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ponto de admiração

ponto de admiração

30
Jun09

fluir [como o tempo que se engasga com as lágrimas na voz]

Paola

 

Ericeira, Paola

 

O rio está na obliqualidade da paciência da paisagem. E cuido que aquilo que contemplo não é certamente o que sucede. E penso que o rio, que aponto, existe para alcançar o mar. Que a água corre veloz. Como o tempo que se engasga nos seixos do leito deste rio. Eu é que não sei fluir naturalmente, na continuidade do meu caudal. Por desconhecer onde posso desembocar. Não me sei na sintaxe do açude que sossega a água na obediência das regras. No desconhecimento da nascente sôfrega do rio. No desagradecimento das areias receosas do mar.

 

E é na incapacidade de entender o rio que os olhos espargem lágrimas de noites alarmadas pelo silêncio do mar. Na contaminação das águas doces e salgadas. No plácido e celeste rio que irriga a perplexidade do meu olhar.

 

 

 

25
Jun09

contar [no resto das sombras]

Paola

 
 
- Somos nós três. Na rota do Sol…
- Dois. Eu não conto…
- Eu vejo três. Um… dois… três!
- Não vês!! Mas crês?
- Sim! Um… dois… três…

- Conta outra vez. Apenas o que vês.

- Já o fiz. A conta está certa. Três!

- Amigos, a sombra não conta…
- Sou eu!      
- Não! Não! Descortês!
- Amigo, a sombra não amedronta…
- A do medo sim…
- Vocês?
- Da periferia do mundo.
- Da ausência da luz.

- Eu estou aqui. Dentro de mim. O exterior não conta!


 
 

 

20
Jun09

jardinar [na saudade do carinho dela]

Paola

 

Setúbal

 

 

 

O jardim da minha mãe sabe a abraços. Caules enlaçados pelos dedos floridos da sua perseverança. Cheira a terra regada com o zelo matutino que a arranca da cama. Bem cedo, não vá o calor chegar. Teimosa, a minha mãe! Jura a pés juntos que as flores, que rega pela calada do Sol, falam. Que conversam muito. Tanto. Às vezes, dissertam sobre a problemática dos jardins suspensos na saudade. Os brincos-de-princesa aprumam-se nas orelhas do carinho. E escutam a voz quente dos pés enfiados nas chinelas de transbordar afagos madrugadores. Antes do Sol. Garantem as sardinheiras, que abundam em latas desalojadas, no entusiasmo do vermelho. No viço da singeleza de serem. Indeferem a fidalguia que desconhecem. Erguem-se na beleza de florirem à janela.

 

O jardim da minha mãe sabe a beijos nocturnos. Esvaídos em cuidados orgulhosos. Verde. Da cor dos fetos que correm a passos largos pela beira do canal. Resplendoroso. Da cor da presença puxada pela manhã. Eternamente na ilusão do verde.

 

A minha mãe não tem um jardim. Se tivesse, saberia à cor com que ela se pintou até desbotar. Ela não chegou a saber que o feto morreu. À janela…

 

 

 

17
Jun09

Pairar [no negro espanto das andorinhas]

Paola

 

aguarela de jeroomady

 

 

 

 

Olho e vejo as andorinhas transtornadas. Vieram na ânsia da chegada. Largaram frios abafos e procuram abrigos quentes. O pão e um ninho de afectos.

 

Chegaram. Pelo bico largavam o espanto da sua voz deliciosa. As asas pranteavam o luto. O ardil das penas. E voavam insurreições cambaleadas. Círculos espavoridos.

 

As andorinhas vieram pela estrada do tempo. Pela calçada. E não  se conformam que lhes tenham devastado os ninhos.

 

15
Jun09

estranhar [na passagem das nuvens augadas]

Paola

da internet
 
 
 

Ele estava ali. Na verdade, estranhei. Calado e amargurado. Bravio na agressividade que amansava com os dedos irritados pela insatisfação. De vez em quando, espreitava por cima dos exasperados pardais enxovalhados nos beirais dos telhados.

 

Ali, estava ele. Estupidamente sombrio. As nuvens. Uma a uma, ele as contava. E descontava-lhes as figuras depravadas que mostravam. Descobria-lhes assíncronas vontades. Nos olhos, destapei-lhe as arritmias lascivas que teimavam em ripostar.

 

Naquela tarde, eu tinha que o deixar descarregar nas nuvens. Permitir que as atingisse na loucura que ousavam. Nas indecências que escreviam. Assim, num bilhete ardente de cinzentos imprudentes. Comprazer-se na indecência de as esmurrar. Pela leviandade dos baixos vícios. Pela grosseria das fagulhas que troavam gemidos espavoridos. Tinha! Mesmo que, na extemporânea trovoada da perversão, as nuvens ficassem.

