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ponto de admiração

ponto de admiração

29
Nov08

subir

Paola

 da internet

 

 conversas na ladeira

 

 

O vento chicoteava o rosto como quem rouba um beijo. E as mãos como se estivesse a trabalhar. De quando em vez, agitava-se. Enrolava-se com prazer. Ofegava palavras vermelhas de paixão. Percebia-se no seu tocar. Depois, zangava-se. Afecto torvelinho num concerto perturbado. E divulgava-se na ladeira sem se importar com as pegadas que deixava no asfalto. Bradava que os caminhos eram feitos para caminhar e as ladeiras para ladear. Para baixo e para cima, sempre a rodopiar. E praguejava muito. Espumava gestos enfurecidos. No seu coração remoinhavam predadores que mordiam a solidão. E subia…
 
O Sol estendia-se ao comprido. Numa nesga da calçada. Sorria nas portas que encontrava. Esticava os dedos e empurrava o vento que não sossegava. Amornava a encosta de alcatrão, calçada de pedras cinzentas. Está frio! Gritava-se lá do alto. Pois está… ressoava do outro lado. E decidiram sentar-se a meio da ladeira. No exacto ponto onde o Sol se empoleirava e o vento não chegava. Vamos tricotar palavras. Vamos? A outra aceitou.
 
E tanto que ladearam as palavras. Esgotaram-nas antes do vento. Durante o Sol. Ela afiançava que sim. Que tinha a certeza. Mas a outra duvidava. Que nunca tinha ouvido falar. Que não deveria ser assim. Verdade! Afiançava na certeza de quem lho tinha dito. E a outra acreditava. Que bem se estava ao sol. Lamentava que o vento dificultasse o tricotar. Perguntava uma se tinha visto. Ela vira e até chorara. Garantia-lhe a beleza da emoção. Nem tinha podido. Essa era a sua intenção. Apenas não foi capaz. Adormecera estoirada, logo que se sentara no sofá. Queixava-se. Que gostava tanto, que nunca perdia um. Que aborrecimento! Não se preocupasse que ela contava. Não perdera pitada. E a narrativa era interrompida por desabafos frios. Que o vento é que estragava tudo. É claro que o vento ouvia e não gostava. Informava que tinha de ir, ao mesmo tempo que exigia companhia. Ela respondia-lhe que não. Que já era tarde. Que tinha coisas para acabar. E o marido até planeava jantar. Credo! Antes de almoço a confeccionar o jantar. Que assim se cansava e que a culpa não era da ladeira. E travaram-se de razões. Uma porque era cedo, a outra assegurava o atraso. Que a vida era um enfado. Logo retomaram o assunto. Que assim não podia ser. Pois não! Mas nada podiam mudar. Não, não tinha ouvido nada. Foi uma desgraça. Em pleno dia. À hora do Sol. Se não lho tivessem afiançado, nem acreditava. Bandidos. Não fazem nada! E a outra, conhecedora do assunto, aprontou-se a explicar que a culpa era deles. Davam cabo disto tudo. Que nunca se vira coisa assim. Excediam-se nas palavras e multiplicavam os gestos. Que ninguém fazia nada, repetia. Por isso, dava sempre razão ao marido. Desenvolvia ele que o mal vinha de fora. De muito longe, embora não soubesse fielmente o lugar. E que com aquelas conversas, ela adormecia. Ele lia, nesse caso sabia. Tornava ao jantar. Que ia cozinhar isto, talvez aquilo. Não se importava. Ele que comesse o que ela fizesse. Que uma mulher não tem tempo para tudo. A lida da casa dava trabalho! Pior do que subir a ladeira.
 
O homem deve ter jantado. Sentaram-se no sofá descansos do trabalho. Ela dormiu vagarosamente e ele dialogou consigo. Ela ressonava palavras crochetadas ao Sol. Ele afligia-se com a escuridão do silêncio. A outra, à varanda, fumava um loquaz cigarro. Queixava-se de ter pouco saldo no telemóvel. Que a bateria estava a desaparecer. Que tinha estado na ladeira. Que trocara umas palavritas sobre aquilo. Mas sem interesse. Perguntava se já sabia. Se tinha visto até ao fim. E ria.
 
