Vamos… e tornaram a casa cheias de cumplicidades caladas. Jacinta despediu-se da amiga com um telefono-te mais tarde engasgado com um beijo apressado. Entrou em casa, como quem entra na ala principal de uma catedral desabitada. Ressoaram ecos de passos perdoados. Brilhos de olhos maravilhados com o altar. Rumores de confissões a haver. Ouviu um silêncio excessivo e parou. E, nesse instante, o som mais perceptível foi o seu. Com a nitidez de quem se desenha no ventre materno. Como se tivesse ressuscitado das pinceladas de um fresco. Lembrou-se que, há tempos atrás, lhe agradeceu e depois fugiu. Agora, tem a certeza que viver é subir as escadas. Atingir o patamar e ter medo de cair. E tornar a subir. Maravilhou-se com os vitrais e esqueceu-se de pedir a absolvição. Mesmo sem pecado contraído, embora declarasse a desobediência.
No mais profundo e agradecido silêncio, atirou os sapatos para o canto e arremessou deliciosamente o corpo para o sofá. Pegou num livro e olhou para ele com a sensação de empilhar a sua própria vida nas mãos… páginas e páginas. Algumas ofereciam-se em branco para que ela as escrevesse. Com fotografias a preto e branco que testemunhavam um passado que soluçava ao seu colo. Com ilustrações de cores aperaltadas que lhe mostravam instantes dourados. Histórias que experimentou. Narrativas por terminar. Outras que nem viveu, mas desejou. Um livro de uma enorme biblioteca que ela não sabia se poderia percorrer… ler do princípio ao fim. Nem do fim para a frente… Por vezes, quase sempre, gostava de andar ao contrário. Com a vida, comentava. Um livro a que, todos os dias, virava uma página... memórias que perduravam, que a compunham como era. Aquele o seu preferido, por ter narrações que almejava concluir. Alterar o fim. Tanto que ambicionava expulsar personagens. Algumas palavras e muitas das interjeições que expressavam sentimentos perdidos. Outros desorientados. Um dia, murmurava, serei capaz de desmentir a paixão do verbo amar. Adormeceu consumida por tanto escrever… O livro acalmou-se no tapete vermelho que parecia ilustrar toda a sala. Uma cor que amava por vê-la paixão e coragem no fogo que lhe incendiava o corpo. Por lhe aquecer o sangue, transportando-a para a imortalidade dos afectos que experimentara no rubro das romãs que existem nas traseiras do barracão. E, sempre que as via da janela, tinha a impressão que as estava a saborear. Pareciam muito perto. Apenas os medronhos, os via afastar. Sobretudo, por se lembrar de um livro já lido. Ali, aprendeu a alegria do vermelho. Tal como a eternidade que retém. A história passava-se na China, recordava-se vagamente.
De repente, o gato, que dormitava no parapeito de mármore da janela, saltou para cima do sofá. Depois, confundiu-se nela. Ambos permaneceram na mais absoluta quietude, avassalados pelas palavras do livro que se detinha sobre o tapete. Juntos ouviram o silêncio da areia sempre que o mar a vem desposar. Olharam para o céu… e ouviram risos brilhantes nuns olhos verdes que não eram personagem. Por não serem de papel. Mesmo que de seda... Jacinta dormia tranquilamente no sofá. O felino animal duvidava do sossego. Por isso, vigiava-lhe o sono.Coisas de bicho.
Acumulou-se uma vaga de frio polar que congela o país. De acordo com todas as fontes consultadas, o culpado já foi identificado e localizado. Não foi possível, até ao momento, detê-lo. Apurou-se que a impossibilidade advém da sua leviandade. Tanto desce, até que sobe, para depois tornar descer. E sobe num desvario invernal. Os tribunais estão atulhados de processos e o juiz da comarca afiançou não lhe caber decretar prisão preventiva, apesar dos óbitos já declarados. Domiciliária é inexequível para quem não pára de pular. Fontes credíveis asseguram que a pulseira electrónica foi conjectura logo rejeitada. Acredita-se que o complexo dispositivo não comporta tanta humidade.
Segundo se conseguiu apurar, o frio foi visto, pela primeira vez, num anticiclone localizado nas ilhas britânicas. De imediato, para cá veio por tanto ouvir falar em corruptas vontades. Acrescentou que as suas idas ao estrangeiro são mesmo para disfarçar. Em declarações, confirmou que gosta de cá estar. Vive em liberdade total, embora condicional aos termómetros importados. Não tem que se queixar à Amnistia Internacional. Se as coisas se agravarem, pode recorrer a indultos estivais. E que se o quiserem prender, terão de o ir procurar. Disse, com ar muito estupefacto, não entender por que foi decretado o alerta laranja. Nem sequer o amarelo. Tendo inquirido se as rosas já não floriam por cá.
