Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

ponto de admiração

ponto de admiração

26
Fev09

pairar

Paola

ao longe há um rio

 

 

 

 

 

Daqui vejo um rio…  Imagino-o demorado e sinuoso. Atrapalhado na volúpia da foz. Vejo-o sossegado e domado. Só que não é o rio que alimenta o meu sangue.

 

O rio que não vislumbro daqui é mais azul. Oiço-lhe o cantar… saboreio-lhe o gosto de gostar. E deixo que ele me deslumbre… sinto-lhe o calor dos afectos a encharcar-me o corpo. As mãos ávidas de mim… e cedo aos seus queixumes.

 

As gaivotas do rio, que nem sei se existe, gritam desvarios em terra… e sempre que ouço uma gaivota a amaldiçoar o rio, pressinto que já não pairam gaivotas no rio que não vejo daqui…

 

O rio que não contemplo acontece. Bem ou mal, escorrendo pelos lençóis de fado deste leito ressequido… até ao dia em que lhe rasgarem as margens.

 

 

fotografia daqui

 

25
Fev09

escutar

Paola

 
 

 

Cheguei a casa cansada. Tirei os sapatos que me aperreavam os pés.  A sensação de alívio inundou-me o corpo que arremessei para o sofá. Embrulhei-me no silêncio da música que pus a tocar num volume moderado… À janela escancarada assomavam  murmúrios de vento. Da rua, chegavam-me alaridos vagabundos e descontinuados. Conversas nubladas. Percebi que esconjuravam o vento. Não queriam que  ele ralhasse com o céu.

 

O alvoroço, que parecia surgir do prédio em frente, levantou-me. Quatro ou cinco homens clamavam arrebatamentos na hipótese golo que não tinha sido. Demorei-me à janela, enquanto os meus olhos seguiam um cão que olhava vagarosamente. Sem se amedrontar com barulho do vento, nem com a música, o bicho vagueava, pela rua, alheio a todos os rumores. Desinteressado por todas as pessoas. Nem a algazarra do café, acabado o jogo de futebol que a televisão transmitira, lhe desencaminharam a intenção. Tudo parecia caber harmoniosamente na sua noção de normalidade. Não, não estranhou nada. Eu é que estranhei a independência do animal. Ali estava eu, observando-lhe os gestos. Tentando entender-lhe as passadas quase caladas. Encostou-se à parede, mesmo por baixo da minha janela, e esculpiu-se no passeio. A senhora, que mora no prédio, cruzou-se com ele. Disse-lhe não sei o quê. Apenas entendi vontades de o expulsar dali. Ele ignorou os insultos que ouviu no olhar da vizinha do número 14. Deve ter-lhe adivinhado o cansaço e desculpou-lhe a descortesia, pensei. Deitou-se enroscado na cauda. Arrumou a cabeça no cimo do amontoado de pêlo dourado e abraçou as patas.

 

O vento acalmara… Naquele momento, o único barulho audível era a música que continuava a tocar generosamente. E eu flutuei ao ritmo de coloridas sensações. Intraduzíveis. Quando voltei, o cão estava exactamente na mesma posição em que o tinha deixado. De vez em quando abria os olhos. O CD chegava ao fim… Eu invejava-lhe a tranquilidade. Ele olhou para a janela, desenrodilhou-se, desceu as orelhas e partiu. Assim como tinha chegado, silenciosamente.

 

Fechei a janela, corri os cortinados e sentei-me no sofá. Sorri. No dia seguinte voltaria, à mesma hora, a ouvir a mesma música... 

 

 

Hera

fotografia de Paola

 

 

23
Fev09

enfastiar

Paola

desabafo apócrifo

 

 

 breves divagações acerca   do...Tempo...

 

"O tempo cansa-me. Sobrepõe-se-me. Atreve-se a ensombrar passos amedrontados. Atropela-me sorrisos, faz-me encobrir emoções. Agita marés de falsos entendimentos. Desassossega-me, torna-se rebelde, de mansinho, de súbito, num breve instante. Dá reviravoltas às minhas certezas, brinca com os meus espaços, dá um passo em frente, outro atrás, troca-me as voltas. Deixa o meu olhar alvoroçado, inquieto, desajustado. Abre asas à minha eterna agitação, torna-me em instantes forte, e logo de seguida, ao abraçar o som calado das minhas memórias, deixa-me enfraquecida. Por vezes, faz-me esquecer o aroma das muitas velas colocadas e apagadas num doce bolo de anos envolto num açúcar tão branco, a afastar os receios...


Por vezes devolve-me pedaços de sonhos envoltos em algodão doce... O tempo cansa-me...Talvez apenas por ser bem mais forte do que os meus sonhos... "

 

MLB

 

Faz um tempo que não recomendo. Tem uma toada que estranho... Obrigada por teres tempo para mim e pelas palavras que me deste...

 

 

tempo pequeno

fotografia de Paola (editada)

 

22
Fev09

elencar

Paola

   

 Pablo Picasso, Le rêve

 

 

Anotei a formação e descobri-lhe a condição de palavra-moça. Apetecida e desejada. Depois, dei por mim a elencar sinónimos.

 

 

Vi. Observei. Pensei. Não gosto!! Não gosto dela. Mas um dia, por tanto a ouvir dizer,  hei-de esquecê-la...

 

 

 

 

20
Fev09

mascarar II

Paola

  

 

rene magritte
(1898-1967)

 

 

 

 

Sempre que as árvores se ocultam, não são elas que se escondem. Se o fazem, é para ver o Homem passar no vazio da obediência.

