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ponto de admiração

ponto de admiração

31
Out08

passarinhar

Paola

 de Jorge Soares 

Sempre que passarinho, oiço pardais, tentilhões, poupas e muitos piscos. Pássaros. Muitos pássaros no olival. Também no medronhal. E lá em baixo, junto ao sobreiro inclinado pela vida. Foi o vento que o encolheu. Passarinhar sabe a mistério. Tem segredos e enredos de criança. Uma correria na direcção do ouro. Do paraíso perdido. Por isso, passarinhar é demanda. Trajecto de vida. Atalhos feitos e desfeitos no limite da saudade.

 
Sempre que passarinho, descubro o charco. Largo e arredondado. Com muito junco e pedaços de areia enxovalhada pela lama. Com o junco, fazia cadeiras. Muito pequeninas. Para a boneca. Na areia, os pássaros matavam a sede. Bebiam descansos de dias a passarinhar. Sem saber andar. Antes saltitar. A passarada caía no logro. Na rede ágil que puxava, camuflada numa cabana fraudulenta e engendrada com canas e matos roubados às margens do pântano. Enredavam-se no visco peganhento e nojento que lhes capturava os pés e os proibia de passarinhar. Armadilhas manhosas e dolosas, desleais, mas inculpadas. Era a menina a passarinhar. Uma menina que não sabia que Deus ensinou os pássaros a voar. Por isso, lhes deu asas mescladas de galhardia, audácia e muita gentileza. Que eles exibem sempre que voluteiam no ar. E ensinou-os a cantar. Cada um com um repertório singular. E os pássaros exibem um sublime refinamento vocal. A voz, o volume e a vibração garantem a sua sobrevivência. E encantam as manhãs. Os pássaros passarinham pelo céu, porque gostam de vadiar. E, do alto, poder pipilar que para voar não é precisa a chave da gaiola. Na infância, aprendi a passarinhar. Mas já me esqueci.
 
A disposição para passarinhar ficou. A minha mãe, sempre que branqueava o chão da cozinha, expulsava-me dali. Zangava-se com estorvos à limpeza. E não compreendia a razão do meu passarinhar. E eu não gostava nada que ela me acusasse de passarinhar. O canário, na gaiola, abstraía-se da polémica e eu há muito que não acorrentava pássaros. Eles é que me seduziam. Nem queria! Foi coisa de brincar. Se ela não aprovava que eu andasse de um lado para o outro a esborratar-lhe os mosaicos, deveria dizê-lo. Sem invocar os passarinhos.
 
Tenho o direito a passarinhar. Quando passarinho, abre-se o horizonte sem arame farpado. Ali, onde pára a liberdade de ver o que quero olhar. De fitar a luz que me circunda e agasalhar-me no ninho da minha inculpabilidade estouvada. Vou, porque amanhã é sábado, passarinhar até à Dona Perpétua por causa do arroz-doce. Com sabor a canela e polvilhado com gargalhadas a passarinhar por aí.
 
29
Out08

borboletear

Paola

 de Jorge Soares

 

A borboleta borboleteia-se em movimentos singulares. Subtilezas de bailarina. Quando sobe nas pontas das suas asas encontra uma leveza sublime e uma delicadeza ímpar. Invejo-lhe a doçura das cores compostas nas escamas profusamente emolduradas em complexas colorações. A graciosidade do andar. E quando descansa, a borboleta dobra as suas asas para cima. E faz preces de polinização. Vagabunda do Sol. Aventureira da vida, esvoaça no limite da beleza. No casulo, acontecera magia enfeitiçada e, num momento de singular benignidade, explodiu uma insólita excelência. De flor em flor, graciosamente. Sem compreender que o belo é efémero. Que a flor vai definhar e sucumbir. E ela é uma presença fugaz. Ao sabor do Sol que no Inverno não tem calor. Apenas ilumina dias minguados e grisalhos. O amarelo está desbotado. E a borboleta não sabe que, no Sul e no Norte, o Inverno não acontece ao mesmo tempo. O Sol também se borboleteia. Acorda todas as manhãs. Ciclicamente. A borboleta borboleteia como se fosse o último dia. Pisa o palco uma só vez, sem direito a bisar. A borboleta desconhece a força da sua fragilidade. Quer voar, voar perdidamente aqui e ali e mais além. Como uma alma que se liberta à procura do infinito, porque se sabe mestra na transformação.

