O rio está na obliqualidade da paciência da paisagem. E cuido que aquilo que contemplo não é certamente o que sucede. E penso que o rio, que aponto, existe para alcançar o mar. Que a água corre veloz. Como o tempo que se engasga nos seixos do leito deste rio. Eu é que não sei fluir naturalmente, na continuidade do meu caudal. Por desconhecer onde posso desembocar. Não me sei na sintaxe do açude que sossega a água na obediência das regras. No desconhecimento da nascente sôfrega do rio. No desagradecimento das areias receosas do mar.
E é na incapacidade de entender o rio que os olhos espargem lágrimas de noites alarmadas pelo silêncio do mar. Na contaminação das águas doces e salgadas. No plácido e celeste rio que irriga a perplexidade do meu olhar.
Desamparada, a mesa saboreiarestos de tudo. Sorve, em inquietos copos do nada, sobras de vinhos espumantes. Deleita-se nos corpos distantes, remotamente saciados. Farta-se com os arautos de migalhasque se viram para o chão.
Satisfaz-se nas sobras de nós. No dia em que não chegámos.
O jardim da minha mãe sabe a abraços. Caules enlaçados pelos dedos floridos da sua perseverança. Cheira a terra regada com o zelo matutino que a arranca da cama. Bem cedo, não vá o calor chegar. Teimosa, a minha mãe! Jura a pés juntos que as flores, que rega pela calada do Sol, falam. Que conversam muito. Tanto. Às vezes, dissertam sobre a problemática dos jardins suspensos na saudade. Os brincos-de-princesa aprumam-se nas orelhas do carinho. E escutam a voz quente dos pés enfiados nas chinelas de transbordar afagos madrugadores. Antes do Sol. Garantem as sardinheiras, que abundam em latas desalojadas, no entusiasmo do vermelho. No viço da singeleza de serem. Indeferem a fidalguia que desconhecem. Erguem-se na beleza de florirem à janela.
O jardim da minha mãe sabe a beijos nocturnos. Esvaídos em cuidados orgulhosos. Verde. Da cor dos fetos que correm a passos largos pela beira do canal. Resplendoroso. Da cor da presença puxada pela manhã. Eternamente na ilusão do verde.
A minha mãe não tem um jardim. Se tivesse, saberia à cor com que ela se pintou até desbotar. Ela não chegou a saber que o feto morreu. À janela…
Olho e vejo as andorinhas transtornadas. Vieram na ânsia da chegada. Largaram frios abafos e procuram abrigos quentes. O pão e um ninho de afectos.
Chegaram. Pelo bico largavam o espanto da sua voz deliciosa. As asas pranteavam o luto. O ardil das penas. E voavam insurreições cambaleadas. Círculos espavoridos.
As andorinhas vieram pela estrada do tempo. Pela calçada. E não se conformam que lhes tenham devastado os ninhos.
Ele estava ali. Na verdade, estranhei. Calado e amargurado. Bravio na agressividade que amansava com os dedos irritados pela insatisfação. De vez em quando, espreitava por cima dos exasperados pardais enxovalhados nos beirais dos telhados.
Ali, estava ele. Estupidamente sombrio. As nuvens. Uma a uma, ele as contava. E descontava-lhes as figuras depravadas que mostravam. Descobria-lhes assíncronas vontades. Nos olhos, destapei-lhe as arritmias lascivas que teimavam em ripostar.
Naquela tarde, eu tinha que o deixar descarregar nas nuvens. Permitir que as atingisse na loucura que ousavam. Nas indecências que escreviam. Assim, num bilhete ardente de cinzentos imprudentes. Comprazer-se na indecência de as esmurrar. Pela leviandade dos baixos vícios. Pela grosseria das fagulhas que troavam gemidos espavoridos. Tinha! Mesmo que, na extemporânea trovoada da perversão, as nuvens ficassem.
