Paola (Guincho, Cascais)

 

O que é pensar. Como fazê-lo? E procurei razões que suportassem o acto. Avaliei os custos, já que, nos tempos que correm, é questão determinante. Pagam-me para pensar? Eu sei a resposta, mas enfim… Interroguei-me sobre a indispensabilidade do gesto. É mesmo preciso atormentar o cérebro com reflexões sofisticadas? Tentei perceber os tempos e os espaços. Quando? Devo pensar todos os dias? Há dias consagrados à razão? Não creio ser essencial pensar em todo o lado. Nem correcto. Só traria aborrecimentos. As pessoas a conversar disto e daquilo e eu a pensar. Não resultaria. Posteriormente, encetei outro tipo de raciocínio. E a dúvida instalou-se. Pensar sozinha não me levará a lado nenhum. É muito aborrecido. Mas pensar não é, como nascer e morrer, um acto individual? Não, não estou a pensar bem. Até são dois momentos da vida muito partilhados. Um para rir outro para chorar. No colectivo. Pensar acompanhada envolve alguma promiscuidade. Usurpa intimidade. Nem tudo o que passa pela cabeça é dizível. Antes uno e intransmissível. Penso eu! E como actuar? Em voz alta? No mais clandestino silêncio? Digo ou não digo o que estou a pensar? E o que estou a pensar será mesmo pensar? E acredito que o que estou a pensar  não interesse a ninguém.

 

Pensar humano é. É? Então, pensamos todos. Sim! E ele, como é que pensa? Olha para o poema. E depois? Finge-se escritor ou contenta-se em ser autor? Talvez não e apenas seja um pensador… que pensou em voz alta. Ou o outro. Fernando Pessoa cogitou. Tanto que se multiplicou. Facto que em nada me ajudou. Continuo sem saber o que é pensar. Vou experimentar pensar por conta própria. Talvez resulte. Não dá! Preciso de alguém. De alguma coisa. Dos pensamentos dos outros. E não é honesto. É? Só que não tenho alternativa.

 

Pensar é conhecer. Julgar e raciocinar. E também comparar, compreender e saber. E não é evoluir, engendrar, sentir, criar, construir e destruir? Se assim for, exige esforço. Tanto trabalho é excessivo. Nem sei se sou capaz. Às vezes não sou. Mas não desisto de pensar que um aluno, que tenha as soluções preparadas e definitivas, não será capaz de resolver problemas do dia-a-dia. Nem tomar decisões importantes. Tão pouco pensar. Sozinho ou acompanhado. Mas pensar cansa, por isso não gosta. Não está treinado para pular e saltar. Sem parar. Não está disposto a dar uma oportunidade à solução.

 

Talvez seja por tudo isto, ou exactamente por nada disto, que o Simão estendeu os olhos pela sala. Depois olhou para mim.

 

- Professora, desista… Não é melhor dar já a resposta?

 

Já estava cansado. E eu também. Porque pensar dá trabalho. Então, eu dei!

 

 

23
Set08

matar

Paola

de Paola (Gincho, Cascais)

 

não é preciso

 

