Ai, quem me dera correr para lá. E chegar! Depois, rebolava e ria à gargalhada. Calava-me. Para ouvir os piscos a voar. E invejar-lhes a beleza da cor. A magia da voz. A afinação dos trinados na frescura da tarde. Tão tarde! O domínio apenas existe no nevoeiro da minha visão. Sobram vulcões de urbanidade de alicerces construídos. Os piscos aborrecem-se com os rumores das betoneiras.
Ai, quem me dera estar lá. E ficar! Saltitava de flor em flor. Escolhia-as pela cor. Sentava-me. Por estranhar efemeridade. E abençoar-lhes a fragrância. O apego do caule. A verdade do viço na quietude da manhã. Tão cedo! Agora, as pétalas de cetim perduram pobremente no tacto dos meus dedos. Permanecem chãos de papoilas que eu matizo, se me importuno. Eu aborreço-me com os alvoroços dos jardins.
E agora que não estou. Eu sei! Sempre que chovia, eram as papoilas que me abrigavam. Na fragilidade das varetas. No agasalho do pano que olhava para a chuva. Para lhe descobrir o destino. A água esquecia-me e dirigia-se abundantemente para a raiz. Sustento. Eu apenas a honrava. Hoje enalteço-a. Nua no desassossego quente do Sol. Está escuro e eu olho para lá. E percebo porque tanto gosto da chuva… e de guarda-chuvas vermelhos.
... e para trás a casa. Tão tarde! Um, depois outro, fazendo-se tantos. Respiraram fundo. Ofegaram partilhas e sentaram-se na frescura do chão. No céu, o Sol gargalhava orgulhos, esperando que eles acabassem a fartura. Demoraram no prazer... pegavam as palavras... faziam amor com elas.
O Sol reluziu o espanto. Tudo parou... Eles devoravam os livros. Comiam-nos... um a um. Começaram pelas lombadas... a capa... as folhas... Pelas bocas escorriam universos e sonhos. Vidas e emoções. Com gula de primeira necessidade. Antes que a bancarrota da leitura fosse notícia nos inúmeros números que falam de números...
A recolha do lixo fez-se à entrada da noite... Apenas umas tantas margens, uma ou outra sobrecapa, um frontispício. Um epílogo, três prefácios e um posfácio. Nem um título!
Uma mulher continuou sentada... agarrou as folhas que se soltaram e esperou que elas voltassem ao princípio...
Assim o trato. Nada mais piroso que a cansada saudação de “meu querido diário”. Querido? Que denguice peganhenta! A estranheza do pronome imporá limites confortáveis. Detesto palavras sem perfume. Sem voz. Quero lá saber da nobreza, mesmo que duvidosa, do termo. Vossa mercê entenderá a impossibilidade. Destapar o intimismo da minha pele. Aquilatar a minha fome e sede de desvinhos e alegrias a nada conduziria. Fico-me pelos copos de jazz. À noitinha. E penso que você nunca seria eu. Você. Parece-me bem. Frios e distantes, para não resvalarmos em confidências obscenas. Não me conhece. Eu nunca o vi. Essa amizade rolante que apregoa esbarra no logro da proximidade. Cruzámo-nos ao meio dia e doze minutos, lembra-se? Claro que ignorou o susto que me pregou e o grito que você chiou. E já garante uma amizade burlada no olá que me recuso a dizer e que você não para de corvejar? Deixe os bichos em paz que são de Lisboa. Devotos a S. Vicente. Que absurdo. As suas páginas são fossas devoradoras de precipícios humanos. Quer lá saber de lendas! Cale-se. Já conheço esse paleio. Afiançar-me que aferrolhará as minhas palavras a sete chaves é mais uma das suas patranhas. A exuberância, que exibe, advém-lhe de uma chave e de um insignificante cadeado de segunda ordem. Provavelmente, você até um daqueles tipos que passa a vida na praça pública a vangloriar-se da coisa. Risível! Acocorado num banco de jardim decoradamente apurado por evacuações de pombos vagabundos. Você é um funesto cliente de caminhos que eu quero calcorrear. Se eu os escrever, deixo de apontar os atalhos. Prendem-se-me as rédeas. Perco-me nas direcções. Você é um covil que me castra a liberdade da minha narrativa. Eu escrevo para adiar a extinção do meu corpo. Por vezes, não entendo o enfermo impulso que me arrasta para a escrita. Só pode ser culpa sua. Vou denunciá-lo! Por me coagir. E também por assédio. Violação. Tédio infringido pela duplicação dos dias. Das horas. São vinte e uma horas e dez minutos… Como se eu me vendesse à cruel cronologia tempo. É o tempo que me consome, senhor! Não importa o delito. Apenas me proponho mover-lhe uma acção. De pequenas causas, diz você. O problema reside na apresentação das provas. Se me virasse do avesso, conseguiria. Não posso, nem quero, que é coisa íntima. Impugno lavagens de roupa suja na via pública. Não o conheço. Você não me sabe. Não me digo! Você não me conhece, por que lhe devo confiar as dores que me encharcam o corpo? Eu não o conheço, por que devo crer que você não é papel? Essa agora! Que treta! Bola de cristal? Você é doido. Só me faltava mais esta! Cartomantes, videntes, faquires e encantadores de serpentes… Tudo para animar dias ateus, esquisitos e crentes que a chave é a mão. Você não se enxerga, pois não? Evolução, relação, revolução, alimentação, corrosão, coração, perdição… Não!!! Então e as consultas pelo MSN, as adivinhações on-line. Qual bola, qual arte! Cartas, búzios, magias para afeições e felicidade, solução para todos os problemas, desbloqueios de felicidades. Um clique, um utilizador, uma palavra mágica… e a porta desaperta-se na desadivinhação da mente.
Percebeu a razão do meu tratar? Sim, você! Entendeu as desintimidades? Eu escrevo para, da proa da barca que me delimita, contemplar o rio que desagua aqui. Escrevo porque sou louca. Para não me engasgar com palavras que me aparelham a voz. Você é lixo flutuante. Maré negra de incautos desabafos. Desapareça! Recuso-me a ver a loucura das personagens que invento aferrolhadas em armaduras de aço. Você é chave, eu sou alforria. Você… Não se melindre! Você é sociolecto em Cascais. Minhas ricas tias!
há instantes que são ventos na irrepetibilidade do sopro
Quando olho pela janela, vejo flores. E muitos barcos... Às vezes, perco-me na imensidão do espaço, no comprimento do tempo... e penso. Penso nas paisagens que tive e sinto saudade. A minha cabeça enche-se de nostalgia... porque são momentos irrepetíveis. Com acordes melodiosos, a minha memória seduz esse olhar...
o meu olhar embaciado engole o meu choro de saudade
No mercado da vida, compram-se e vendem-se afectos por preços descompassados. Os meus não estão à venda... e o meu pregão é o grito com que nasci. O mesmo que jorrou na manhã em que te perdi...
Em Maio, a chuva cai verticalmente. Às vezes, por caprichos do vento, titubeia na obliquidade do caminho. Movendo-se na constância do traço…
Em Maio, a chuva murchou o seu sentir. Por isso, não sabe como tombar, receando a queda livre numa qualquer estrada horizontal… na incapacidade de orientar o número de lágrimas na inclinação do telhado…
Num simulacro de geometria, o esquadro risca novas rectas no espaço… A chuva já não sabe se pode chover em Maio…
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]