Eu, que não subo a ladeira, desci. Não olhei para trás e fugi dali. E só pararei junto dela. Resguardadas do vento e do Sol, esticaremos as palavras e tricotaremos tanto, mas tanto, que  os dedos permanecerão entorpecidos o dia inteiro. Faremos volutear malmequeres e papoilas. Pétalas e folhas de rosas-do-deserto. As joaninhas voarão envergonhadas por não saber falar. Os gafanhotos pularão excitados pela incapacidade de correr. E as rãs chapinharão no charco, desconjuntando os juncos. Só depois é que subiremos a ladeira...
 
 
27
Nov08

confessar

Paola

 de João Palmela

 

confissões cansadas

 

Não, não é Cansaço...  É fragilidade e muita desilusão. São promessas desenganadas. Mentiras publicadas nos matutinos pela manhã e recontadas à fogueira. São intempéries e vendavais incapazes de derrubar tristezas acabrunhadas. São ecos esfaimados que gritam por aí. São vozes que despejam falsidades e ultrajes no analfabetismo do que estão a dizer.

 
Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão

 
Não, não é Cansaço... É debilidade e muita desilusão. Uma astenia generalizada que me contunde a alma. São vozes desalinhadas a coordenar vitórias silenciadas. São enxovalhos e decisões que revogam decisões. São incompetências decretadas e espartilhadas de mão em mão. É quebranto enguiçado lançado não sei por quem.
 
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
 
 
Não, não é Cansaço... É instabilidade e muita desilusão. São sonhos derrotados. Desencontros desgrenhados. Uma indisposição generalizada. São dores de cabeça. Nódoas na robustez diariamente entristecida. Aperreiam as cãibras que começam a aparecer e afrouxam andamentos e circulares.
 
Não, não é Cansaço... Eu sei que os rios, por muito correr, também se cansam. Mas é verdade que nem todos disputam o mar. Alguns volteiam ao contrário. Por tanto tentar, esgotam-se e acabam na possibilidade de desaparecer. Porque o seu fim é acabar.

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
 

versos de Álvaro de Campos, Poemas

25
Nov08

mentir

Paola
da Internet
 
 mentiras persistentes 
 
Era uma vez um menino muito mentiroso. Todos os dias dizia mentiras como se estivesse a falar verdade. Vomitava mentiras como quem desabrocha verdades. Dizia-se que tinha perdido o tino, coitado. Que tinha sido apossado por uma daquelas estúpidas doenças que roubam o juízo às pessoas. Sempre que mentia jurava que era verdade. E acreditava!
 
Certo dia, a caminho do emprego, avistou uma claridade assombrosa. Excessiva e refulgente. Ofendida e grandiosa. A excitação arrastou-a para o local. A ignorância do facto não lhe daria descanso. Foi ver.
 
Incrédulo e amedrontado, aproximou-se mansamente. A multidão empecilhava-lhe os olhos. Ouviu gritos histéricos. Clamores extravagantes. Alaridos excêntricos. Irreligiosidades arrogadas. Deus!! É Deus que veio cá abaixo. É Ele, eu conheço-O bem. Jurava-se em uníssono. E as mãos desenhavam o Sinal da Cruz num sacro ritual. Pai Nosso que estais no céu… E o rapaz não cuidava a razão d’ Ele estar ali. Chegaram-lhe ralhos e muitas admoestações. Deus estava arreliado. E ele não percebia se era por estar ali. Tu! A divindade apontou-lhe um dedo de reparos.
 
Deus avisou. Só mais uma mentira. Durante toda a vida. E acrescentou que o limite já fora ultrapassado. Que a tolerância acabara. Que lho quis dizer pessoalmente, porque não confiava nos emissários. E o menino chorou mentirosamente. No entanto, prometeu. Afiançou que não mais mentira. Intrujices nunca mais, nunca mais… Certo que não poderia cumprir.
 
E contou que tinha conversado com o Senhor… Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso! Insultos e ultrajes de quem não sabia a verdade. Que enorme crise de desconfiança! Uma mentira! Nem mais uma, dissera-lhe Ele. Entrou em casa a pensar se  Deus saberia. Se mentir é o mesmo que não dizer a verdade. 
 