Mato moscas. As que penetram sem autorização. E mato mosquitos. Todinhos, que são bicho ruim. E mato a sede. Sempre que posso. Normalmente com água que é coisa boa. Mesmo que a inodora, insípida e incolor seja uma miragem. Mas gosto tanto das garrafinhas com tampas multicores. Comprei-as por reconhecer que até ficam bem no frigorífico. Amarelas e com formas. E falam comigo. Dizem… É segredo. Não explico, não vá alguém querer também. E mato os aranhiços. Só que fico cheia de hesitações. Mato? Não mato? Mato! Mas dizem que é dinheiro… E tanta falta que ele me faz. Em vez do pobre aranhão, devia era matar o bicho. O outro. O da manhã. Não tenho tempo!! O tempo? Todos os dias. E por mim matava-o todo. Talvez assim vivesse mais uns dias. Só que o danado não deixa. E foge. Voa. Não que se enlate em fluidos que facultam asas. Pelo que sei, nem bebe. Ou bebe? Se calhar eu é que não sei. E enfia-se nos relógios que tenho. É por estas, e por outras evidentemente, que deixei de dar corda ao relógio da sala. Calculo que o matei. Paciência! Não era vida para mim. Sempre a badalar. Porque era hora. Por fim metade só. Azucrinava-me os ouvidos com o quarto dela. Agora que o calei, sinto saudade. Pobrezinho! Aquilo não se faz. Só o matei, nada mais. E mato a fome, com certeza. E quem não mata? Antes ela do que eu. Todos os dias. Não tenho é tempo. Devo dar corda ao relógio? Não dou! Não preciso dele para comer. Já me basta a barriga a dar horas. Ufa! Matar, matar… Só mato a saudade. Desato acorrer e vou lá. Pronto! Já está. O pior mesmo é os que já morreram . Lembro-me deles. Afago-os com minha memória e peço-lhes que não esperem por mim. Às vezes choro. Outras mato-me a chorar. E lá vou eu trabalhar. Outra morte certa. Há quem se mate a actuar. Eu só fico moribunda. Que sensata que eu sou! Mentira! Há dias que morro, só que ressuscito. Ele não ressuscitou? Então eu também posso. Atenção, que também já morri de amor. Mas isso foi muito bom. Agora só gosto. Muito! Deles. E é admirável. E mato-me a rir. Só quando a deliberação esguicha cá de dentro. De fora não dá. Choro e tudo. Atitude sem sentido, aquilo nem é um funeral. Juro que não estrangulei o casamento. Ele é que morreu. Estava lá e vi. Outro dia, torturei não sei quantos, pedaços de mim. Irritei-me. Guerra de eus. Empertigados e ruins. Todos com opinião. A querer decisão. Já chega o outro, que se desdisse em pessoa. Ele foi capaz. Matar o desgraçado do vício é premente. Só que há uns que não mato. Nem que morra por causa deles. Outros, deixo-os definhar. Não me importo. Nunca matei uma galinha. Coitadinha, degoladinha! E mais não matei. Ou já me esqueci? Ou não quero dizer? Não me lembro.

 

Com tanta coisa para matar, há que esganar o cão do vizinho? Ou o vizinho. Ou a vida. Não concordo! Não! Mas não é por isso que me vou matar. Pode-se sempre dar cabo do stress. É palavra estranha e não deita pinga de sangue!

 

21
Set08

Jacinta VIII

Paola

de Jorge Soares (Parque das Nações, Lisboa)

 

A única janela aberta é a de Jacinta. Ela olha para o céu e contempla a promessa de um dia admirável. Um dia que surge azul-celeste. Foi o Sol que o forçou a sair da noite. E a ela também. Foram raios excitados que a expulsaram. E coriscos. Os que obstaram que o sono se fizesse sem intervalos. Serenamente. A noite passara. Apenas passara. Assim, da mesma forma que o tempo. Apesar do relógio. Apesar de si. Um tempo que ela tem como amante. E a quem reivindica tolerância. Para esquecer. Só por fora. Ambos sabem que as memórias não se apagam. Somente vivem no silêncio da voz. Na suavidade da sua pele. E nos dois pequenos gansos que poisam sobre o televisor que dorme com ela no quarto. Em faiança. Pintados à mão em tons de rosa. Porque os viu carinhosos e harmoniosos. Ele comprou-lhos. Para lhe dar prazer, mimava-a. Tanto! E cheiravam a flores sorridentes. Hoje, um adorno inodoro em cima de televisão de alcova. Apenas estão.

 

A chamada, que ela não atendeu, permanece em cima da cama. Moribunda. Com morte anunciada. Ela decidira assim, na certeza de um entendimento honesto e íntegro. E é nessa convicção que olha para o monte. Ali, onde os devaneios se sucedem. E vê o Sol nascer todas as manhãs. E chora sofrimentos de doer. Que a enlouquecem. Jacinta vestiu-se para olhar de longe um amor que foi seu porque quis. Mas já não é pela opção que fez. Acabara o tempo de uma bela história de paixões imprudentes. E sobrou tempo para cruzar mares com vagas de arrependimento e ondas de incerteza. Desertos despidos de afectos e beijos amantes. Sobejaram noites com cansaços e dores extensíssimas. E é ela que apazigua o coração. Que lhe diz que a dor vai passar. E mente. E pede-lhe ânimo para permanecer no corpo que tem. Roga-lhe que não se inquiete. Que controle os sentidos. Todavia, que não lhe apague da memória o Amor. Tanto que ela o deseja e quer…

 