 

Naquela tarde, não deixei! As nuvens não tinham culpa de carregar projécteis impacientes por outros ventos. De não saber cair inteiras. E ele sangrou. Para não se magoar. E chegou lá com os pés no chão. Então, reparou nos pedacinhos de azul que esperavam um poema favorável. E sorriu. Com gentileza.

 

 

12
Jun09

cantar [o sabor das asas no telhado]

Paola

 

fotografia de  Gabriel Gonzalez

 

 

 

 

Em cima do telhado, restolhavam trinados amarelos. A manhã trauteava réstias de Sol, com uns brincos de oiro pendurados nas orelhas. Os rubis refulgiam vermelhos incendiados. E ele esvoaçava de uma telha para a outra. Pulando como quem expulsa medos. Para, abundantemente, conservar a paixão. E cantava. O pássaro desafiava regozijos alegres. De uma telha para a outra. Sem ousar saltar para o outro lado da estrada. E olhava. De seguida, cantava. Ornatos musicais. Andamentos em sol maior.
 
Por baixo do telhado, um som. Música tónica e robusta. Martelo ritmado no aconchego das tábuas. Uma serra serrava. Ia e vinha, num vaivém semeado. E voltava ao princípio. Corrigindo imperfeições. Ouvia-se o gesto que martelava descontentamentos. Queixumes de satisafeitas canseiras. Da boca escorriam suores admirados. E as mãos amaciavam obras liquefeitas. Pressentia-se o ardor dos dedos que lavravam a madeira, na recusa da cola. Bebia-se o consolo de evitar os pregos. O carpinteiro sabia. E não queria rachaduras que fragilizassem a construção. Persistia. Na roda da água. Que bebia por baixo do telhado. No silêncio que brilhava quando o carrossel girava. E o pássaro gorjeava que o homem parara. Simplesmente contemplava.
 
Do outro lado da rua, um pássaro voava... Edificou um ninho no beiral inclinado da confiança e adormeceu a ler o poema. Então, cantou.
 
 
08
Jun09

Arder [entre o vermelho e o verde do fogo da pele]

Paola

 

fotografia de Jorge Soares
 
 
 
Das ervas desejaram o Sol. Na avidez do mais. Na renúncia do nada. Famintos, exultaram sedes insaciadas e beberam tragos de prazeres camponeses. E os corpos atreveram-se a querer. Cobertos de papoilas, na maleabilidade do vermelho. Ébrios, elevaram as taças do ópio e saudaram o infinito. Devolveram os beijos num ímpeto de raiva. Entregaram os corpos num enleio profundo. Tocaram-se com estremecimentos acetinados, bordados com mãos de alecrim. Perdidamente, no prado com cheiro profanado. No beco onde os poetas seduzem as palavras. Enfeitiçam os versos e o vento põe-se a bailar. A brisa corria na tranquilidade da utopia, num trilho de silêncios mordidos. Só as papoilas ousavam entoar maviosidades carminas. Eles consumiram-se e voaram. Na sinestesia das colinas que ladeavam o vale.
 
As asas atearam-se no vermelho quente do Sol. Tão quente! Quiseram, um dia, escalar o Céu. Experimentar voos proibidos. Quentes, mais quentes. Sempre no vermelho dos corpos esfomeados. Sangrentos. Mas as asas não suportaram a subida… e esmoreceram num chão de papoilas. Na desobediência a um sinal vermelho. Que disseram verde no delírio da transgressão. No prado… à beira da voragem da vida. Ali, onde as rugas que vincam as asas sorvem  os alucinantes licores das papoilas. Na demanda da cura.
 
06
Jun09

Amaldiçoar [as alturas que isto fez assim]

Paola

 

 fotografia de Jorge Soares
 (editada por mim...)
 
 
 
 
e a menina sentou-se ali. Na desventura que lhe encarquilhava o olhar. Que lhe chicoteava o sono. Mas estava na reverência do dever.
 
e a menina escreveu que o pior dia da sua vida [que vida tão pequenina] fora no dia em que começara a crescer. Só porque lhe acrescentaram o entender.
 

e a menina amaldiçoava o dia. Tanto! Que tanto lhe parecia tão pouco. E continuou a escrever. Uma história de assustar. Com ébrias figuras. Com assaltos ao dormir. Com cardos a germinar pelas assustadas paredes do quarto. De noite… até ser dia de começar a escrever… sobre uma abelha-flor que lhe aferroava o crescer.

 

... e a menina ainda não sabia dizer que uma rosa era uma flor. Que das alturas descia. Sem espinhos. Com pétalas da cor do sono. Dos sonhos. De menina...

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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