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ponto de admiração

ponto de admiração

31
Mar09

cruzar

Paola

credo!

 

 

Hoje é o último dia de Março. Já decidi. Vou colocar-lhe uma cruz em cima. Sem me ater à perfeição do traço. Imperialmente, sem consentir que se afoite a cruzar a displicência das pernas. Ou das linhas que se passam na intersecção egocêntrica do movimento. Apetecem-me cruzes… Dispor em cruz caminhos pedregosos. Atravessar encruzilhadas de Deus e do Diabo, percorrer sentidos agrestes. Gemer silenciosas intercepções. Desenhar cruzes imperfeitas, efémeras. Preservar-me na parede mais próxima e dispor-me em forma de cruz, sem permitir cegas crucificações.

 

Ainda que seja o último dia de Março, data estrategicamente cruzada, calo a minha cruz. Quando a pronuncio, ela sabe-me a suplício, tortura, aflição, mortificação, sacrifício, tormento… Não gosto! Se a inscrevo numa insignificante casinha quadrada, chega-me um sabor indisposto, analfabeto. Por vezes, de tanto a ouvir, canso-me. E, como que por feitiçaria, desenha-se na minha folha em branco um vil instrumento de suplício. Tal e qual! Dois lenhos fixados perpendicularmente. Vejo os condenados que se agitam de braços abertos. Então fujo com a cruz na mão e coloco-a no último dia de Março. Cruzes! Há coisas que não lembram ao Diabo.

 

Mesmo que as cruzes se multipliquem, para imediatamente se arruinarem na incógnita incompreensão. Mesmo que as cruzes se juntem na mais estranha matemática… e até na volúpia da deusa. Mesmo que ela perca a cabeça... e só porque não gosto de desacautelados martírios, eu saio. Na filantropia da rua, acasalo amizades e intersecciono afagos tranquilos.

 

[Fotografia da Internet]

 

27
Mar09

vestir

Paola

verrmelho a_paixão

 

Ela trazia calças de ganga azul-amortecido. Uma ampla camisa branca-devassada. Botas de camurça preto-quebrado. Os cabelos amarrados com sombras cinzentas. Naquele tempo, ela desnudava-se de aparatos trajados.

 

Um dia, encontraram-se no olhar, à hora de almoço. À noite, deram as mãos e amaram-se até de madrugada. Como o Sol ama a Lua que se pôs a chorar. O Sol garantiu que não. Que todas as noites dormiria sobre o seu corpo até ele acordar. A Lua tornou a chorar. O Sol não lhe deu razão. A Lua chorou mais uma vez. Mediu a distância e num segundo pressentiu o caos. E o pranto foi tamanho que todas as constelações soluçaram também. As lágrimas de Pégaso galoparam pelo céu, por tanta incompreensão. Mas todos souberam que Perseu e a encantadora Andrómeda também se desejaram.

 

Agora, ela veste-se mais bonita. Só enverga vestidos-paixão. E tenta voar…

 

[fotografia de Alberto Seveso]

 

25
Mar09

esverdear

Paola

Gosto de estender o meu olhar pelo verde. Trepar às árvores. Agarrar as folhas e rebolar no chão esmeralda-matizado. Mas o que eu gosto mesmo é de olhar… perceber a pequenez dos meus olhos e esfregá-los de espanto verde-claro. Cair redondamente no horizonte e acreditar que há mais. Que o verde continua o lado de lá. Perder-me no seu silêncio e deleitar-me com o cheiro a alecrim. Ai, as mimosas! Distraio-me no amarelo da carqueja e confundo-as com o Sol! Mesclam-se as cores, misturam-se os perfumes, fundem-se os bem-me-queres.

Há pouco, vi o verde. E era tanto, tanto, tanto! Há pouco, vi flores para te dar… e comecei a duvidar que o verde seja uma cor.

A cor do verde amanheceu. Fez-se azul-céu de passados esverdeados. Depois, pintou-se de verde-mar e eu naveguei por um oceano que logo se amansou… andei pela alameda de espuma, viajei na ponta das ondas e perdi-me na busca de mim. Achei reflexos dos meus pensamentos… As flores não as colhi. Arrependi-me do repentino impulso... 


[imagem da internet]


 

23
Mar09

des-formar

Paola

http://i192.photobucket.com/albums/z259/lightmylife/voar-1.jpgo acto de alterar 

de filha a mãe e ao contrário

 

 

 A Maria era uma menina. Um daqueles seres que transportava o mar nos olhos e a paz no coração. O corpo servia-lhe para saltar de pedrinha em pedrinha, depois de mergulhar nas águas do ribeiro da sua infância.

 

Naquele dia, Maria acordara cedo. A manhã acontecera no chilreio dos pardais que, sorrateiramente, se desagalhavam  dos beirais. Há tanto que a menina a esperava nas suas redacções primaveris! Apesar da ortografia, a Primavera chegou na alvura da manhã.