Conta-se que o menino não aprendeu a lição. Extraiu pouco do muito. Porém, vive imensamente feliz. Não se tem a certeza se será para sempre.
 
23
Nov08

pavonear

Paola

 da Internet

 

 vaidades espelhadas

 

 

Da estrada vê-se a casa. Pavoneia-se vaidosamente no dorso da duna. Mostra-se de lado e de frente. Acorda de manhã, pinta-se de branco e põe-se à janela. Corpo perfeito com decididas linhas azuis. Sempre a rumorejar promessas de amor. Pela areia ensolarada, descem passos satisfeitos e sobem cansaços suados. Pela ladeira, em movimentos ritmados pelo Sol.

 
A casa insiste na sua verdade. Autenticidade, acrescenta, se muito a indispõem. Diz-se assim. Que nem gosta de presunções. Que a beleza é natural. Nega-se na policromia colorida, que é coisa do pretensioso pavão. Ela não. É sua condição.
 
A casa contempla o rio que se ajoelha a seus pés. Está apaixonado, coitado! Escreve-lhe poemas de espuma. Marulha-lhe sonatas ao luar. E arremessa-lhe brisas perfumadas com agitações de marés. Ao anoitecer, a  agonia do manso rio ainda é mais triste… Espelha-se no seu amargurado estar. Nas decepcionadas ondas que vêm chorar na praia. Com sabor a sal. E todos os dias ele corre para o mar no desejo de a fazer mudar.São os pinheiros que escondem o ritmo arrebatado daquele gostar. Indefinida eternidade!
 
A casa permanece na duna. O rio é que anda para cá e para lá, sempre ali. São assim. Se não fossem não seriam rio e casa… antes uma rã enlouquecida que almejou ser boi. Tanto o invejou que não retardou a insuflar-se de ares bovinos. Queria ser grande, a tresloucada! E inchou na vaidade da transfiguração. E os outros anuros pediam mais e muito mais. E ela inchou, inchou, inchou! Até que estoirou. Foi a pele que não suportou tão grande vaidade.
 
Essa tola ambição da rã que quer ser forte
Muitos homens conduz ao desespero e à morte.
 
A casa continua na sua verdade E o rio faz-lhe a vontade. O pavão é que pavoneia imodéstia. Perdeu a serenidade.
 
21
Nov08

desertificar

Paola

  da Internet

 

dunas de água

 

 
Grandes são os desertos! No deserto os mares são de areia. As ondas são dunas esmurradas pelo vento. E o vento cospe, nos olhos dos incautos caminhantes, imensidades desabrigadas. E a mentira espalha-se por pungentes e desagasalhadas miragens. Mentiras multiplicadas na escassez da precipitação. No deserto estendem-se erosões eólicas, com espaço para chorar. Gritam-se heresias e abrem-se caminhos para o senhor passar. Pregando na solidão. Rezando a ignorância do seu sermão.
 
Grandes são os desertos! Porém, Santo António escolheu os peixes porque tinha o mar. Ouviram sem falar. Escutaram aplausos e admoestações, os peixes. Mas o pregador não percebeu a presença dos roncadores. Que peixes tão pequenos fossem estrondos ásperos no mar. E existem, sim. O Santo estranhava a ausência de peixes no deserto. São serpentes, cobras e lagartos. E muitos roedores. E porque têm muito calor, desfiguram-se no areeiro. À noite, esguicham das tocas e embebedam-se ao luar.
 
Grandes são os desertos! O vento expulsa as nuvens e dá o lugar ao Sol. Para que ele fervilhe com mais violência. E muita claridade. Corrompe a verdade e institui a sede como genuína. Reflecte desejos e poças de água no chão. E as almas errantes desnudam-se em decepções perturbadoras. A miragem diz que não, prefere falar em ilusão. Sonegando a desilusão.
 
