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ponto de admiração

ponto de admiração

31
Dez08

querer

Paola

Ano Novo, Vida Nova?

 

 

Não sei se quero. Se calhar até quero e não sei… Provavelmente não. Ou posso e não sou capaz? Sinto-me embrulhada em protótipos culturais com lacinhos tão banais. Que seja mais um, que depois venha outro… que seja! Eu sou a soma de todos os anos que carrego, na recusa de ser uma simples adição.

 

Ano Novo, Vida Nova?

 

Não sei se será… Talvez com mais silêncio…  A minha vida não será nova porque não deitarei fora o tempo que já agarrei. E o tempo fluirá pelas palavras que direi. Espontaneamente. Adornar-se-á nas figuras de estilo que inventarei... nas sílabas que suspirarei... na busca incessante de eufemismos que urdirei para calar desconcertos hiperbólicos. Teimoso, o tempo,  repetir-se-á em soantes paralelismos anafóricos. Todas as manhãs, apesar de mim.

 

Que seja um bom ano para todos. Que seja!

 

29
Dez08

resmonear

Paola

da Internet
 
 
Ao mesmo tempo que o frio rasga a pele, a chuva lambe-me as feridas e a dor cala-se num grito que dói. Com paladar a beijos indiferentes ao ar enregelado que sopra com rudeza. São afectos do longe, lá de cima… Bátegas de sustento que chegam à raiz. Aguaceiros de pão abeiram-se das folhas decadentes que se cumprem ao ritmo do vento. Gotículas de subsistência entranham-se no sôfrego tronco e o arco-íris denuncia o roubo das cores com um sorriso complacente.
 
A chuva chega ao rio. O rio começa a correr e eu persigo a água na expectativa de semear frutos que me abalaram do ventre. Sento-me, devoluta, e espero. Espero tanto que o vento amansa e, mesmo ali, pinta um retrato que aprimora para mim. Quando olho para a água, são os olhos deles que refulgem na escuridão. Então, vou ficar à espera que eles desabrochem, continuadamente.
 
Já vai longo o dia. Chove normalmente. Amanhã, não sei se volta ao normal. Nem sequer percebo nada de normalidade. Amanhã é o dia que não se tem… é condicional, mas vou continuar a esperar como se fosse futuro.
 
Não vou resmonear contra a chuva que não tive... Hoje, sinto-a a bater obliquamente no meu rosto. Escorrega pelo casaco e os seus dedos fluidos suspendem-se na bainha encharcada. Dali, pulam para o chão… Não vou resmonear contra a generosidade do Inverno… Apenas o injurio... porque afoga a chuva no rio.
 
26
Dez08

Jacinta XI

Paola

de João Palmela
 Setúbal
 
Depois saíram da loja envolvidas na mesma gargalhada com que tinham entrado. Jacinta apenas queria um telemóvel cujo número nem ela própria soubesse. Para não o poder dizer a ninguém. Assim, aceitou de imediato a sugestão de Beatriz. Que seja, amiga. E foi.
 
- Giro! Vais poder tirar fotografias…
- Telefone, queres tu dizer!
- Bolas, Jacinta. Ri-te, vá lá.
- Sentamo-nos? Ali…
- Claro! Queres que eu te configure o brinquedo, não é?
 
Sentaram-se sem que ela tivesse ouvido a pergunta. Numa praça descaradamente pública. Era ali que tudo acontecia. Ou então, onde tudo se sabia. E todos, que nem eram muitos, falavam do calor, ao mesmo tempo que lamentavam a sonolência da vida. Compreendiam a aridez do mundo e, simultaneamente, negavam o eclipse da Lua.
 
Ali, na praça, bebiam café, excessivamente adoçado, servido em chávenas abrasadas e muito brancas. Os empregados serviam os clientes ao ritmo da lentidão. Certos que o tempo não se esgotava numa tarde quente de Verão. Que depois do pôr-do-sol as tardes se repetiam. Todos os dias. Bastava dizer até amanhã. Volte sempre.
 
Ali, na praça, Jacinta sentou-se como quem descansa a fadiga de anos. Alongou-se na cadeira de alumínio como se fosse uma escada. Trepou os degraus dois a dois e chegou ao Céu. Que era ele. Jamais se libertaria da transparência daqueles olhos verdes. Irra! Nunca beijara um rosto tão belo. E sempre que os seus lábios se desfaziam em amor, ela perdia-se naquele mar apaixonadamente agitado. Às vezes, distinguia barcos que partiam, que chegavam. Outras eram as gaivotas que calavam movimentos esfomeados e esbugalhavam os olhos espantados, não disfarçando gritos de ciúme. Mas, quase sempre, via chorões debruçados sobre o rio… Amo-te! Amo-te! Não feches os olhos, amo-te! E sempre que ele os não fechava, os chorões perdiam-se nas águas à espera do milagre da flor. E o amor era tanto, tanto que a pele vertia arrepios com sabor a mel.
 
- Jacinta!
- Hum… Hã?
- Já está…
 
Jacinta alongou o olhar até à igreja que branquejava no outro lado da praça. E lembrou-se que há muito não se aproximava do altar. Nem da porta. Que a continuar assim, Deus não lhe perdoaria…
 
- Jacinta!!
 
 

 

21
Dez08

andar

Paola

 

- Mãe, mãe vem aí o Natal… Vem ver, mãe! Vem!
 
Ela não foi. Se fosse não o veria. Natal não anda, garantia ela, ao mesmo tempo que reclamava do garoto mais tento na língua. Mais empenho e responsabilidade. E nada de criatividade. Os dias corriam enxovalhados e a mulher entrelaçava sonhos de menina enquanto descascava as batatas. Vem! Insistia o petiz, afiançando que o Natal andava e que a mãe é que não o queria ver. E explicava ao filho que não era uma questão de querer, porém de poder. Ela não podia. Ainda não recebera o ordenado do mês. A Senhora, era assim que evocava a patroa, tinha partido numa viagem precipitada. Nada programada. Não tivera tempo de lhe pagar.
 
Ó mãe, vem ver o Natal! Gritava o petiz extasiado à janela. E ela foi. Por incompetência. Por não tornar claro o que para ela era evidente. Não recebera e o Natal precisava de dinheiro para andar. O miúdo era pequeno… por mais que se esforçasse, ele nunca compreenderia. O melhor era esquecer a cisma do filho. Os dias aconteciam maltratados e a mulher sentia a dor da bolada no peito. No corpo todo e nas prateleiras também. Fora uma tacada violenta. A bola saíra com violência do taco, a Senhora dizia putter e ela não entendia de que falava, e correra por caminhos desacertados. Atingiu-lhe a dignidade. Um golpe que, numa fracção de segundos, a impediu de ver o Natal. Por não poder, pensou ensimesmada.
 
Vês, mãe, o Natal a andar? E ela via multidões embrulhadas nos sacos que carregavam nas mãos. Observou luzimentos animados. Viu estrelas a bruxulear na porta da mercearia. Viu o fumo no ar. No passeio, na esquina da rua, adivinhou o carrinho do homem das castanhas que atraía quem passava. No assador de barro, estalavam mínguas retalhadas. Viu entradas e saídas. Correrias aceleradas, todas muito bem decoradas. Mãe? E ela voltou… Ali, mãe… olha o Natal a andar! Aqui, mãe. Olha como ele anda!
 
O homem aproximou-se da janela. Envolveu o garoto com gestos afeiçoados e presenteou-o com um balão amarelo. Depois olhou para a mulher e abraçou-a com um conivente sorriso. E de repente, sorriram tanto que todos foram um. Já acreditas que o Natal anda, mãe? As lágrimas impediram-na de responder. Via multidões embrulhadas nos sacos que carregavam nas mãos, ao mesmo tempo que rasgava a pele da última batata.  
imagem da Internet
19
Dez08

enevoar

Paola

da Internet

 

 

 

 

O dia está sonolento e acordou rabugento. E o Sol embrulha-se no nevoeiro, que não está para aturar caprichos cinzentos. Aqui e ali ouvem-se as horas a acordar e os minutos a combinar adiantar os segundos. Acicata, tu! Eu? Ora essa! Ignorante, cuida da ortografia. E a porfia começou. Parece que é assim que o tempo se consome. Que percebes tu de homofonia?

 
Num dia de névoa pardacenta, tenho sempre a sensação de ter entrado numa igreja. Uma catedral… uma nave feita centralidade. Sobram ecos de restos de frases suspiradas. Ecoam orações de frio e, por todo o lado, há círios a inflamar-se. Ininterruptamente a extinguir-se. Uma catedral tem muito a dizer e para a ouvir é necessário calar. E olhar a abóbada de bruma que sonega muito do que se vê. E do que não se vê, evidentemente. Que tempo este! E tudo recomeça. Cala-te, ponteiro. E posso algemar o tempo? Posso? Ele não vai gostar. Imbecil! Deve ser por tanto girar… E o ponteiro dos segundos persistia do seu andar. Irritava-se o outro que não tinha pernas para o acompanhar. O mais velho perecia placidamente no seu navegar, com a certeza que seria sempre igual. Empurra-o! E anuíram na estratégia. Juntos teriam força para o expulsar. Podemos tentar. Ora, ora… ele é dono das horas. Outra vez! Bem sabes como este jogo sujo me irrita. Que vício! Com ou sem agá? E eu sei lá… não entendo nada de gramática! Insensato! A disciplina é imprescindível ao teu adiantamento intelectual. Deixa-me falar!!! Calaram-se de repente. Escutaram o tempo a ressonar.
 
Há multidões na rua à hora de laborar! Outra vez o agá? Ah! Já percebi. Estava a ver que não… Indiferentes ao tempo, por causa da névoa. Tantas vozes com embrulhos dourados. De um lado para o outro, sempre a cirandar que o tempo é de comprar. Tanta gente a circular que o tempo é de enganar. Tantas pernas por conta própria que o tempo é de sonhar.
 
E eu pus-me a inventar… são reformados, enfim. Desempregados também. Alunos no intervalo, pois são. Domésticas com hábitos abraçados. Empregados na pausa da precariedade laboral. Alguns emigrantes que chegaram de longe. Todos com muito tempo e sem vontade de o embrulhar. Os mais abundantes são idosos que eu vi.
 
E eu continuei a imaginar… é assim o meu país. Pobre, velho, desempregado, aposentado. Desorientado no nevoeiro não descobre el-rei D. Sebastião. Coitado, a fazer-se abastado!
 
 
 
17
Dez08

localizar

Paola

imagem da Internet

 

Há dias danados. Tão estúpidos! É em dias assim que o aforismo  irrompe na boca da gente muito arrebatado. O melhor teria sido ficar em casa!!! De preferência, subordinada ao edredão. Na falta da areia e porque uma pessoa não é propriamente uma avestruz desconjuntada a correr que nem uma maluca.

 
Pois há! Só que fazem intervalo.
 
Hoje começou assim. Tão frio que o calor rareou até ao fim da tarde. Tão tarde que a luz se alumiava no interruptor. No meio de despedidas apressadas, ele olhou para mim e segredou-me uma confissão pouco meritória.
 
- Nunca tinha tido uma positiva… é o meu melhor presente de Natal…
 
Há dias admiráveis. Num pequeno gesto, numa palavra, num olhar… E se é verdade que o Natal é quando um homem quiser, não é menos verdade que o dito depende mesmo da mulher… em qualquer local. Hoje foi ali!
 

 

15
Dez08

regressar

Paola

 

Monte Natal de areia

 

O Monte. Sempre foi assim que os meus pais me falavam daquela fila de casas brancas e azuis. Do alto do enorme monte de areia, espreitavam o rio, espraiavam-se ao sol, iam à pesca de robalos, xarrocos e chocos... Um acto de amor. Por vezes, já fartas e cansadas, ficavam pelo areal, deliciavam-se com os caranguejos, berbigões, canivetes e ostras. Era uma gente tranquila, com uma vida tranquila... Do outro lado, eram as moitas, os matos abastados em bicharada e em murtas. Mais abaixo a horta. Magnífica! A minha infância perde-se e delicia-se nas batatas-doces assadas no braseiro que crepitava junto à entrada da cozinha. Esplêndidas e generosas.
A fonte era um lugar sagrado. Pelo nome, Coração de Jesus, pela água pura e cristalina que saciou a minha sede e que alguém não preservou. Sagrada porque o meu avô acreditou que ela lhe retribuía as passadas com  bilhas de saúde. Todos os dias, pela calada da manhã lá ia ele. Bebia, lavava a cara e acreditava que tinha rejuvenescido. Também o meu avô foi fantástico. Gente simples e pacata... A poesia divulgava-se na cozinha, junto à chaminé. Adorava declamar os seus poemas! Quadras de rima pobre com sonoridades de ternura. A concertina dançava nos seus braços e os seus dedos percorriam-lhe o corpo como se fosse uma mulher. A música acompanhava os versos que a memória retinha e a festa constituía a sobremesa esperada.