 
E eu, que olho a borboleta com olhos estúpidos de deslumbramento, não concebo a destreza. Nem a leviandade de quem vive a saltitar. Invejo-lhe o casulo que foi seu e que desbaratou. Na metamorfósica ânsia de querer volutear. E já com as asas feridas pelo vento, irrompe na mais admirável voluptuosidade, modificando-se com a vida. Sempre a borboletear. Sente o equívoco do ar nas asas e corre para investigar a função das mudanças. Para compreender processo da metamorfose organizacional. Que a sua foi natural.
 
A solidez do meu casulo ostenta brechas e fendas. Hiatos tamanhos. A claridade trespassa e estonteia-me. O vidro do casulo estilhaçou-se bruscamente… Há destroços. Asas que sucumbem. Já não vejo sonhos a desenhar passos de dança delicados. Apenas sorrisos esboçados. Movimentos tracejados. Vacilantes e perplexos.
 
E eu só quero esticar as minhas asas contundidas e desaparecer no ar… Precipitada ambição. A avestruz é uma ave que nem sabe voar!
 
27
Out08

confidenciar

Paola

                       da Internet

Agora que já nos conhecemos melhor, vou confidenciar uma coisa. Tenho para mim, provavelmente nem é verdade, que tenho bom gosto. Apenas e só porque gosto e pronto. Nem creio que seja indispensável mais nada. Nunca aceitei desculpas e narrativas fantásticas para justificar os gostos. A peculiaridade de cada opção é um traço de cada um de nós. São estes riscos que nos estruturam e assinalam, no quadro da vida, a individualidade humana. Veja-se o caso das ovelhas. Até balem com a mesma cadência. A uma só voz. Sou pela diferença e ponto final. Recuso gregarismos ovinos e outros que tais. Carneiro não conta, que nasci em Abril.

 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou dizer-vos que tenho gostos e desgostos. Plurais e muito individuais. Outros não. Tão banais que toda a gente tem. Nem me importo, nem vou suicidar-me no cruzamento do caminho para onde convergem sabores e paladares tão iguais. Ter gosto é admirável. E quando o podemos oferecer como uma oração à liberdade, ainda melhor. Mesmo muito ecléticos. Tão contraditórios que não entendíveis. Os meus são assim. Há outros que não. Sou pela fidelização a crenças universais. E muito pessoais.
 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou assumir que é desacertado escarnecer de predilecções particulares. É falta de educação e revela incivilidade. Eu sei que ter bom gosto é melhor que mau gosto, mas mau gosto é melhor que gosto nenhum. Concordemos! Apesar de ser certo que nem todos o podem ter. Só que isso não vem a propósito. Nem sei por que me lembrei. A padronização do gosto é castradora. Eis uma excelente razão para ter gosto. O meu. O que eu não gosto mesmo é do bom gosto. Nem de quem tem bom gosto, convencido que o adjectivo é superior a outro em boa qualidade. Eu falei de qualidade, falei?
 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou declarar que gosto exponencialmente de música. De toda não, só da que gosto. Com o meu gosto muito eclético. Naturalmente condenado à falta de originalidade e de coesão. Gosto de vozes que me acariciem o coração. De músicas que aferrolhem os meus olhos e me conduzam por aí. De textos que me acicatam o corpo. Sem qualquer explicação ou fundamentação musical.
 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou anunciar que gosto demasiado de música em francês. Pela semelhança de emoções, pela sonoridade da língua, apesar do accent e do ritmo. No entanto, sempre que a ouço e preciso dela todos os dias, a melancolia embaça a minha voz. Exactamente como quando oiço o luso fado… e concluo que a responsabilidade é dos romanos que reconciliaram as línguas. E não satisfeitos com a conquista,  as emoções e os sentimentos também. 
 
Agora que já nos conhecemos, não me digam que é pirosice e muito foleiro... E até gosto do bouledogue francês. Eventualmete, um dos cães mais feios ao cimo da terra. Tem meiguice no olhar e ladra como os outros. Gosto do ritmo e da harmoniosa cadência da linguagem. Caniche não, pela sofisticação.

 

 

26
Out08

danser

Paola

C'est dimanche, aujourd'hui. Moi, je ne pense qu'au soleil, mais c'est le froid qui avance. Et là bas, c'est la mer qui se jette dans mes rêves, mais le dimanche me prend dans ses bras.

 

Et quand il m'invite à danser, je m'en fou du monde entier...

 

 

Profitez ce dimanche et dansez avec lui... et du beau temps!

 

Para ver o vídeo, desligue o rádio...

