Daqui vejo um rio… Imagino-o demorado e sinuoso. Atrapalhado na volúpia da foz. Vejo-o sossegado e domado. Só que não é o rio que alimenta o meu sangue.
O rio que não vislumbro daqui é mais azul. Oiço-lhe o cantar… saboreio-lhe o gosto de gostar. E deixo que ele me deslumbre… sinto-lhe o calor dos afectos a encharcar-me o corpo. As mãos ávidas de mim… e cedo aos seus queixumes.
As gaivotas do rio, que nem sei se existe, gritam desvarios em terra… e sempre que ouço uma gaivota a amaldiçoar o rio, pressinto que já não pairam gaivotas no rio que não vejo daqui…
O rio que não contemplo acontece. Bem ou mal, escorrendo pelos lençóis de fado deste leito ressequido… até ao dia em que lhe rasgarem as margens.
Cheguei a casa cansada. Tirei os sapatos que me aperreavam os pés. A sensação de alívio inundou-me o corpo que arremessei para o sofá. Embrulhei-me no silêncio da música que pus a tocar num volume moderado… À janela escancarada assomavam murmúrios de vento. Da rua, chegavam-me alaridos vagabundos e descontinuados. Conversas nubladas. Percebi que esconjuravam o vento. Não queriam que ele ralhasse com o céu.
O alvoroço, que parecia surgir do prédio em frente, levantou-me. Quatro ou cinco homens clamavam arrebatamentos na hipótese golo que não tinha sido. Demorei-me à janela, enquanto os meus olhos seguiam um cão que olhava vagarosamente. Sem se amedrontar com barulho do vento, nem com a música, o bicho vagueava, pela rua, alheio a todos os rumores. Desinteressado por todas as pessoas. Nem a algazarra do café, acabado o jogo de futebol que a televisão transmitira, lhe desencaminharam a intenção. Tudo parecia caber harmoniosamente na sua noção de normalidade. Não, não estranhou nada. Eu é que estranhei a independência do animal. Ali estava eu, observando-lhe os gestos. Tentando entender-lhe as passadas quase caladas. Encostou-se à parede, mesmo por baixo da minha janela, e esculpiu-se no passeio. A senhora, que mora no prédio, cruzou-se com ele. Disse-lhe não sei o quê. Apenas entendi vontades de o expulsar dali. Ele ignorou os insultos que ouviu no olhar da vizinha do número 14. Deve ter-lhe adivinhado o cansaço e desculpou-lhe a descortesia, pensei. Deitou-se enroscado na cauda. Arrumou a cabeça no cimo do amontoado de pêlo dourado e abraçou as patas.
O vento acalmara… Naquele momento, o único barulho audível era a música que continuava a tocar generosamente. E eu flutuei ao ritmo de coloridas sensações. Intraduzíveis. Quando voltei, o cão estava exactamente na mesma posição em que o tinha deixado. De vez em quando abria os olhos. O CD chegava ao fim… Eu invejava-lhe a tranquilidade. Ele olhou para a janela, desenrodilhou-se, desceu as orelhas e partiu. Assim como tinha chegado, silenciosamente.
Fechei a janela, corri os cortinados e sentei-me no sofá. Sorri. No dia seguinte voltaria, à mesma hora, a ouvir a mesma música...
"O tempo cansa-me. Sobrepõe-se-me. Atreve-se a ensombrar passos amedrontados. Atropela-me sorrisos, faz-me encobrir emoções. Agita marés de falsos entendimentos. Desassossega-me, torna-se rebelde, de mansinho, de súbito, num breve instante. Dá reviravoltas às minhas certezas, brinca com os meus espaços, dá um passo em frente, outro atrás, troca-me as voltas. Deixa o meu olhar alvoroçado, inquieto, desajustado. Abre asas à minha eterna agitação, torna-me em instantes forte, e logo de seguida, ao abraçar o som calado das minhas memórias, deixa-me enfraquecida. Por vezes, faz-me esquecer o aroma das muitas velas colocadas e apagadas num doce bolo de anos envolto num açúcar tão branco, a afastar os receios...
Por vezes devolve-me pedaços de sonhos envoltos em algodão doce...O tempo cansa-me...Talvez apenas por ser bem mais forte do que os meus sonhos... "
MLB
Faz um tempo que não recomendo. Tem uma toada que estranho...Obrigada por teres tempo para mim e pelas palavras que me deste...
Sempre que as árvores se ocultam, não são elas que se escondem. Se o fazem, é para ver o Homem passar no vazio da obediência.
Sempre que um cavalo se encobre, não é ele que se desfigura. Se o faz, é para ver o Homem no meio da devastação. No entanto, a árvore está acostumada a viver na realidade da solidão que é sua e o cavalo diz-se cavalo na recusa de múltiplos disfarces.
Hoje, não tenho verbo! Silencio-me na admiração. Apenas uma excepção, pequenina e muito excepcional, para os verbos de ligação. Com predicativo do sujeito… E vou conjugá-los sem ele ser, estar ou mesmo permanecer.
Sou frágil. Sou pedra que ganha a forma do tempo. Permaneço agindo pela emoção.
Amo-te! Não distingue o presente do pretérito? Perfeito? Ninguém diria... Maldito tempo! Também amei. Não creio! Amaras tu alguém e … Outra vez! Cala-se! É uma mistura explosiva. Cuidado, amiga. Amor mais-que-perfeito não existe! Ora… e é preciso esse imperativo totalitário, é? Que queria, então? Vê, agora é o senhor. Perfeito! Qual condicional! Ah! Amaria se pudesse… Não me chateie. Quero um indicativo real. Certeza e realidade. Sem me importar com tempos. Que seja pretérito perfeito. E foi! Que tenha sido imperfeito! Também. Mas absolutamentemais-que-perfeito. Foi! Repare que foi a senhora que assumiu a possibilidade expressa nesse conjuntivo duvidoso. Que imprecisão! Tem dúvidas, é? Saia da minha frente! Que aborrecimento… Desculpe? Ordem ou conselho? Claro, um pedido… Não! Soa-me a instrução. Por favor, não me arruíne o dia. Desapareça!!! Calma! Não seja tão impulsiva. Eu vou… Graças a Deus! Até que enfim um presente a indicar o caminho. Não sei… Talvez volte amanhã! E voltaria com muito agrado. Tenho estado a pensar que … Também pensa? Abale e pense depois. Bem longe daqui. Continua irritada. Eu? Sim! É tempo de sair… Já deveria ter ido e ainda me fala de tempo! Que descaramento. Tenha modos! Ter, eu tenho. A senhora não me está a entender. Tenho todo o tempo do mundo para si! Arrogante! Presunçoso! Então, o que é isso? Difamando? Pronto! Era só o que me faltava! Algemando a conversa. Afligindo-me nessa inútil continuidade. Eu explicaria, se se calasse… Treta! Não quero ouvi-lo mais. Estou farta. Percebeu? Oiça o que falo… foi apenas uma condição. Como não se cala não vou explicar nada, percebeu? Não! Mas posso calar-me…
Amou?
Ama?
Amará?
Amar-me-ia?
Desapareça! Morra! E publique no jornal que foi morto. Não se preocupe se é morto ou matado… O importante é ser particípio muito passado. Na primeira pessoa do singular.
As árvores atravessam a inclemência do Inverno nuas e desgrenhadas. Desprezadas, choram lágrimas transparentes.
As árvores revigoram-se em ventos de silêncio. Apesar do frio, renovam-se na vida calada que carregam no ventre. Abraçam-se aos sonhos na perseverança de serem flor.
Silfo desposa as árvores desnudadas e deslumbra-as com pérolas de chuva. Elas descalçam-se no solo húmido e entregam-se num imenso desejo vital. Porque o amor exige a alma despida. Ele, esgotado, deixa-as ser. No gozo do infinito.
As árvores reaparecem sempre com um sorriso nas raízes. Com gestos de força, acenos de estabilidade e rebentos de paciência.
As árvores fingem-se mortas, para que possam cumprir o milagre da ressurreição. Outra vez. Mais uma vez. Sempre. Eu admiro-lhes a tenacidade. Um dia, também ressurgirei no infinitivo do porvir. Aquietada pela paz que reinventarei.
Sempre que sou presenteada com um insulto embrulhado, não gosto. Isto de ser filha de boa gente obriga à reacção. Eu sei que sou um animal. É verdade! E daí? Não gosto que mo lembrem. Animal! Depois, sorriem num benevolente e erudito esgar, crescentando que sou racional. E que importância tem o adjectivo? Animal!?...
Depois, ponho-me a pensar no despropósito do epíteto. Se sobrevivo é porque me adaptei. Lutei e venci. Naturalmente. Animal, eu? Imagino que aos símios não encante a confrontação. Nem estranho que, numa estridente grincharia, recusem a humana comparação.
Depois, olho para trás na procura de mim. Credo! Que macacada!! E não sei qual me fez assim. E pensar que tenho vivido na fantasia de ser condição humana! Que primata me engendrou a mim?
Depois, desejo na vontade de querer. Que os meus filhos tenha feito ágeis e velozes, por uma questão de sobrevivência. Que os seus membros, mesmo que a outros semelhantes, os façam andar na terra. A baleia é que sabe nadar. E que se cumpra a lógica da evolução nos filhos dos meus filhos, então.
Animal, eu? Que seja! Assim como assim, até gosto de amendoins.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]