 

O monte, vamos ao Monte passar o Natal, diziam-me os meus pais. E eu estremecia perante o percurso a trilhar para lá chegar. Um caminho feito horas pela berma do canal, por veredas ladeadas por pinheiros e eucaliptos com os fetos abraçados aos troncos. E o verde confundia-se, aqui e além, com o azul o Rio. Sim, o meu Rio era azul. Uma jornada difícil! Não havia alternativa. O Monte ainda não se tinha rendido à civilização. Orgulhava-se de olhar magnificamente para o Sado e altaneiro para a cidade que, na outra margem, se insinua vitoriosa. O fim do mundo, alcunha que detestava, estava mesmo ali, no estuário do Sado. No entanto, a lembrança do rio, dos golfinhos, dos caranguejos, da batata-doce, do berbigão e do pão faziam-me transpor os obstáculos com alguma agilidade. Grandioso aquele pão! Uma fatia barrada com água-mel faria qualquer citadino crer na verdade do néctar celestial. O Monte ... bravo no apelido da família, bravo na escassez de riqueza, bravo nos acessos, bravo nas piteiras fartas em figos, bravo por se afirmar na diferença de outro qualquer lugar, bravo pela dureza que impunha aos que lá viviam, bravo porque único. Um nome próprio como a gramática nos ensina. Único, próprio e admiravelmente singular. Na minha cabeça o Monte ainda existe ... com tudo o que ele tinha. Os meus avós,  a fonte, a horta, a praia e os caranguejos ... a minha cabeça não quer creditar que sobre a areia, a praia... que tudo já se cumpriu. O Monte morreu à medida que as pessoas morreram também. 

 

E eu deixei de ter local para passar o Natal. O meu avô não toca concertina, a minha avó não vai comprar o pão… e os meus pais já não me dizem “Vamos ao Monte, neste Natal!” . O Monte morreu... e é com palavras que eu ressuscito aquela paisagem. O rio ainda existe e ainda é azul. Só que mais pardacento...

 

Escrevi este texto há quase um ano, quando me iniciei nesta "coisa" dos Blogues. Porque é Natal, ressuscitei-o.

 

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13
Dez08

discursar

Paola

 

 saudades do Brasil em Portugal

 

 

Entrou na sala de aula com os pés desorientados pelo discurso a dizer. O rapaz carregava um sorriso refém do jeito de falar. Anunciava ausências e faltas. Sentia-se pobre de palavras. E o sotaque, professora? Magoavam-no chacotas e humilhações. A vida-madrasta continuava a açoitá-lo todos os dias de manhã. E pela calada da noite roubava-lhe o sono e empurrava-o para a rua. Às vezes, surgia-lhe, ao longe, uma imensidão azul que ele confundia com o céu. Um mar enorme e profundo. E nele via pedaços de esperança a boiar. Destroços de felicidade naufragados. Expectativas desertas e muitas mágoas à tona da água.

 
Sentou-se no lugar que é seu desde Setembro. Vi-lhe os olhos embaciados a escorrer medos pelo rosto apavorado. Adivinhei-lhe o corpo estilhaçado com fragmentos de pânico. E o sotaque, professora? O sotaque? Bom… O sotaque é seu. Confesso que gosto daquele barulhinho ritmado na personalidade da diferença. E, naquele instante, a minha opção bebeu o respeito pela voz do outro.  E começou o discurso…
 
Escolhi este poema porque sim. Foi escrito por Vinicius de Moraes, um poeta brasileiro que eu não conheci. No entanto, acredito que ele me conheça. Os poetas têm destas coisas. Desventram-nos a alma e roubam-nas as emoções. E o rapaz discursava com a certeza que o poeta sabia que ele existia. Contou as saudades e queixou-se do mar que roubava as ondas no lado de lá para as trazer para cá. Que fazia tudo em surdina, por isso não sabia quando ia regressar. Garantia que lhe faltava o cheiro quente da terra. O Sol bronzeado ao entardecer. E as coisas. Aqui apenas tinha o nome.
 