 

Maria levantou-se apressadamente. Tomou o pequeno-almoço despachadamente. E preparou-se para sair sorrateiramente… Não queria acordar os pais. Não por eles, mas por ela. Mal levantou os olhos da mesa, gritou. Tanta foi a perturbação que se ouviu no rio. À sua frente duas crianças disputavam o lugar à janela... empurravam-se… batiam-se… mordiam palavras encarniçadas… Maria ordenou-lhes que se calassem. Mostrou-lhes a imbecilidade do comportamento. Ameaçou-as com o chinelo. Com o quarto sem televisão. E estranhou-se… mais se desconheceu no exacto instante em que as desassossegadas criaturas lhe obedeceram… No vidro da cristaleira, viu-se mulher. Por isso, tornou a bradar. Uivou uma alcateia desvairada, na melhor imitação que alguém já conhecera. Embasbacada. Estarrecida. Aturdida. Beliscou-se, flagelou-se, lavou a cara, esfregou os olhos, saltou, pisou-se, engasgou-se com palavras do recreio da escola...Tinha-se, de facto, transfigurado numa mãe-mulher. Com dois filhos para cuidar, exactamente aqueles que a amamentaram. E não sabia a explicar a transformação!

 

Maria entristeceu repentinamente. Acabara de prometer a si própria que seria eternamente criança…  abraçar a vida com linhas rectas de abraços.Tudo mudara. E agora? Maria não encontrava respostas, até porque as deixou de procurar. Não fosse a morte encontrar, por tanto a desejar…

 

Maria estava aterrorizada e tão triste, a triste. Adulta? Assim, de um momento para o outro? Como foi possível? Não ouviu a resposta. Morreu de desilusão. Houve quem garantisse que não. E falava-se  numa enorme perda de ilusão.

   

 

[imagem da internet]

21
Mar09

vacilar

Paola

Na minha cidade, à entrada, do lado direito de quem desce, está assinalada a minha desorientação.
 
Desço com as mãos molhadas  por bolas de sabão-fantasia... Depois, subo e torno a descer. Desço. Sinto o meu tropeçar na beira da estrada por tantas curvas embriagado. Mas eu sei que nunca caio, apenas vacilo…  na indefensável leveza do meu ser.
 
 
 
[imagem da internet]
 
 
19
Mar09

anilar

Paola

Sinto uma cavada tristeza  pelos teus sonhos imperfeitos. Pelo anoitecer do céu  azul  que se modelava no teu olhar...
 
Do hoje, que é Março, olho a paisagem descansadamente tranquila e tornam-me as saudades das tuas... Despinto o azul que le levou..
 
Hoje, pai, comprei-te uma camisa castanha com riscas azuis… Vês como não me esqueci da cor dos olhos?
 
[colagem A. Ferra - 2004]

 

17
Mar09

atempar

Paola

O vento rodopia rápidas reprimendas. Por aqui e por ali. Mais além, acolá também. Divulga-se, voa, galga mares e escala montanhas na mais completa ânsia de transposição de espaços. Dispersa-se nas línguas e nas gentes. Sabe segredos que partilha a cada esquina. O ancião carrega uma mão cheia de sentidos. E pelos dedos, conta um a um… concluindo, invariavelmente, que lhe falta outro. Que a conta está errada!

 

O tempo inveja-lhe o ofício. Quer ser vento, de manhã, à tarde, até de noite. Por isso, põe-se a acontecer, implacavelmente. O vento graceja da incapacidade. Lembra-lhe a ausência de mãos e acrescenta que não tem sentido o que teima em fazer. Que guarde as asas! Quebradas não chegam ao céu… alerta.

 

Percebi a dignidade do vento. Se não desperta todos os dias com a mesma intensidade, a erro é do tempo. Ao relógio, extingo a corda… vou deixá-lo a abolorecer. Sempre que o meu relógio não tem tempo, a minha liberdade solta-se com o vento. 

 

[imagem da internet]

 

15
Mar09

contrariar

Paola

não sou capaz

 
 
O rapaz chegou cedo… mas atrasou-se na entrada. Entrou com os olhos apoquentados e o corpo denunciava o peso da lei. Preceitos que ele não entendia muito bem, por contrariarem a sua vontade. Passos demorados, passos serenos, cabeça para baixo de quem tem a determinação efectiva. E matutava sobre a proficuidade de uma prova de recuperação. Não entendia como ela o poderia recuperar, se ele nem se sentia doente. É um bonito moço. Alto, com aspecto saudável e pele sã. E muito menos entendia a obrigatoriedade do recobro e o intuito de andar tanta gente interessada no assunto. Bastava-lhe ir e vir, com um saquinho às costas. Coisa pouca, só para conter os haveres muito pessoais. Nada de livros, cadernos… não era capaz.
 
Na obediência da ordem, lá abriu um livro que não tinha. Há sempre gente boa. Mas não leu. E nunca disse que não sabia ou que se recusava. Apenas reafirmava que não era capaz. Não explicitou as razões. Porque não foi capaz. Não respondeu a qualquer pergunta, porque não foi capaz. Não fez a prova, porque não foi capaz
 
E eu estou para aqui a pensar que a vontade não se decreta… que tenho de ser capaz de forjar relatos muitos … Eu que discordo de leis imperiais! Ora, se o determinismo é uma teoria confirmada, o rapaz agiu em condição. Nem merece punição. E o jovem lá permaneceu na maior desvontade de fazer tudo, incapaz de entender os condicionalismos da liberdade de escolher.
 