  

Sempre que um cavalo se encobre, não é ele que se desfigura. Se o faz, é para ver o Homem no meio da devastação.

No entanto, a árvore está acostumada a viver na realidade da solidão que é sua e o cavalo diz-se cavalo na recusa de múltiplos disfarces.

 

17
Fev09

ajuntar

Paola

  

 

Fernando Botero

 

 

 

 

 

Hoje, não tenho verbo! Silencio-me na admiração. Apenas uma excepção, pequenina e muito excepcional, para os verbos de ligação. Com predicativo do sujeito… E vou conjugá-los sem ele ser, estar ou mesmo permanecer.
Sou frágil. Sou pedra que ganha a forma do tempo. Permaneço agindo pela emoção.
 
 

 
15
Fev09

conjugar

Paola

 

 sedução verbal
 
 
 
Amo-te! Não distingue o presente do pretérito? Perfeito? Ninguém diria... Maldito tempo! Também amei. Não creio! Amaras tu alguém e … Outra vez! Cala-se! É uma mistura explosiva. Cuidado, amiga. Amor mais-que-perfeito não existe! Ora… e é preciso esse imperativo totalitário, é? Que queria, então? Vê, agora é o senhor. Perfeito! Qual condicional! Ah! Amaria se pudesse… Não me chateie. Quero um indicativo real. Certeza e realidade. Sem me importar com tempos. Que seja pretérito perfeito. E foi! Que tenha sido imperfeito! Também. Mas absolutamente mais-que-perfeito. Foi! Repare que foi a senhora que assumiu a possibilidade expressa nesse conjuntivo duvidoso. Que imprecisão! Tem dúvidas, é? Saia da minha frente! Que aborrecimento… Desculpe? Ordem ou conselho? Claro, um pedido… Não! Soa-me a instrução. Por favor, não me arruíne o dia. Desapareça!!! Calma! Não seja tão impulsiva. Eu vou… Graças a Deus! Até que enfim um presente a indicar o caminho. Não sei… Talvez volte amanhã! E voltaria com muito agrado. Tenho estado a pensar que … Também pensa? Abale e pense depois. Bem longe daqui. Continua irritada. Eu? Sim! É tempo de sair… Já deveria ter ido e ainda me fala de tempo! Que descaramento. Tenha modos! Ter, eu tenho. A senhora não me está a entender. Tenho todo o tempo do mundo para si! Arrogante! Presunçoso! Então, o que é isso? Difamando? Pronto! Era só o que me faltava! Algemando a conversa. Afligindo-me nessa inútil continuidade. Eu explicaria, se se calasse… Treta! Não quero ouvi-lo mais. Estou farta. Percebeu? Oiça o que falo… foi apenas uma condição. Como não se cala não vou explicar nada, percebeu? Não! Mas posso calar-me…
 
Amou?
Ama?
Amará?
Amar-me-ia?
 
Desapareça! Morra! E publique no jornal que foi morto. Não se preocupe se é morto ou matado… O importante é ser particípio muito passado. Na primeira pessoa do singular.
 
 
 pombinhos na calçada
Paola
14
Fev09

desnudar

Paola

as árvores morrem de pé

 

 

As árvores atravessam a inclemência do Inverno nuas e desgrenhadas. Desprezadas, choram lágrimas transparentes.

 
As árvores revigoram-se em ventos de silêncio. Apesar do frio, renovam-se na vida calada que carregam no ventre. Abraçam-se aos sonhos na perseverança de serem flor.
 
Silfo desposa as árvores desnudadas e deslumbra-as com pérolas de chuva. Elas descalçam-se no solo húmido e entregam-se num imenso desejo vital. Porque o amor exige a alma despida. Ele, esgotado, deixa-as ser. No gozo do infinito.
 
As árvores reaparecem sempre com um sorriso nas raízes. Com gestos de força, acenos de estabilidade e rebentos de paciência.
 
As árvores fingem-se mortas, para que possam cumprir o milagre da ressurreição. Outra vez. Mais uma vez. Sempre. Eu admiro-lhes a tenacidade. Um dia, também ressurgirei no infinitivo do porvir. Aquietada pela paz que reinventarei. 

 

nu natural

fotografia de Paola

 

12
Fev09

evolucionar

Paola

macacadas II

 

Sempre que sou presenteada com um insulto embrulhado, não gosto. Isto de ser filha de boa gente obriga à reacção. Eu sei que sou um animal. É verdade! E daí? Não gosto que mo lembrem. Animal! Depois, sorriem  num benevolente e erudito esgar, crescentando que sou racional. E que importância tem o adjectivo? Animal!?...

 
Depois, ponho-me a pensar no despropósito do epíteto. Se sobrevivo é porque me adaptei. Lutei e venci. Naturalmente. Animal, eu? Imagino que aos símios não encante a confrontação. Nem estranho que, numa estridente grincharia, recusem a humana comparação.
 
Depois, olho para trás na procura de mim. Credo! Que macacada!! E não sei qual me fez assim. E pensar que tenho vivido na fantasia de ser condição humana! Que primata me engendrou a mim?
 
Depois, desejo na vontade de querer. Que os meus filhos tenha feito ágeis e velozes, por uma questão de sobrevivência. Que os seus membros, mesmo que a outros semelhantes, os façam andar na terra. A baleia é que sabe nadar. E que se cumpra a lógica da evolução nos filhos dos meus filhos, então.
 
Animal, eu? Que seja! Assim como assim, até gosto de amendoins.  
 
 
imagem da internet
 

Pág. 1/2

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2019
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2018
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2017
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2016
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2015
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2014
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2013
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2012
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2011
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2010
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2009
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2008
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub