A imaginação é coisa danada. Enrodilha-se em nós. Seduz-nos e depois abala. Não se deixa aprisionar, a safada. E quando lhe perguntamos o nome, desata a correr. E ri, ri e põe a língua de fora. Não me apanhas! Não me apanhas! Lá, Lá, Lá…E eu, que já não tenho idade para correrias, deixo-a ir. Tenho lá capacidade mental para representar a coisa. Usa os sentidos, exorta. E eu olho boquiaberta para o semáforo. Aquele, no cruzamento, à esquerda. Vermelho! Estou feita. Sempre que aqui chego, é isto. E ela passou, que eu vi. Foi-se sem travões. Que não é mulher para obedecer a luzes castradoras. E circula arrebatada. Estouvada! Extravagâncias de madame. Imagination, ma chérie. Imagination! Presumida! E deixo-a ir. Desisto, pronto. Volta! Nada. E lá ao fundo, no jardim, vejo-a a admirar um bem-me-quer. Aposto, que um dia destes, me vem com fantasias. E explica que é criatividade artística. Como se tivesse perfumado as flores e dado voz aos pássaros. Devaneios de artista! E eu tenho para mim que imaginar é ver. E quando o lápis substitui a voz é escrever.
Se alguém encontrar a imaginação por aí, não se admire. Por favor, digam-lhe para vir aqui. Sim?
"Pequenos contos numa prosa feita poesia e simplicidade. Páginas em que os gatos se passeiam a partilhar encantos e mistérios, só para apreciadores."
pegadas do retorno
- 09 horas e 50 minutos
Café. Sempre admirável. Mais dois dedos de conversa. Da treta, claro. Mas atenua males maiores. Deformação profissional. Antigamente, regressava-se descansado e feliz. Hoje, é notícia de televisão, uma nova praga doentia: depressão pós-férias. O retorno preenche-se com ansiedade, distúrbios de sono, fraqueza física e moral, hipersecreção das glândulas sebáceas e mal-estar generalizado.Ai que novidade!
- 10 horas e 10 minutos
Cemitério. Funeral. Mais um abraço de solidariedade. Uma lágrima de cumplicidade. Tudo por causa de um pai que partiu. O meu foi-se embora em Janeiro. E eu acho que os pais deviam estar quietos.
- 11 horas e 30 minutos
Escola. Beijos bronzeados com sabor a Agosto. Beijoroquei esta e aquela. E eles. Apesar de escassos. Poupei alguns beijinhos. Os que ficaram na terra das cruzes.
Retorno. 10 cêntimos. E um papel minúsculo. Escrevi o meu nome completo. Porque não sabiam como chamar-me, certamente. Agora que sabem, tudo será mais acolhedor. E o nome da escola. Parece-me bem. Tantas vezes a baptizaram que devem andar desorientados. Fiz o que podia. E a data. Para que servirão os calendários? Um em cada secretária! De seguida, deparei-me com mais uma linha para preencher. Motivo? Motivo de quê? Perguntei, não fosse o meu contributo importar. Do retorno! Explicaram. E não é óbvio? É de lei, não? Pois! Escreva só "férias". Férias??!! Eu escrevi, mas juro que não entendi. Então a razão de eu ir trabalhar são as férias? Pronto. Que seja! Há férias assim. Garanto que prefiro as de ir.
Tarefas. Não as vi. Pareceu-me que ainda andam enroladas na areia. No placar jazem papéis fora do prazo. Não faço planos. Que pena!
Regresso. Amanhã, talvez. Para quê? Logo se vê. Admirável.E como eu não vi nada, não sei quando volto. Amanhã, talvez.
- 11 horas e 59 minutos
Estação dos comboios. Veio um e eu fui com ele. O T faz anos e fui almoçar com pequeno. O resto não conto. Coisas pessoais. De família. Siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim?
Compras. Um livro. Isto posso revelar. Amados Gatos de José Jorge Letria. É que há sempre um gato por detrás de um grande nome. E eu ainda estou para aqui a matutar na história do meu retorno... e ali, não haverá gato?
E tudo isto é o fadocá da terra. E um enorme ponto de admiração!
Hoje, cumprem-se dois anos da tua vida. Naquele dia, já à noitinha, as flores pintaram-se de cores admiráveis. Os pássaros entoaram cantigas de embalar. Ainda mais harmoniosas. Também mais inolvidáveis. Magníficos acordes. Excelsas consonâncias. O sol brilhou com nova pujança. E nessa noite, as estrelas sorriram. Choraram lágrimas de rir. E silenciaram-se porque as palavras emudeceram no sublime momento em que te vi. Nenhuma fazia sentido. A comoção espalhou-se pelo meu corpo com a certeza de te ter ali.
Sabes, Vénus é a deusa do Amor e da Beleza. E que importância tem, se tu és vida e corpo que eu posso beijar? O seu nome tem epítetos forjados no mito. Nada comparável com o teu, mesmo que ignorado por Camões. O teu canta a aglutinação de santo e lago. Pressagia que suplantarás os escolhos da existência. O teu nome tem orgulhos e audácias. Arrojado. E com ele cumprirás êxitos e paixões. E o teu epíteto já é adorado. O templo, em que vives, não tem a mesma grandiosidade que o da deusa-mulher. Não faz mal. O mito foi publicado no papel. Alegórico e simbólico. Moldou o sagrado de devoções que já não existem. Tu és.O olharde Vénus é vago e perdido na tela. Os seus olhos, quase estrábicos, foram um ideal de beleza. Os teus têm mar. E céu. E o deslumbramento que o admirável proporciona. E entre o Renascimento e o Nascimento, eu escolho-te a ti. Na epopeia camoniana, é deusa-madrinha dos heróis. lusos. Um ornato secundário. Mitológico. Porém, o maravilhoso és tu.
Apele de Vénus é da cor do marfim, com confusão do branco, amarelado e rósea. É excessivamente perfeita. A tua tem brilho natural. Sem amálgama de tintas. Ocabelo de Vénus alarga-se e ondula pelo corpo, aprisionando-se na tela de Botticelli. O teu é Sol e luz e brilho. Naturalmente, vida. O rostomostra-se eternamente jovem. Que importância tem, se mentir é feio? A boca perdurará fechada. E tu choras e ris e dizes palavras ainda incompreensíveis. Olhos claros? Ela que olhe para ti. Ostenta uma fisionomia de melífera melancolia. A brandura da feição insinua uma benignidade moral que purifica a deusa pagã. Não te importes, meu menino. Às vezes, tu és assim. Mas muito mais. Ela não ri, nem chora. Coitada! Nem há notícia de ter gargalhado. A atitude é de estátua envelhecida. Nada que se compare com a frescura das correrias que fazes no jardim. Etambém tu representasa natureza plural do amor. Quanto às qualidades espirituais e humanas? Estimo-as superiores. Sim?
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]