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ponto de admiração

ponto de admiração

30
Mai09

navegar [entre o passado e o presente]

Paola

fotografia de Luís Costa

 

Achei um búzio que andava a chorar. E o búzio de tanto chorar, logo se pôs a cantar. E por tanto cantarolar, começou a consentir. Um canto que vinha do longe. Que vinha do mar.

 

Peguei no búzio que parara de chorar. E que agora estava a olhar. E de tanto olhar, afogou o rumor que remava no mar.

 

Embalei o búzio deserto. Que só queria cantar. Pedi-lhe que se ocultasse para o poder adivinhar. Contei-lhe uma história só para o calar. Que dali, eu via o mar. Que dali, percebia o silêncio dos sulcos das ondas. E que começara a desconfiar se flutuariam búzios no mar… Que dali, eu cobiçava o mar e o melhor era correr e até mergulhar. Acrescentei, apenas para que se deixasse, que dali, eu sonhava o mar. Que me deslumbrava com as paisagens a flutuar… para cá, para lá… e que via rostos ateados nas águas a errar… Persisti na história. Que dali, eu afundava o mar.

 

E o búzio que andava a chorar. Que já estava a cantar. E que se calou para a ouvir uma história de marear, logo me falou da inutilidade da proa. Tornei a recordar-lhe que na cama onde me deitava, havia sonhos a que não assistira. Que não entendia a razão de tamanha proibição.

 

E o búzio que eu encontrei a chorar. Que já só me estava a olhar. Acariciou-me a sombra que me velava rosto. Correu pelo calor da areia. Tropeçou. Ficou. Então, amargas lágrimas aconteceram no mar… Fez-me um último pedido. Implorou que ao meu ouvido chegasse o azul do rio que era aquele. Que não chorasse no mar.

 

E o búzio que eu encontrei a chorar. O búzio. O búzio naufragou. Sem me explicar por que tinha dentro a voz do mar…  noites de verão e muitas conchas com vozes. Que nas minhas mãos se estendem na consonância rosada da sua pele .

 

Eu sei… Fico por aqui. Nisto. No silêncio mudo do vento com paladar a maresia. Aportei. Amei. Lambendo os frutos do mar. Lancei o búzio. Atirei os búzios. Na analepse das grandes marés. Na ignorância de prolepses escusadas… a escutar o futuro.

 

 

28
Mai09

arder [entre a verdade, a certeza e a ilusão]

Paola

la femme du trésorier, Wassili Tropinin

 

 

 

O Sol nasce com tanto brilho no seu esplendor! Solta-se do céu, esbanja regaços de luz... ofusca o meu saber… Enquanto resplendece no delírio da evidência, eu ardo na teimosia de ter razão… tal como o céu, a felicidade é uma utopia.

 

Ao Sol, embriago-me com uma taça de sonhos… E bebo muito. Insano desconcerto… Até sorvo o equívoco. Até a taça ficar vazia… Até ser noite…Até ser dia...

 

Com Sol, a verdade desamarra-se da ilusão… Então, na mais real e  clara realidade, sobra-me tempo para ser feliz…

 

 

26
Mai09

arder [entre a verdade, a mentira e o impedimento]

Paola

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Acordei destapada pelo Sol que entrara afoitamente pela janela. Que descuido, o meu! Assim, como se eu fora raios que ele desbaratara em criança… Não era! Nem sou!

 

O meu corpo desejou chuva. Ao menos, ela chorava a meu lado. Molhávamos as mágoas. Emergíamos das dores. Do alto. No aprumo de ser.

 

Subitamente, lembrei-me que não posso apressá-la. Ela cai quando quer cair. E tombar. Na genialidade de acontecer. Escorregar. Alcoolizado desejo de molhar. Tantos rostos! Muitos! Copiosamente…

 

E eu cheguei a acreditar que ela apenas molhava o meu… Só que nunca aconteceu. Cheguei a pensar que estava apaixonada, mas descobri que era apenas desejo. É que eu sinto pela chuva a mesma coisa que sinto pelo Sol...

 

[fotografia de Ricardo Silva]

 

 

 

23
Mai09

Sonhar [acordei cedo.muito.tanto]

Paola

 

Sonhei na quietude do meu sono. Acendi a luz, para o olhar nos olhos. Envolvê-lo nos meus braços desnudados. Ri. Tanto. Tanto. Muito. As gargalhadas rebolaram pelo chão do desfalecimento, redizendo estouros da insana ambição. Naquele instante, percebi que as minhas mãos desapareceram… e arrependi-me de ter acordado sem vontade de acordar. Só o queria ter… Abraçar os seus pés e caminhar neles.

 

Agora, apenas me recordo de metade. De quase pouco. Lembro-me de tudo. Tanto. Tanto. Muito. E no leito do meu rio, as ondas desarranjam-se em soluços remexidos. Aqui. Lá longe. Na claridade do Céu. Azul.

 

Que ave foi aquela... cúmplice, carinhosa, companheira, espontânea... que adoçado trinado motivou a cobiça dos ventos e afrontou os trovões? Que ave foi aquela que não ultimou, no seu sono, o sonho que esvoaçou? Aquela foi a ave que o meu sono acordou… e que em tempos discursou sobre a fragilidade das multidões.Tudo passa.Tudo passa. Tudo passa... Aquela foi a ave que o meu ombro serenou..