Jacinta olha para dentro e sente que perdera a noção do tempo. Combinara sair cedo. No chão, junto à janela, morre um roupão vermelho que um dia viera de longe. Toma um duche apressado. Veste-se e sai. Perfeitamente bonita. Estrondosamente elegante.  Convictamente sedutora. Os gatos empoleiram-se no parapeito da janela. Vêem-na partir. Olham-se e assustam-se com a partida arrebatada. E o Sol adormece enroscado nos felinos que falseiam um sono desapaixonado. Refastelados. Com o rabo assombrado. Como só os gatos dormem. Até que ela volte. E a janela enrodilha-se com os bichanos ao Sol.

 

O telemóvel ficou em cima da cama. De propósito. Por quem não quer chorar outra vez.Tocou uma vez, duas… Calou-se. E os gatos persistem no sono soalheiro. Das escadas ecoam silhuetas de passos apressados. De salto alto. Salto agulha, como ela explica. Na calçada, Jacinta apressa o tempo. Um empedrado pisado e polido por encontros e desencontros. Numa digressão de promessas desajustadas. E o tempo corre, corre… sem alterar a paisagem. Jacinta iniciou a corrida que a conduzirá pelo caminho que escolheu. Com sentido único, apesar da possibilidade de voltar atrás. E recomeçar tudo outra vez... Jacinta olha em frente.  À procura do mar... para desabafar. Para que , sempre que lá voltar, as gaivotas saibam do que ela está a falar. De dez admiráveis anos. Vezes 365 dias. E noites!

 

 

 

20
Set08

sabadar

Paola

da Internet

 

 

Eu amo silêncio. Um lugar onde me construo. Confluência das minhas memórias. Um espaço que tem ruídos, barulhos e sons. Do mar e da terra. De mim. E muitas palavras que não digo. Mas que falo. Certa que não é por muito falar que digo sentidos. Ou que narro histórias de encantar...

 

E hoje, já que é sábado, cumpro o ritual do arroz-doce. Com muita canela e silêncios interrompidos por palavras. E gargalhadas. Até agora, andei a sabadar. E quero que tudo o mais vá para o Inferno...

 

19
Set08

calar

Paola

Salvador Dalí  A persistência da Memória

 

atropelos sem memória

 

Shiu! Da minha boca jorram descansos hesitantes. Usurpados e clandestinos. Dos meus lábios não escorrem palavras azedas e desconfiadas. Shiu! Oiço uivos de gente assustada. Melopeias atrapalhadas na toada dos caminhos. Andamentos vertiginosos. Shiu! E lá ao fundo, um pássaro executa primorosamente o adágio da manhã. Engulo a tentação de respirar. E do pátio regressam vozes aflautadas. Euforias guinchadas. Abraços perplexos. Bocas escancaradas vertem pedaços de mar e de sol. De ócios enérgicos. E olhos suspensos colam-se às janelas. Shiu! Escuto portas aferrolhadas que se desfecham.  Chaves que tilintam cuidados de última hora. Sorvo ânsias de falar. Segredo salvações, no intervalo, empoleiradas ao portão. Shiu! As vozes passeiam felinas no corredor. Atropelos cinzentos, mesclados de cores do Verão. Desenham-se escoltas no parapeito da janela. Shiuuuuuuu! Estou oculta. Ninguém sabe que estou acantonada, ali! Não quero ser tela surrealista. Representação irracional, longe do mundo real. Shiu! Vejo e escuto. Obsessões humanas donde escorre a passagem do tempo e da memória. Da memória que se esgota. Do tempo que tem olhos. Não sei se vê. Shiu! Estou refém de mim. Aqui! Com recordações. Sem elas, não há expectativas. Porém, o tempo desvirtua-se. E cala-se, também. Flacidamente. Como os relógios. Shiu! Estou sentada. Shiu!