Os outros sorviam-lhe as palavras com sabor a coco fresco. Outras a ostras temperadas com sal e limão. O rapaz discorria sobre distâncias e disjunções. Lamentos e mínguas. Dores e ausências. Pobrezas e emigrações. Tudo num sotaque, quente e emocionado, com acordes de sanfona nordestina. E foi Vinicius de Moraes o poeta que escreveu poema que eu escolhi. A assistência não se conteve. E escaparam sorrisos e aplausos.
 
E eles sairam da sala convencidos que Vinicius de Moraes conhecia o colega. Que escreveu o poema para ele. Que o fez de propósito. Obrigada, professora, por querer o meu sotaque… E eu, que estive lá e ouvi, gratifiquei-me ali.

 

11
Dez08

bruxulear

Paola

 

 

menino sem Natal

 

(imagem da Internet)

 
 
Deitou-se, pouco depois do jantar, sem que o sono tivesse chegado. Nem a menor advertência. As pálpebras não tiritavam ao ritmo de reflexos sonolentos e as suas grandíssimas pestanas negras calavam enleios enamorados. Arrumou-se na horizontal no cumprimento de disposições paternas.
 
A noite aconteceu muito cedo. É sempre assim no Inverno. Sobre a mesa-de-cabeceira, o candeeiro a petróleo atrevia-se a ser luz. A torcida subia e descia disposta a cooperar. A chaminé enfarruscada queixava-se de não ter sido limpa com o jornal, mesmo assim cumpria a sua condição. Devagarinho, emanava um bruxuleio amarelo-turvado. O quarto era pequeno porque a casa era pequena. A cama era mais pequena ainda. O frio de Dezembro corria friíssimo de parede a parede. Do chão ao tecto. E ele, por tanto tremer, refugiou-se no calor de dois cobertores às riscas. Largas, castanhas, amarelas, verdes e vermelhas. Em lã churra de ovelha. Pesadas e quentes como o Sol que, na sua cíclica obediência, se deitava mais cedo. Mas era aquela a luz que lhe permitia penetrar na pele das coisas. Por isso, descia o pavio e extinguia a chama.
 
E via a noite de estrelas cintilantes. Meninas e franzinas abraçadas à escuridão. Adivinhava-lhe intenções. Pedia-lhes mais esplendor. Exigia-lhes que denegrissem o cristal. Que não plagiassem o candeeiro que bruxuleava sempre antes de morrer. De entre todas, uma tinha mais esplendor. Subiu até ela e foi ver o Natal. Que não cabia numa casa tão pequena. E empoleirado na Cygni aproximou-se do Sol. Viajaram os dois, com o céu na ponta dos dedos. Ali! Acolá! Não, mais para aqui… Vamos! E foram… Descobriu brilhos ilusórios. Delírios refulgentes de luzinhas que tremeluziam na cidade. Correrias desvairadas alindadas com laços de metal. Encontrou gestos repetidos em juramentos de fé cumpridos no dia. Maltratados antes. Crucificados depois. Destapou hipocrisias que bruxuleavam rumores resolvidos a cumprir a tradição. Estranhou o brilho excessivo de luzeiros a iluminar. E boquiaberto pensava que tinha aterrado num céu a brincar. Mas depressa percebeu que se tinha enganado. Que no céu não há publicidade, nem centros comerciais.
 
E por tanto ver, acabou por adormecer. E sonhou que as estrelas do céu é que são autênticas. Bruxulear reside na circunstância de libertarem energia na tranquilidade do seu ser. Mas lamentou a cobiça do Sol que, por inveja, lhes perturba o brilho. Durante o dia, porque a noite há outro brilhar.
 
Enquanto dormia, segredava à estrelinha, que espreitava à janela, que era um menino afortunado. Tinha um candeeiro a petróleo humilde no seu cintilar. O pai e a mãe dormiam tranquilamente no quarto muito pequenino. De manhã, tomariam o pequeno-almoço juntos. Depois, brincaria com o papagaio de papel que o pai lhe fizera com um fio do tamanho dali até às estrelas. 
 
 
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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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