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ponto de admiração

ponto de admiração

28
Jul09

escrever [uma carta por entregar]

Paola

 

Lembrei-me, meu amor.
 
Do rio. Aquele que teimaste em mostrar-me por dentro... Desventraste-lhe os segredos para mim. Os dois partilhámos o rio com gargalhadas salpicadas pela água que sobrava das ondas que chegavam à rampa de cimento. E contávamo-las, desacertando as contas… Pulávamos os números. E à sétima amávamo-nos tanto! Com pedaços de olhar. Numa espécie de atalho no ancoradouro. Ao som de violinos que tocavam no céu. Num prelúdio sinfónico de leve vento. E pisámos a pele da terra numa dança de veludo.
Na outra margem, os pássaros regressavam. Exaustos de voar. Prolongavam-se nas folhas das árvores, plagiando os nossos corpos estendidos numa espécie de pena. Antes de adormecer, olhavam para nós. Chilreavam interrogações. Queriam saber se era amor. Nós gargalhámos no desaforo da pergunta. E respondíamos que sim. Eles aquietavam na tranquilidade de saber.
Tu explicavas a vida dos pássaros. A rotina que cumpriam. Quando partiam. Porque tornavam. Tantos nomes que tu sabias! As rolas, os pombos, as toutinegras e os tentilhões. De vez enquanto um pato. Igual àquele que vimos ao pôr-do-sol. No lado de lá de nós. Os patos voltavam. Cansados das longas viagens. E o céu cedia ao peso das suas asas. Escurecia. E eu assustei-me, lembras? Disseste que era sempre assim. Rodas aladas dos corpos espraiados no ar. Os olhos pretendiam o lugar. Logo que o descobriam, ousavam correrias a pique. E caíam nos troncos que eram seus. Centenas de bicos húmidos seguravam-se nos ninhos. E o céu voltava ainda mais azul.
O rio permanecia sossegado na discrição do gesto. Escassamente olhava. Por vezes, sacudia embaraços afogueados. E nós explicávamos que era a sétima onda…
À noitinha, tu reparaste na canção tardia que eles insistiam em entoar. Sobrou a promessa de um amanhecer amarelado de desejo… o sonho de um cheiro morno de rio… Suspirámos as cores que não enxergávamos. E tornámos. Ao ninho. Das nossas árvores.
Hoje, fico-me por aqui. Talvez não volte a escrever-te. Morreria no calor das tuas mãos… Não sei… Como não sei se ainda sabes a vida dos pássaros… Ou se sabes contar as ondas. Aquele pato que cantou para nós… eu ouvi um cisne… Reencontrei-me. Ali, do lado do rio. Cercada de espaço. E de folhas verdes… com um intenso aroma a alecrim…
 
Beijo-te nas pontas do vento que redemoinham nos teus olhos.
 
De mim.

 

 [imagem da internet]

 

26
Jul09

fechar [na gaiola da vida]

Paola

 

de Coucelo

 

 

A porta encerrou-se na intransigência da fechadura. Na simetria do recolhimento, a passagem imobilizou-se no pensar… no anseio de voar. De ser saída para passos de arestas arredondadas. Sem receio do frio que estava na rua…

 

Na ombreira deste sonhar, a porta depressa entendeu que os pardais não têm a chave do telhado… sendo pássaro na gaiola da casa

 

 

 

 

23
Jul09

rezar ilusões [tanto no céu como no mar]

Paola

 

No céu, as nuvens acontecem debruadas com orlas de azul… e recolhem, no ninho do seu afecto, sonhos atirados para o ar. No mar, as mulheres espalham rezas avivadas com marés de esperança … e serenam, no colo da sua fé, vendavais da sua pele molhada…

Em terra, eu adormeço na amálgama do mar e do céu … e choro por não lhes conseguir tocar… na perplexidade de tanto marear.

 

 

 

20
Jul09

saborear [na rampa do meu passado]

Paola

No lado de lá, há um vale que descansa no verde. Declives suaves abrem-se a trilhos de matos caminhantes. Do moinho atingido pelas mãos do esquecimento até aos campos de pão. Predominam manchas de arvoredo. Tão verde que o vento resguarda as tintas que se aprumam no temperamento da natureza. E só para disfarçar, Éolo entoa trauteios vistosos. Rebola-se nas flores. Empoleira-se nas pontas das árvores. Ri à gargalhada. Por vezes, é tanto! Uivos de lobos famintos. Berros de telhados apavorados. Brados de árvores agitadas. Apenas as flores dançam ondas de contentamento num ritmo exagerado. Os seus corpos modelam-se na técnica de enxotar o medo. E rodopiam. E também elas riem à gargalhada. No vale. As nuvens fogem. Apavoradas. As gaivotas grasnam o mar que perderam, ao mesmo tempo que as andorinhas trinfam negras incertezas sobre a primavera. Sem perceber a razão do vento ofegar assim, num acalorado dia de verão. De longe, chega a onomatopeia diluída dos cães. Os gatos arrepiam-se ao colo dos donos. Na esquina do outro lado.