Grandes são os desertos! Por isso, um rio acontece prodigiosamente. Águas sossegadas alvoroçam-se persistentemente na busca do mar. Tudo numa alegre romaria. Com aromas exóticos e areias coloridas. Canela afrodisíaca. Muita. Aromática e com propriedades antidiarreicas. Cuida de úlceras e ajuda a refrear a diabetes. Virtudes num deserto sem mar, mas pródigo em sermões.
 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
 
(A.Campos/F.Pessoa)
 

 

19
Nov08

costurar

Paola

                                                                

 da Internet

 

 

 

Olhava para mim com olhos descontentes. Assustados com necessidades inventadas. Imprescindíveis. Da sua boca brotavam palavras tricotadas em ponto alentejano. Rendas tecidas com linhas encomendadas na loja da esquina. Frases urdidas com os dedos, ao serão, e uma agulha de metal. Com a pronúncia adequada. A entoação ajeitava-se nas paragoges de algodão e seda. Por mais que lhe provasse a minha falta de aptidão para a arte, ela dizia sempre que não. Chuleava palavras de desacordo. Cosia intenções descontentes. E eu, que estava ali, alinhava verdades rendilhadas. Eu não! Que as meninas não eram obrigadas a costurar. Que o tempo da costura já passara. Mentira, tesourava ela. O saber cabe em qualquer lugar. Ponto cadeia! A verdade é que tentei. De imediato me desembaraçou dali. Que eu não tinha jeito nenhum. Apostrofava que haveria de chegar o dia lhe daria razão. Ainda bem que não! Caso contrário, não chegariam as linhas, nem os dedais. E eu nem culpa tinha que houvesse lá em casa uma máquina de costura. Não tinha!

 
Eu sabia conjugar o verbo costurar nos tempos e nas pessoas todas, excepto no eu. E para a regozijar exibia-lhe casacos e camisolas que eu tecera com lãs coloridas. E lençóis com bainhas abertas. Um dia, dei-lhe um vitral enorme. Contornos a tinta-da-china e colorido com cores prateadas roubadas aos chocolates. A perplexidade foi notória. Entre a admiração e a desilusão interpôs o costurado. Os botões e as bainhas. Mas lá ia dizendo que o saber não ocupava lugar. Ao menos isso. Ao menos???? Eu não tinha jeito para aquilo! Nem tenho.
 
Sempre que chegava a casa, dava-lhe conta das minhas aprendizagens escolares. Do empadão ao ponto cruz. Narrava histórias generosas em que misturava a História e a Geografia com os rissóis. A leitura com a escrita E ela estava sempre à minha espera para saber. Hoje, choram as memórias dessas tardes. Dessa época, sobram-me destrezas manuais que já não sei. Não preciso. Foi um tempo que o tempo descoseu.
 
Agora, que estou aqui, pergunto-me se as meninas partilham saberes com as mães. Se ambas estão interessadas em saber. Se as meninas de agora têm vontade de aprender e o que sabem fazer? 
 
Se eu pudesse debruava a vida da minha mãe a ponto grilhão. Muito apertadinho e muito certinho. E ela estaria aqui a sorrir para mim. Pela ignorância do meu costurar.
 
 
 

 

17
Nov08

Espantalhar (os trapos velhos da noite)

Paola

espantalho.jpg

A solidão surge agarrada ao espanta-pardais numa seara de trigo, no Verão, com feições de gente... Paralisado num aborrecimento de pau, ele demora-se na chegada do vento. Exige-lhe desvelos e crónicas de outras eras. E movimenta-se em ritmos perdidos no seu olhar. Serpenteia o coração e ouve o que ele lhe diz. E duas lágrimas desbotadas percorrem os trapos que vestem o espantalho. Para baixo, para orvalhar a raiz. O tempo ignora-o. Não o tem tratado bem. Dias sombrios, com noites de luz.
 
Eu desenterro silêncios ruidosos. Melodia de máscaras. Solilóquio de mim. Procuro-me… e sou ele numa mistura desenfreada de ecos e retalhos. Sou um espantalho dispensável e os pássaros fazem o ninho nas abas do meu chapéu. Sou um espantalho sem perigo, apenas o abrigo de pardais famélicos e sequiosos. Eu não quero a função de espantalhar. Se eu fosse um espantalho chamar-te-ia para junto de mim. Não assustava os corvos, nem os pardais, nem queria a cidade que se avista no fim. Escutava árias de amor com doçura na voz e gritava contra o silêncio. Desmentia os vultos que fogem de mim.
 