 

 

Zaho, La Roue Tourne

24
Out08

divinizar

Paola

da Internet

 

Há culturas abundantemente abençoadas. Talvez uma opção genética, quem sabe cultural. Ou simplesmente porque sim. E não me digam que se deve um a desenvolvimento psíquico muito incipiente, apenas suportado pela  percepção da realidade física circundante! A verdade é que há quem se dê ao luxo de ter um deus para cada oração. Já os romanos e os gregos haviam feito o mesmo, por isso não estranho. Facto que atesta o seu enorme bom senso. Da particularização de cada deus só podem resultar benefícios, mercês e graças muito celestiais. Verdade que dá garantia de apoio personalizado e individualizado. Os deuses, masculinos, femininos ou de género indefinido, cumpriam bem a sua função. Apesar das hierarquias. Apesar da glória. Por vezes, erravam e davam-se a promiscuidades divinais. Até fatais e muito disputadas. À margem da lei. Por isso, eram castigadas.

 

- Ícaro! Ícaro! Ícaroooo!, chamou o pai muito alvoroçado.

 

Não obteve resposta. E lá ao fundo, no mar, os seus olhos estupefactos encontraram as penas que flutuavam nas ondas. Nos desencontros da maré. Não lhe foi difícil descobrir onde Ícaro caíra.  Morto! O rapaz morrera afogado na sua desarvorada ganância. Santa ingenuidade! Não percebeu, o garoto, que as suas asas eram de cera. E que o Sol não se alcança. Nem se olha de perto. E que voar, sem ter asas para o fazer, exige protecção sobrenatural. Descuido incipiente!

 

Os enganos dos deuses aumentavam sempre que dos humanos se aproximavam. Indigência inexplicável e sem qualquer ganho imediato. Até lhes retirava importância. Não careciam de tanta dependência. Nem tão-pouco de submissão. Se não abandonassem Olimpo nada disto teria acontecido. Olimpo era o monte onde viviam as divindades. Um espaço etéreo, porém nada que se assemelhasse a um luxuoso monte alentejano. Dos mercantilizados nos jornais. Com uma área de muitos hectares, entre sobreiros e montados e com muitas propriedades empoleiradas no cimo das colinas. O luxo e a sofisticação ofuscam Olimpo. Só assim se aceita a escapadela. Coisas de deuses, já que o Olimpo é na Lua.

 

Os romanos andaram por cá. E eu não entendo, por que razão não lhes pilhámos os deuses. Tantos que eles tinham, meu Deus! Só por cortesia e muita parcimónia. Até a pedir somos pobres. Valha-me Deus! No entanto, há muitos humanos, descontentes com a opção monoteísta, que se crêem divindades. Se algum vier ter comigo, oferecer-lhe-ei um par de asas de cerume. Multicores para que não subsistam dúvidas. E dir-lhes-ei que neste país não há lugar para o politeísmo.

 

E eu, para que se cumpra o culto de sábado, suplico a Ceres que ampare as searas. Rogo-lhe protecção divina para o arroz-doce da Dona Perpétua. Divinal com canela.

 

23
Out08

engadanhar

Paola

 da Internet

 

Há muito tempo, gadanhava-se a valer. A vida trabalhava-se na agricultura. Na dos outros que tinham terras imensas. Quintas e quintais. Herdades e montes. Lavras de arroz e searas de trigo. A vida era pintada de amarelo-esverdeado. Escuro, quase preto. E quando a fotossíntese se cumpria era uma alegria clandestina. Iniciava-se a cadeia alimentar. E a fome grassava por ali. Sem esse admirável fenómeno seriam incapazes de sobreviver. Por carência de verde. Já Aristóteles dizia que as plantas necessitavam do Sol para se esverdearam à vontade. Só que o Sol não sabia que a gadanha era uma criatura nefasta. Dois cabos menores seguiam sempre a par. Por isso, a lâmina feroz. Cortante e muito torturante. Exigia arte e engenho, manuseio de quem entendia do assunto. Tudo era feito com muito cuidado. Às vezes, apenas para desorientar os incautos, mudavam-lhe o nome. Tratavam-na por tu, o que dizia da intimidade. Ou não. E a gadanha tanto respondia por gadanho como por alfange. Mas acudia. E cortava. O trigo, as canas, o junco, a erva. A daninha e a outra. Não entendia as diferenças. Apenas o verde. Então, gadanhava tudo o que serpenteasse verdura. Alguns lavradores munidos da alfaia agrícola, e por tanto a usar, até se persuadiram que morreriam a gadanhar. Sempre a gadanhar, acabaram por entender que aquilo era só um adorno em mãos erradas. Sujas e enjoadas. Inquinadas por bebedeiras de comando. Convencidas que a cultura não era popular. E mascarados de cavaleiros apocalípticos, trouxeram a peste, guerra, fome e morte. Esqueceram-se que não podiam causar danos à erva. Nem às árvores. E o verde sobreviveu nas bocas moribundas dos corpos. A terra floreou.