Naquela tarde, não deixei! As nuvens não tinham culpa de carregar projécteis impacientes por outros ventos. De não saber cair inteiras. E ele sangrou. Para não se magoar. E chegou lá com os pés no chão. Então, reparou nos pedacinhos de azul que esperavam um poema favorável. E sorriu. Com gentileza.
Em cima do telhado, restolhavam trinados amarelos. A manhã trauteava réstias de Sol, com uns brincos de oiro pendurados nas orelhas. Os rubis refulgiam vermelhos incendiados. E ele esvoaçava de uma telha para a outra. Pulando como quem expulsa medos. Para, abundantemente, conservar a paixão. E cantava. O pássaro desafiava regozijos alegres. De uma telha para a outra. Sem ousar saltar para o outro lado da estrada. E olhava. De seguida, cantava. Ornatos musicais. Andamentos em sol maior.
Por baixo do telhado, um som. Música tónica e robusta. Martelo ritmado no aconchego das tábuas. Uma serra serrava. Ia e vinha, num vaivém semeado. E voltava ao princípio. Corrigindo imperfeições. Ouvia-se o gesto que martelava descontentamentos. Queixumes de satisafeitas canseiras. Da boca escorriam suores admirados. E as mãos amaciavam obras liquefeitas. Pressentia-se o ardor dos dedos que lavravam a madeira, na recusa da cola. Bebia-se o consolo de evitar os pregos. O carpinteiro sabia. E não queria rachaduras que fragilizassem a construção. Persistia. Na roda da água. Que bebia por baixo do telhado. No silêncio que brilhava quando o carrossel girava. E o pássaro gorjeava que o homem parara. Simplesmente contemplava.
Do outro lado da rua, um pássaro voava... Edificou um ninho no beiral inclinado da confiança e adormeceu a ler o poema. Então, cantou.
Das ervas desejaram o Sol. Na avidez do mais. Na renúncia do nada. Famintos, exultaram sedes insaciadas e beberam tragos de prazeres camponeses. E os corpos atreveram-se a querer. Cobertos de papoilas, na maleabilidade do vermelho. Ébrios, elevaram as taças do ópio e saudaram o infinito. Devolveram os beijos num ímpeto de raiva. Entregaram os corpos num enleio profundo. Tocaram-se com estremecimentos acetinados, bordados com mãos de alecrim. Perdidamente, no prado com cheiro profanado. No beco onde os poetas seduzem as palavras. Enfeitiçam os versos e o vento põe-se a bailar. A brisa corria na tranquilidade da utopia, num trilho de silêncios mordidos. Só as papoilas ousavam entoar maviosidades carminas. Eles consumiram-se e voaram. Na sinestesia das colinas que ladeavam o vale.
As asas atearam-se no vermelho quente do Sol. Tão quente! Quiseram, um dia, escalar o Céu. Experimentar voos proibidos. Quentes, mais quentes. Sempre no vermelho dos corpos esfomeados. Sangrentos. Mas as asas não suportaram a subida… e esmoreceram num chão de papoilas. Na desobediência a um sinal vermelho. Que disseram verde no delírio da transgressão. No prado… à beira da voragem da vida. Ali, onde as rugas que vincam as asas sorvem os alucinantes licores das papoilas. Na demanda da cura.
… e a menina sentou-se ali. Na desventura que lhe encarquilhava o olhar. Que lhe chicoteava o sono. Mas estava na reverência do dever.
… e a menina escreveu que o pior dia da sua vida [que vida tão pequenina] fora no dia em que começara a crescer. Só porque lhe acrescentaram o entender.
… e a menina amaldiçoava o dia. Tanto! Que tanto lhe parecia tão pouco. E continuou a escrever. Uma história de assustar. Com ébrias figuras. Com assaltos ao dormir. Com cardos a germinar pelas assustadas paredes do quarto. De noite… até ser dia de começar a escrever… sobre uma abelha-flor que lhe aferroava o crescer.
... e a menina ainda não sabia dizer que uma rosa era uma flor. Que das alturas descia. Sem espinhos. Com pétalas da cor do sono. Dos sonhos. De menina...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]