Larguei o destino. Ninguém vê  que o tempo é que espantalha assim, que quebra e derrota. Apetece-me fugir dali, porém vou ficar aqui enquanto os piscos cantam no medronhal...
 
(Imagem da Internet)

 

15
Nov08

cambalhotar

Paola

 de  @LIX

 

 

 

 

 

 

 

O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! Num tapete sem fim. Daqui até ao vento. E que, quando lá chegasse, ele me ensinasse a voar e a cambalhotar. Para eu continuar a rodopiar. Tal e qual como se o mundo fosse uma enorme bola de goma-elástica. Colorida e muito divertida. Que me fizesse acreditar o que o meu corpo me obriga esquecer. Que posso saltar com uma perna, correr, nadar, esticar-me ao comprido. Deitar-me no chão. Num tapete vermelho que fingia comigo. E os dois, de mão dada, deslizávamos por aí. Porque a cambalhota é uma volta que se dá de cabeça para baixo. Uma reviravolta. Um trambolhão. Queda, não.

 
O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! Imitar corpos acrobatas. Dançarinos genuínos. Cambalhotas de irrealidades e mais tarde recordar os temporais vencidos no tapete a fugir. Na ausência de astúcias radicais, quedar-me pelas cambalhotas linguísticas. Como os políticos que se entretêm na mudança da convicção. Que cambalhotam sentimentos. Que na face da lei invertem sortes e fados.
 
O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! Ser pedra arrastada  por águas luzentes e cristalinas no leito do rio. Sem ousar pensar que a chávena não pode voar. Porque só tem uma asa. E quando a perdeu, estatelou-se no chão. Em pedaços apartados e descompostos.
 
O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! De fúria e de fraqueza. De Sol morno. De vento fresco dado a cíclicas mutações. Como sopra, o tresloucado! Na sua ansiedade de resfolegar, nem repara que já despi os trajos de Verão.

 

Quando se tem ilusões, e o Sol teima em queimar enganos, o Inverno é uma pirueta com sabor. Como o arroz-doce da dona Perpétua. E é ali que vou iniciar cambalhotas de gargalhar. Fraternas cambalhotas vocabulares. As palavras não capotam, dão cambalhotas, duplo mortal encarpado. E geralmente caem de pé.
 

O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas!  E voar ao contrário.

 

13
Nov08

haver

Paola

 Havia uma avenida que não era uma avenida. Faltava-lhe largura de gentes a voltear. Reflexos de néon e muito devaneio. Mas a avenida era uma avenida com laranjeiras na calçada. Laranjas acicatadas pelas intempéries. Moribundas ao Sol. De açúcares mortiços e caducos. O vento empurrava-as para o chão e os transeuntes pontapeavam-nas muito irritados. Sofriam as laranjas arrumadas na calçada da avenida. A avenida apenas o era pela toponímia ferrada na parede da sapataria da esquina. De quem desce, do lado direito. A avenida era avenida. Tinha, ao longo dos tempos, assumido importâncias na vila. Tudo acontecia ali. Ou nada, porque não acontecia nada na avenida. Somente passos para baixo e para cima. Andares estafados de corpos exaustos. Os olhos não viam nada. Sempre que desciam a avenida, faziam-no com pressa. Quando a subiam, galgavam passadas para casa.

 
Ele caminhava sempre à frente. Pelo gosto da dianteira. Pela agilidade. Talvez pela oculta ambição de subir a avenida sabendo-se imitado. Talvez predador ao contrário. E galgava as pedras da calçada numa movimentação demasiado veloz para indivíduos da sua espécie. Em silêncio. Sem olhares escusados. Só em frente. De vez em quando para trás. Certificava a perseguição. Era a vida que se propalava pela avenida.
 
Ela simulava-lhe os episódios desenhados na calçada da avenida. Com silêncios desobedientes. Os seus olhos opunham-se à condição de humilhação. Não tinha corpo, nem alma, de fiéis caninos ensaiados. Perseguia as passadas dele a ganir espumas desobedientes. Mas não falava, para que ele não a ouvisse. Havia dias assim. De nada porque atulhados e cansados de correrias sem fim. De silêncios amordaçados a gritar que não. Raivas e impossibilidades que a percorriam dos pés à cabeça. Por isso, subia a avenida submissa e acabrunhada. Como as laranjas que se espojavam no chão e que haviam perdido o sabor do laranjal que ainda ignoram.
 