 

Fotografia da Internet

 

18
Set08

avelhar

Paola

de Paola (Guincho, Cascais)

 

palavras com rugas e artrite reumatóide

 

A televisão está ligada desde cedo. As notícias divulgam-se ao ritmo das teclas do comando. A publicidade seduz pelo brilho e pela cor. As músicas são tão bonitas, comenta frequentemente. Não sabe nenhuma. Nem sequer é capaz de dar conta das novidades do país. Muito menos do estrangeiro. Não lhe interessam. Só quer a televisão ligada. Por causa do programa das receitas. Todos os dias uma. Que imaginação! Mas ela há muito que não cozinhava. As senhoras do Lar cuidavam do assunto. Por causa da companhia. E o aparelho cumpria a sua função. Falava. Cantava. Dançava. Representava. E até batia palmas. Só que ela não via. Bastava-lhe ouvir… Por vezes, adormecia no sofá. Todas as tardes dormita um pouco. No intervalo do sono que não chega de uma vez só.

 

Sentados no sofá falam palavras que não se olham nos olhos. Frases a granel. Vocábulos cansados por tantas vezes repetidos. Com pertinência. Sem nexo. Também sem necessidade. Sobretudo sem vontade. Nem sempre entendidos. E que interessava isso, se o importante é falar? Ambos desejam aquela sala povoada por vozes que falem palavras. Mesmo que as não percebem. Preferem o televisor. Porque fala e não os aborrece. Não têm que lhe responder. E não entendem que esteja sempre a falar de idosos deprimidos. Eles sabem que o envelhecimento corresponde aos danos da passagem do tempo. No entanto, recusam depressões caladas. Pelo menos, enquanto se amparam um ao outro. E é naquele canto da sala, em frente do ecrã, que emitem palavras ocas e vãs. Uma espécie de feira falante sobre temas mundanos. Com rifas que nenhum compra, não vá sair-lhe um termo que não quer ouvir. Não se queixam da solidão. Porém, gostam de se ouvir, apesar de já não se entenderem. Dos 55 anos de vida em comum, sobra-lhes a condescendência. A partilha do mesmo espaço. Há muito que não se agastam com disputas estéreis. Nem com outras. Decidiram não se cansar e amealhar o tempo que lhes resta. E as palavras. Proferem as indispensáveis. Silenciam desejos escondidos. Intenções ocultas. Amansam decisões que as senhoras do Lar não validam. Nem a neta que não está para os aturar. A Ritinha é uma menina. Eternamente menina. A deles. É neta, é para ser cuidada, amada e saboreada. E para estragar com mimos. Terreno arável onde semeiam amor, afecto, meiguice. Apenas coisas boas.

 

- Avóóóóóóóóó?

- Entra, querida!

- ya!

- Conta lá, como foi o teu dia na escola?

- Fixe! Tasse bem. Tenho muitos amigos. E conversamos muito. Assim tipo falar mesmo, sabes?

- Ai, filha!?

- Prontos, tão bem? A gente estamos. A cota deu-me uns trocos. Vou morfar cuns amigos.

- Ai, filha!?

- Xelente! Tão tão giros! Tão fixes! Tou tão contente. Vó, tou mesmo super, mega fixe.

- Ai, filha!

- Prontos! Só vim dar um kiss. Agora vou bazar.

- Ai, filha!

- Tchau. Jinhos. Amanhã volto.

 

Olham um para o outro, com a cumplicidade que os olhos contêm. Ele pergunta o que a neta tinha dito. Quando voltaria. E quis saber se a rapariga estava bem. Ela não respondeu. Não sabia. Mas que estava muito feliz com a visita. Afinal, a moça sempre tinha falado e aquela casa necessitava de palavras. E, outra vez, tal e qual como nas outras vezes, o silêncio interpõe-se entre ambos. Porque as palavras estão gastas. Raladas pela vida. Olham para a televisão. Mas não vêem que está a passar o programa das receitas.

 

Ele pensa. E ela percebe. Que as palavras têm vida. Que fazem um percurso e têm um curso como as pessoas. Que nascem e morrem. Que imitam e são imitadas. Que crescem. E até ressuscitam. E o vocabulário deles é muito parco. Sem neologismos. Nem tão pouco estrangeirismos. Nem percebem nada de registos de língua. Mas já tinham ouvido falar… na televisão. E a avó acaricia a neta. Que é nova. Que agora fala-se assim. O avô assume-se velho e lamenta que as suas palavras tenham envelhecido com ele. Que tenham rugas e sofram de artrite reumatóide. Que algumas até morram. O homem levanta-se e informa que vai dormir. Que repousasse bem e não se inquietasse, deseja a esposa dedicada. É que todos os dias nascem palavras jovens. Para contrabalançar, acrescentou. Já ele tinha fechado a porta do quarto.

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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