Incrédulo, o jornalista, nem sabia o que escrever. Desobrigou-se da indispensável objectividade. Agarrou-se às suas convicções e escreveu a conclusão:
O meu conselho é que se ingira chá de camomila! Quentinho, acabado de ferver! De ervas ou saqueta, não importa... No meio de tanta aselhice, Deus nos defenda de vícios piores!
Tantas os vocábulos que pululam em mim! Os que rasgam e machucam como se tivessem mãos. Outros que acarinham e beijam. Os que não se importam, nem eu me importo com eles. Os que passam… os que se demoram numa teimosia pleonástica. Ai, os sorridentes com os quais, numa algaraviada descontrolada, choro a rir à gargalhada. E erramos sem destino bêbedos de harmonia. Tantos sobressaltos com palavras daninhas! Então, choro. De nenhuma sou distante. Nem tão-pouco das que ignoro… apenas estranho que hajam palavras assim… A todas embalo e estremeço com elas. Sentadas no meu regaço, sou eu que parto com elas. Às vezes, zango-me com as excessivamente rigorosas. Só por causa das áreas e dos casos notáveis da multiplicação. É visível a desigualdade e a fracção. Agora convencê-las que a incógnita não é um xis, que a soma não é universal e a subtracção termina perniciosamente em dedução! E perante a impossibilidade de diálogo, as palavras narram o milagre da multiplicação. Depois, o de Santo António aos peixes. E quando desejo que se algemem, iniciam relatos de remédios e curas, de mestres e profetas. E no meio de tantas palavras, há uma que se diz perplexa perante a evidente interrupção das leis da natureza. E até elucida que o fenómeno se explica pela intervenção do poder divino.
Numa amálgama de cores, as palavras, são telas. Ali, onde a luz favorece a descrição, o fundo foi um deserto. Numa miragem distraída, a vida morreu à míngua de humidade. Legítima ilusão! As palavras áridas revelaram-se representações pictóricas de certas vontades. E eu vi roedores e pragas de insectos. Adivinhei outras espécies que, apenas à noite, saem das tocas para beber. Mais abaixo, descortinei os que podem passar a vida inteira sem beber água, extraindo-a do alimento que ingerem.
Ontem, a palavra deserto arrastou-me para o deserto, com sabor a deserto… um local inóspito e desprotegido. O frio foi tanto, mas tanto, que culpei um deus baralhado a fazer o milagre. Por isso, olhei tão cuidadosamente para o quadro que depressa descobri o equívoco. Faltava um raiozinho de Sol… mesmo no deserto. Forçosamente no deserto.
As palavras exibem quadros com distintas tonalidades. Pontualmente, surgem a preto-e-branco. Falta-lhes a cor. Talvez apareça se eu fingir que ela existe. Quem sabe! Porém, sempre que chove no pátio do recreio, eu declamo a palavra chuva…
Os deuses, de vez em quando, endoidecem também. Tenho para mim que tal facto se deve a contaminação humana. E por imitação, lá andam os senhores do Olimpo de cabeça perdida. Excessivamente engripados, mas resumidamente agasalhados. Cronos bem se queixa das horas gastas nas urgências dos hospitais. Mercúrio afiança que não está para aquelas peregrinações. E incita o amigo a enviar uma mensagem. Então, telefona, vá! Grita-lhe o número que sabia de cor por tanto o repetir, apesar da voz lhe começar a falhar. Queixa-se de Éolo que bem podia parar de bailar. Atchi…m!! Que ignomínia, acudia Neptuno. Um deus a espirrar! E entre privações de oxigénio, lá apostrofou que ele proferia tais opiniões porque se acondicionara no fundo do mar. Que vivia à grande e à francesa num palácio que diziam ser de cristal. Invejosos, vociferava agarrado ao tridente. Foi para isso que trabalhei. Eis se não quando, Baco entra na história para questionar o recurso a tanto medicamento. E defendeu o uso genérico de mesinhas caseiras. Acrescentou que um copito de aguardente com mel nem fazia mal a ninguém. Estouvado, toma juízo. Inspirador de excessos de êxtase e violência, porta-te bem. E Diana, segura na sua castidade, aconselhou calma. Pediu a Minerva que a todos protegesse. Aos médicos também. E a algazarra já era tanta que o segurança os impediu de continuar ali. Se estavam doentes, ficassem em casa por causa do frio. Mas eles continuaram a espirrar. Sem perceber quem tinha dado poder ao homem para mandar assim. Até chegaram a desejar que Vulcano não tardasse para a quezília aquecer. Vénus veio também. Muito deprimida e com muita tosse. Magnífica, apesar da gripe que a flagelava. E tanto que o marido a avisou. A sua Vénus de cabelos áureos e fragrantes andava nua pela casa, convencida que emergira do mar sobre uma concha a cada degrau que subia. A mulher era fogo! E o marido era tão horrendo que de Marte fez o seu grande amor. Constava que Camões sabia do caso. Não foi em vão que a ostentou como a grande defensora dos portugueses. Epopeias andadas no centro de saúde aberto no feriado. Tudo devido ao surto de gripe, anunciado pela Lusa. Que loucura, amiga, murmurava com voz melada. Proserpina nem sabia o que dizer. Vítima de rapto e violação, considerava a gripe coisa sem valoração. Vivia no inferno, a infeliz. Uma vez por ano, visitava a família. Menos mal, se fosse pelo Natal. Só que Plutão não autorizava. Domiciliada nas trevas, ansiava a luz. Queixava-se do constante apagão e perguntava ao marido se tinha pago a conta da EDP. E chorava às escuras. Telefonava às escuras. Porém, o pior advinha do facto da bateria do portátil não suportar a ligação à Internet. E inquiria irritada se Olimpo sofria os efeitos da ignorância da luz. Plutão, já muito arreliado, levantou-se e incendiou duas velas vermelhas. Ela permaneceu sentada, enquanto a luz bruxuleava, mas não alumiava. Os deuses deve estar loucos, matutava. Todos! Gregos, romanos, humanos...