Há dias assim. De tudo porque maltratados por um tempo que passa a correr pela avenida. Um tempo que escarnece do corpo a embranquecer. Zomba de agilidades desperdiçadas a subir a avenida com laranjeiras na calçada. E diz que é assim.
 
Há dias assim. Os pés sobem e descem a calçada, agrilhoados pela vontade de quem se declara luz. Ela sabia a mentira em que ele se enrolara. Ele é que não. Por isso, ele subia a avenida que era quase uma avenida. Ela descia.
 
Há dias assim. Dias em que tudo é normal. Dias em que não acontece nada de especial.
 
11
Nov08

mascarar

Paola

 Não sou nada.
 Nunca serei nada.
 Não posso querer ser nada.
 À parte isso,
tenho em mim   todos os sonhos do mundo.

 (…)
 Quando quis tirar a máscara,
 Estava pegada à cara.
 Quando a tirei e me vi ao  espelho,
 Já tinha envelhecido.
 
                                                                                                                    Álvaro de Campos, Tabacaria
 
A máscara põe-se e tira-se. Um adorno na cara de muitos. Um disfarce no rosto de tantos. Rituais assumidos, dissimulados e maliciosamente astutos. À noite, limpam-se impurezas e excessos de untuosidade vergonhosas. A pele descansa, renova energia. Acorda de manhã disfarçada de alegria. E sai para a rua decidida a camuflar as linhas de expressão adquiridas de véspera, sem perceber o embuste.
 
A máscara é beleza, o rosto é que não. A caraça é criação fantástica. O semblante demora-se em manifestações diabólicas. Gravita em torno de mistérios obscuros, grotescos e sinistros. Isenta de culpa, a máscara cumpre a sua missão. O rosto é que não! Porque acessório na cara da gente. Aqui, não cumpre a obrigação. A máscara deixa de ser um genuíno adereço e adquire um carácter enganoso. A máscara esconde a identidade. Metamorfoseia a cara de quem a põe. E os heróis transformam-se naquilo que não são. Os desnaturados no que são. E nada sobra da verdade. Assumem-se actores de comédias gregas. Rostos mascarados com cara de virtude. Vícios, alegrias, usuras e tristezas disfarçadas. Papéis que sobraram. Que galgaram o tempo. E tremeluzem nos recreios sociais.
 
A mascara disfarça-se. Mostra-se e revela. Galhofa na participação em rituais. Atemoriza e magoa na transfiguração. Amedronta na representação de seres maravilhosos. Invoca os deuses ao mesmo tempo que os animais. E dança e dança em movimentos infernais. A máscara é tudo e nada e raiva e dor. É fundamentalista. É estética. Monstruosidades e beldades. É sim e não. Sobressalto e distracção. É múmia e carnaval. Proibição e alarido. Hipocrisia e falsidade. E sorri com as lágrimas da outra. Mentirosas, evidentemente. Polaridade bicéfala. Disfarce convocado. Inconvenientes repetidos de depressão e mania. Dualismo danado.
 
Abarrotada de ilegalidades, a máscara esmorece interdita. Repentinamente renasce mascarada de medo. Grita pela privacidade. Quer ver e não ser vista. Ouve sem ser reconhecida. Refugia-se no anonimato, porque não tem coragem. Sucumbe ao desgosto. Não pode mostrar. Não quer dizer porque a obrigam a calar. Uma espécie de calvário. De percurso para a cruz. A máscara chora pela outra que se ri. Pranteiam as duas. Riem as duas, porque se perturbam com a disparidade entre o que são e o que deviam ser. Desfigurado rosto que não vê o rosto que eu mostro! Com a nobreza do ver. Do poder olhar e explicar.
 
E eu acredito que chegará o momento em que as máscaras cairão. Cedo ou tarde, os rostos serão mostrados. A verdade também. Resta saber de quem será a iniciativa. Se da máscara, se do rosto.
 


 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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