 

Nos tempos actuais, as ceifeiras mecânicas substituíram a tradição. A gadanha esgadanhou-se na prateleira do museu. Na adega, talvez no barracão. É sobras de dias gastos a chorar as canas esquartejadas à beira do rio. A gadanha é termo afectivo. Património das minhas memórias visuais. De longe, apenas de muito longe. Acabou-se a possibilidade de gadanhar. Porque se foi, a gadanha.

 

Hoje sinto-me esgadanhada pela indolência de uns. Ignorância de outros. Inoperância de muitos. Inépcia de quase todos para labutar com a gadanha. Acintosas vontades. E por mim que estou desassossegada com tanta falta de jeito.

 

E é por ver tanta gente a gadanhar que não percebo a razão de estar assim. Muito engadanhada. Faço riscos na areia, ao acaso. E lá ao fundo, vejo linhas inúteis. E percebo que gadanhar é profissão sem futuro. Certamente, por falta de jeito.  É que as mãos também se enganam.

 

20
Out08

beijar

Paola

 O Beijo, de Rodin (Internet)

 

As pessoas estão a morrer à míngua de afectos. A mercantilização das sociedades é no que dá. As avós têm mais que fazer. É trabalhar até morrer e os contos estão nos livros. O problema é lê-los. A paciência esgota-se antes do final do mês. As palavras são difíceis, a gente não fala assim. E até já se perdeu o hábito de escrever. Os filhos e os netos, que sobrinhos, primos, afilhados e aparentados são, vivem na rua. Até quererem, até poderem. Só que na rua há carros e alcatrão sem espaço para jogar. Os meninos estão desamparados e dizem-se órfãos de afectos. Não sabem amar. Tão pouco acariciar e já nem brincar. Estão nervosos. Muito hiperactivos e pouco receptivos. Mas tratam o psicólogo por tu. Os adultos silenciam-se com medo de errar. Ou por não saber. Ou por pensar que chega o jantar.

 

             - Os pais não têm tempo…

- Não! Tempo têm, mas não sabem explicar.

- Eu não tenho pai…

- Então e eu? Nem tenho mãe!

- Eu tenho! Faltam-me os avós.

 

Foram comentários que ouvi. De bocas que crescem famintas de saber e aprender a amar. De bocas que sorriam maliciosamente:

 

- Quando não sei, pergunto aos amigos.

- E se eles não sabem?

- Há livros… e filmes e Internet. Tenho televisão no quarto, computador…

 

Foram observações que ouvi. De meninos resignados. Alguém os convenceu que os afectos, o amor, a sexualidade, a paixão e a desilusão se aprende nos filmes que eu não quero dizer. Porque porcos, feios e maus. Arquitectados. Montagem mentirosa e remunerada que não é capaz de dizer aos meninos que amar é natural.

 

Talvez seja por tanto querer aprender que eles chegam à aula perdidos de sono. Só que as cadeiras são desconfortáveis e eu não sei como é que eles elaboram a realidade nas suas cabecitas. Nem que realidade. Nem vejo necessidade para tamanha banalização do sexo. Nem nunca senti falta de livro de instruções. De prescrições simuladas e de receituários semelhados. Sou pelo sentimento. A dois. Um beijo dá-se, não se pede. Nem vale espreitar!

 

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários. 

                                                                                                 Carlos Drummond de Andrade

 

19
Out08

quitter

Paola

Porque hoje é domingo, deixo-vos um poema ensanguentado, numa voz que morde a mágoa de um amor perdido. A música chora arrebatadamente como se não houvesse amanhã e as palavras suam, gesticulam, dançam e trepam para agarrar o tempo perdido... E tudo pára, escuta e olha. Jacques Brel entrega-se num acto de amor. Apaixonadamente! Com a alma despida, percorre caminhos e tacteia o corpo que não está ali, mas que ele sente. Admirável interpretação!

 

Provavelmente a melhor canção de amor...talvez... en français c'est encore mieux!