Eu acendi duas velinhas, enquanto o apagão me tolhia na mais profunda escuridão.
Hoje não chove aqui. Os pássaros entoam chilreios de amor na folhagem da árvore que não baila ao ritmo do vento. Tão-somente, os caminhos enlameados provam a chuva que choveu. As pessoas passam, olham e não vêem que a chuva é tela, poema, mágoa. E as gotas, que persistem nas folhas, devolvem reflexos esboroados de afectos extraviados em Janeiro. A água adormecida no chão enlaça os brilhos e as cores que ali estão envoltas em queixumes públicos. São pinceladas espontâneas de desassossego ao ar livre.
Hoje, morrem-me as palavras de contentamento. Por isso, decidi pintar um quadro. Enorme, com muita luz e brilho. Que eternize momentos e olhares. Com cores que fixem impressões de mim, sem me importar que a realidade mostrada não seja percebida. Apenas permito ao Sol que pinte contornos incertos. Só ele pode matizar a incidência daquele instante.
O Sol olha para mim e escorraça-me dali, declarando a minha total falta de jeito. Atreve-se, o iluminado, que o colorido não é assim. Que estou a negligenciar a oposição de luz e sombra, o brilho … que o preto não cabe num quadro assim. Equívoco imenso! Apenas queria pintar emoções de mim… Quero lá saber que os pintores impressionistas não gostem do preto!
Fico na certeza das ondas que apagam as palavras que desenho na areia. Todavia, eu sei que não é de propósito… apenas se cumprem no tridente de Poseidon.
- Apeteceu-me enfiar os pés na torneira... me auto-arejar... chamar o mar… sentar-me no banco e devorar o ar fresco da noite... molhar os pulsos, os dedos, o rosto e mais o resto... desaguar no frigorífico... ser urso polar com gelo... tomar banho de nevoeiro... saltar para o rio de roupa e tudo... Deus do céu, que calor!!!! Credo! Sus! Grrrr!
- Era necessário tanto barulho?
- Er... Ahn ... Hã? Huh? hein?
- Não foi só um número que mudou?
- Hmmm hum...
- Foi!
- He! he! he! eh! eh! rê! rê! ... Tanto ruído por causa de um nove!!
Era uma vez um menino muito pobre que vivia numa aldeia tão pobre quanto ele. Até o riacho, onde chapinhava no Verão, morria à sede com água pelo tornozelo. E ambos agonizavam nas tormentas que calavam. E choravam a sorte, empoleirados numa pedra cinzenta.
O menino tiritava de frio, ao mesmo tempo que arremessava pedrinhas na esperança de ouvir onomatopeias cantantes. Foram gestos vãos. Esforços falhados para amornar as mãos. E de repente, uma pedrita muito afável interpelou o rapaz:
- Três desejos, apenas três… Queres?
- Tu? Disfarçada de génio? E o Aladino?
- Se não queres, não queiras! Depois, não grites…
- Concedes-me três desejos, é?
- Irra! Não disse já que sim?
- Uma casa! Tens?
- Certo, meu petiz.
- Dinheiro? Preciso de algum…
- É normal… E qual é o teu último desejo?
Fez-se um silêncio tão grande que nem as rãs se atreviam a coaxar…
- Uma família! Não precisa de ser muito numerosa… apenas que chegue para o ano inteiro. Mas tem que ter um irmão!
- Bem pensado, sim senhor! Tenho que me ir embora… Gostei do tempinho que estive contigo, rapaz.
E desapareceu num silêncio tão excessivo que se ouviu a pedra a rolar. E o menino pensou que tinha sido engano… que nem acreditava em milagres... mas que podia desejar.
A utopia é inatingível, se fosse certeza não era utopia! Mas não deixa de ser o princípio da esperança...
O verbo foi sugestão do Perfume, a história foi escrita pelo D.Q. , um menino também... Só a aproveitei!
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]