 

(fotografia de Paulo Santos)

 

 

21
Mai09

Empedrar [história arrecadada no verde da pedraria]

Paola

 Quando na ignorância do arco-íris estuda a simpatia das cores, sente-se assim. Branca e preta. Preta e branca. Não se importa com a imperfeição da estrada. Nem com a geometria poeirenta do empedrado. E nota que as pedras que ali faltam são precisas à ladeira.

 

Quando, nas pedras da calçada, ele tropeça no seu olhar, ela roga-lhe que feche a porta. As janelas. Que cubra o telhado de gélido frio e que passe paralelamente à beira do pavimento. Ou então, erga um muro. Mas do lado de lá. Antes que elas comecem a afundar-se…

 

Quando ela olha as pedras da calçada, vê o verde da pedraria e escorrega pelo corte irregular do calcário. A preto e branco.

 

 

 [imagem da internet]

 

18
Mai09

navegar [entre mil doses de sede]

Paola


 

Nesta clara manhã de sol inquieto, acordei com um inusitado desejo de ver o mar. Aparelhar a cama e zarpar. Bracear à bolina, na fé de um vento propício. Neste existente tempo de caravelas perdidas no azul-partida, adivinho as velas a bailar. Asas abertas ao vento… ancoradouro da minha escolha… refúgio de anémonas-do-mar… de rosários e corais… É a opção que dói! A impossibilidade que rasga a pele.

 

Eu olho-o na carícia do meu olhar e largo a prioridade… velejo à deriva… na incessante busca da maré do princípio. Porque há beijos para além do mar… e, no rio, os búzios entoam cantigas de chegar.

 

Fotografia de Jorge Soares

 

 

16
Mai09

travar

Paola

[prefiro o silêncio à simulação do falar]

 

 

A avenida estendia-se na horizontal. Ondulava aqui e ali. Traições desnecessárias para quem anda sempre no passeio. No lado de cá.

 

Uma aceleração. Outro passado alargado à medida da pressa que não se via. Um grito de criança a reclamar o tempo. Horas que não lhe foram dadas para suicidar o sono que lhe atravancava a vontade. Travagens aflitas nas passadeiras movediças que conduziam para o lado de lá. Uma eufórica buzinadela cumprimentava caminheiros despreocupados. Acenos de fim-de-semana. Desejos expressos no empedrado. Uns subiam, outros desciam. Na ânsia de inventar um domingo que fosse outro dia. Talvez domingo.

 

Nos sacos, viajavam propícias pescarias. Restos de abates carniceiros. Pedaços de hortas e pomares despojados dos frutos. Raízes que tudo fariam para crescer no chão. Penduradas na terra. Trapos e farrapos roubados ao pregão. Carteiras gordas de tempo. E de mês. Bolorentas de esperança. Filas de alívios e dores. À porta da farmácia. A meio da avenida. Do lado de cá.

 

As bocas repetiam-se na mesma fome. Os corpos rezavam as mesmas pisadelas. As crianças brincavam, desinteressadas das nuvens que pressentiam a chuva que não acontecia. Ali, na avenida. Olhavam para cima, sempre que passava um avião. E ensaiavam a partida. Encetavam a fuga pelo ar. Na terra, a avenida prolongava-se no limite do interrogatório. Os carros chiavam travagens exaltadas. E as crianças insistiam em crescer na avenida. Tanto! O assunto da conversa não era outro. Aquele. De ontem a hoje.

 

No congestionamento da conversa, a dor alastrou. O corpo piorou. E o silêncio intentou a caminhada. De cá para lá. Pela avenida. Destravou!

 

 

15
Mai09

saber

Paola

[quando não sei de que falo, calo-me. E olho para lá...]

 

 

Não sei do que falo. Não sei conversar de todas as verdades em que paro. Perco-me e não vejo a minha. Por vezes, tento explicar mentiras. Caio no momento em que encontro outras mais.

 

Não sei de que falo. Na verdade, não consigo comentar o luar. E como a Lua se enfeitiça pelo mar. Não sei de que falo, quando me calo diante da beleza daquela roseira que enfeitava a paciência da minha mãe. E ela nunca lhe entendeu a efemeridade.

 

Não sei de que falo. Minguo na elevação do requebro da gargalhada de uma criança. Emudeço a escutar o marulhar do mar. A acontecer. Não sei de que falo se, por acaso, me debruço no olhar.
 

Fala-me daquilo que eu não sei! Para que eu possa falar…Agora, não sei de que falo. Tão-pouco se quero falar.

 

Não sei de que falo. E depois? Não importa… Desvendo-me dentro do silêncio com que as palavras me protegem. Ah! Eu sei o que é. No entanto, não sei explicar.

 

 

13
Mai09

despintar

Paola

[Passeios ao domingo]

 

 

 

Aos domingos, dava passeios pela avenida principal. Alindava-se para os ver passar, invejando-lhes a agilidade. Até a ganância do primeiro beijo. Beijo doce. Salgado. Perfumado com odores de laranja. A turbulência das mãos na brandura do olhar. Mãos de seda que buscavam o Sol, nas vísceras do tempo. Na impermanência do querer.

 

Do lado de cima, tudo lhe parecia muito do mesmo. Na monotonia dos gestos. Na incontinência dos compromissos. Nos zunidos distantes da música. Do lado das raízes, nada se rebanhava na semelhança repetida aos domingos à tarde, na calçada. Tão diferente do lado de lá!

 

Já conhecia os seus passeios. Em tempos, contara-lhes as pedras, distinguindo as brancas das pretas. Mas havia as cinzentas. Turvas. Turbulentas e indecentemente indecisas. Embriagadas. Dessas, nunca entendera a cor.

 

fotografia de Jorge Soares

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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