 

 


 
Ne me quitte pas, Jacques Brel
 
18
Out08

combalir

Paola

  da Internet

 

No mundo há seres humanos. Um mundo colorido com as cores todas que o mundo tem. Com cantos e recantos. Tantos que nem sei quais. Eu tenho o meu cantinho. Às vezes, perco-me nele. Calcorreio caminhos. Trilhos e avenidas. Veredas e rotinas. No entanto, o que mais gosto é de subir ao monte. Fico mais próxima do céu. Conto as estrelas e afago a lua. Ao sol não faço nada. Ele tolda-me a visão. Ao rei presto vassalagem. O meu olhar vira-se para baixo e vislumbro o mar. Tão largo que banha o mundo inteiro. No monte eu posso reaprender a ouvir o canto dos pássaros. E redescobrir flores a desabrochar. Aceitar a dávida e lamentar a efemeridade da beleza. Da vida. Também, quem sabe, adivinhar o sorriso doce da criança que cresce como a flor. Sentir a força da amizade e o prazer da cumplicidade. Sentir o vento e gargalhar, antes que me congele o coração. Ou me emudeça a voz. É um sopro que desce da colina. Corre pela encosta e arrebata o ar em movimento. Desafia o frio e alguns calafrios. No monte, gozo de abrigo e digo que outros ventos virão. Que ao amanhecer, brisas suaves chegarão com contentamentos na mão. Ou não!

 

Na minha cidade o vento tem temores e faz o meu cabelo dançar. Agitação fria que não deixa ouvir os gemidos. São corpos enfermos que gritam dores silenciosas. Erros ortográficos que o vento gerou. Males vindos de longe ou daqui. Fragilidades copiadas dali. Promiscuidades terrenas. Cópias arrebatadoras. Progresso tirânico que não ouve o vento! E vulgariza as dores ao ignorar humanidades.

 

Na minha rua as pessoas têm rosto. Aqui o vento não desce pela colina. Trepa-a e fala crueldades. Geladas. São os ventos de hoje que semeiam fraquezas humanas. Combale e deprime. Porque o Mundo não goza de boa saúde. Está debilitado. E muito angustiado.

 

Na minha rua os riscos amarelos são amarelo-desbotado. E todos os dias há mais um… Eu detesto que risquem a minha rua deste modo. Fico muito combalida. E tenho para mim que a culpa não é do vento. Ele só assiste ao temporal. E Deus? Ele sabe que as crianças não desenham assim. São os adultos, Senhor!

 

Ao sábado não riscam a minha rua. Por isso, vou comer arroz-doce. Antes que a tracejem para mim.

 

 

17
Out08

arrear

Paola

  de João Palmela

 

O todo abafa as partes. E estas, por mais que se esforcem, nunca serão um todo. Há brechas. Deslizamentos territoriais. Invasões regionais e, até, submissões a modismos nacionais. A zombaria e os risinhos amarelados pela ignorância. Pela normalização déspota e segregadora de alforrias individuais. À diversidade autónoma, e autóctone, sobrepõe-se a regra. E a tolerância é uma utopia nos manuais escolares. Académicos e com linguajar regulamentado. De vez em quando uma incursão. Um desvio. Mas controlado e muito bem explicado. Enquadrado por desígnios correntes e muito bem cuidados.

 

Falo de palavras e de sintaxe. De idiomatismos que adornam o falar. Que definem fronteiras afectivas. E cuja riqueza lexical ultrapassa normativos e acordos. Apenas e só, porque genuínos. Melódicos e perifrásticos. Por isso, fantásticos. E muito respeitáveis.

 

Falo de sonoridades de verdade. Enternecedoras. Faço-o porque me lembrei da minha prima Laurinda. Uma rapariga acantonada entre o Sado e o Atlântico. Mais tarde fugiu para a cidade. Perdi-lhe o rasto.

 

Ó Laurindinha, vem à janela 

Ver a tua prima, que ela vai p'ra longe

Se ela vai p'ra lá, deixá-la ir 

Ela é moça nova, mas não torna a vir 

Ele não torna a vir, se ela não quiser 

Ainda vem a tempo, de te ver mulher.

 

A minha prima tinha a singularidade de cantar palavras. De enrolá-las na areia. E tinham sabor a maresia. E o volume das marés. As palavras da minha prima iluminavam-se com uma consoante rolada. De carácter vibrante e muito soante. Arreia, isto é arreia! Ó rapariga, arreia é pôr no chão e eu não tenho nada na mão. Tanto que ela rria! A ignorante era eu. Na verdade, ela pronunciava areia como eu. Mas mais molhada.

 

E hoje, sempre que me ouço, sinto-me apátrida. Porque as minhas palavras não rolam os rês. E eu gostava de ter uma pátria linguística. Como a minha prima Laurrinda.

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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