[imagem da internet]
 

 

13
Mar09

dessintonizar

Paola

 

 
 

Sugestão de fim-de-semana
 
 
 
 
 
Ame muito. Peça boleia. Estranhe-se. Case e descase. Escravize-se. Escreva um livro e leia outro. Sorria. Regue as flores. Cante. Acorde os vizinhos que lhe empecilham uma morte quieta. Pule a cerca e beba chá. Não toque na caixa do correio. Cometa erros. Assassine saudades. Sacie-se de si. Esqueça a bomba e as metralhadoras. Dispa-se e vista perfumes de paladares para os quais nunca olhou. Agarre os pedaços de solidão que vadiam pelo chão, coloque-os numa caixa de cartão, não vá, um dia, precisar. Ame tanto, ame sempre. Sem se assustar com a perda. Saracoteie languidamente o corpo.  Salte no trampolim e agarre o céu. Permaneça torto no seu canto. Despreze a estrondo do tiroteio que acontece no andar de cima. Feche os olhos à sujidade do mundo. Reze e blasfeme contra o presente imperfeito que o coagem a aceitar.
 
Sintonize-se com a música. Com os livros. Consigo mesmo. Respire fundo, dessintonize-se. Aferrolhe a porta não vá o vento caber. Tome conta da roupa da cama. Dispa-se com cautela. Sossegadamente, para não arranhar a pele.
 
Faça tudo como se fosse a primeira vez. Ria com a sofreguidão da última… mas dessintonize-se.
 
 
Não corra. Para quê tanta pressa? Segunda-feira, quando sair, verá que a terra não se desintegrou... nem se lembrou de si. A morte de uma pessoa apenas é desgraça no miolo da dor... nos jornais é sempre estatística.
 
 

[fotografia da internet]

 

 

 

11
Mar09

esconjurar

Paola

ou a inaudita estranheza

 

 

 

O que hoje vos vou contar é um facto isolado. Nada que justifique alardes nos jornais e outros que tais. Tudo muito normal nesse recanto da terra.

 

Havia por lá sujeito que nem fazia mal. Apenas um desbocado, por vezes inconveniente. Quem? Quem? Eu! Evidentemente. Não havia predicado que não cantasse e assumisse como seu. O homem não sossegava, tanto era o cumprimento. Apregoava que não queria morrer sem se conhecer de verdade. Irritava aquela interacção entre o sujeito e os predicativos a que se ligava. Não fazia, nem deixava fazer. Mas fazia, dizia ele. Gabarolices, enfim! Havia muito quem se admirasse. O quê!? Este tipo não tem complemento! Não trabalha! Ainda por cima, nem é directo. A quem? Ele não é desses! Não faz nada a ninguém. É um embuste interesseiro. Certo! Não quer ele outra coisa… Caprichoso e determinado, descansa na apatia do outro, o predicativo do sujeito. Avesso ao trabalho, também. Permanecia por ali, era um paspalho e estava sempre a esconjurar. No domingo, fez uma cena desgraçada por causa do vocativo. Nem o conhecia!! Insultou-o inexplicavelmente, conta quem assistiu. Tem razão, Afonso. Ignora-o… é um presunçoso maldizente. Ainda teve o atrevimento de aferrolhar o aposto entre duas atrevidas vírgulas! Que são aqueles pontos que andam sempre de rabo-de-cavalo. Só lhes falta o ganchinho cor-de-rosa… Uma pausa para retomar o fôlego, desaprovava-se. É óbvio que o complemento circunstancial de causa se viu compelido a chamar a polícia. O agente passou-se, que não estava para aquilo, que estava de serviço na outra rua. Foi uma vergonha. De imediato, todos os complementos de companhia se juntaram para o enxovalhar. Que era um agente da passiva ou qualquer coisa do género, que eu não me meto em desordens e muito menos quando envolvem a autoridade. Só que a coisa se complicou quando apareceu um sujeito muito bem trajado, um subentendido que ninguém conhecia. E vá de perguntar pelo complemento determinativo. Que imbecilidade! O homem estava mesmo determinado a descobrir a verdade. E berrava com toda a gente. Quem? Onde? Quando? Ainda por cima, exigia saber qual tinha sido a arma do crime. Através de quê?? Isso é lá pergunta que se faça? Adorei! Ninguém lhe respondeu. E quando o corrompido do complemento de causa esboçou vontade de tudo desvendar levou logo um tabefe de um tipo que avançou do meio da multidão, um tal de instrumento.

Antes que houvesse sangue, coloquei um prolongável ponto final, fugi dali para fora, não fosse sobejar para mim. Garanto que não entendi tamanha barafunda. Agora que o sujeito veio com as tretas do costume, lá isso veio. Mascarado! Os predicativos do sujeito, afiançaram. Qual quê! O homem é um contrabandista praticante, é o que é. E o tempo que eu perdi? Vou amaldiçoá-lo, ai vou, vou.

 

[imagem da internet]

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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