 

Hoje, havia verde. Excessivamente muito. Frondoso. Fumegante. Uma leve brisa desenrugava uma ou outra folha ensonada. Espreguiçava as flores que se aplaudiam na encosta da colina. Até ao vale. Subi a rampa e perdi-me no contemplar. Enxotada pelo zumbido de uma abelha com asas de mel, tropecei nos sabores da minha infância. E voei para lá, montada nas tílias do tempo. Para comer amoras silvestres. Das silvas. No baldio da minha saudade. Passadas largas chegaram da flor ao fruto. Do verde ao vermelho. Negras. Tão negras! A cada dentada, a minha vontade desfazia-se na língua da minha memória. Esqueci o vale. Ignorei o vento. Comi sabores de antigamente. E lembrei-me de tudo. De mais.

 

As amoras, que hoje merendei, tinham um esmagado travo a doçura… na míngua do gosto da minha meninice. Nem me recordo se tinham paladar… mas lembro-me do sabor da ausência das mãos… do aroma espalhado pelas amoras das silvas… Sepultei, no chão fértil do vale, pedaços de folhas verdes que o vento afastou… na palidez da minha fome.

 

 

 

13
Jul09

beijar [como o mar beija a areia]

Paola

Fez-me o sol a vontade de me levar até aquele dia. Exactamente aquele em que me enlaçaste na fome da luz. Na cobiça do vento. Depois, lembras-te? Os teus olhos nublaram-se. Eu vi… Nuvens escarlate aqueceram-nos as bocas num beijo que brotou ali. Floresceu no sabor a frutos de delírio que estendias na areia. Recusaste a toalha… e estendeste os nossos corpos no areal, não foi?
 

O beijo ficou por lá... E foi um beijo tão sumarento que nos amámos sem fim. Ao fundo, num plano exaltado, a paixão desmoronou-se no mar. Deitou-se sobre a areia escaldante. Nua. Sua. E deixou-se levar. Enrolaram-se na boca faminta de um grande amor.

 

Hoje, meu amor, sentei-me naquele lugar… E foi lá que me pus a procurar. O mar estremeceu na areia e guardou os beijos que naquele dia fundeámos. Até os penhascos suaram nos resquícios do calor… E eu desejei ter ali um espelho… com medo do mar.

 

 

11
Jul09

ceifar [a vida daninha nas lavras do arroz]

Paola

de Isabel Alfarrobinha

 

 

Na monda do arroz, as mulheres vestiam chapéus de palha do tamanho do Sol. Por causa dele. As abas colossais do chapéu rejeitavam o Sol que alourava o arroz. A água regava os pés das mulheres. Que sorriam. Cantavam ondas de alegria. Ao vento.

Na monda, os chapéus abavam-se na ânsia de não querer o Sol. Que era do arroz. Que elas viam a crescer. Adivinhavam pérolas de alegria. Ali.

Nas abas do chapéu poisavam os pardais para espreitar os rostos corados às raparigas. Por vezes, roubavam-lhes um beijo. E elas queixavam-se das ervas daninhas. Sorriam. Os pardais voltavam... por causa dos bagos de Sol...

 

06
Jul09

tecer [amor ao ritmo do picar dos alfinetes]

Paola

 

da Internet
 
 

As mãos urdiam tramas de cavalos alados que galopavam pelo seu corpo de pálidos desenganos. E voavam na alucinação do poema. Os dedos da fazedora de laços coravam nos embaraços das linhas. No corpo delineado nas nuvens, ela compunha-lhe rosto. Num cartão perfurado por lágrimas de determinação, o desenho da renda sobressaltava-se nas ternuras da pele. Um minguado calafrio percorreu-lhe o olhar. O tilintar dos bilros assinalava o ritmo das mãos da fazedora de desacertos. Na volúpia do fogo, as suas faces purpúreas queimavam-se ao ritmo que a imaginação criadora progredia. O trabalho crescia nos pontos desenhados no vazio do tecido. Bruscamente, na desconsentimento da exposição do luxo, emperrou. Ela emaranhou os fios abolorecidos para o cavalo não saber. Despertou os alfinetes. Depois, rematou as pontas e fez-lhes um . Eis a obra. Acabara de tecer a fonte inspiradora dos poetas... na mentira rendilhada da insipidez água.

 

 

 

03
Jul09

esconder [na tona da vã calmaria]

Paola

Ericeira

O mar olha-me e sorri… e fala, fala… na repetição do seu cálido marulhar. Fundeio, no refúgio de sargaços escarlate, palavras à tona, frases que não flutuam. E ouço um grande ponto de incerteza no fundo da pontuação.

 

Em terra, os meus dedos são braços de polvo na faina das redes, enquanto no mar, está tudo tão sereno na película da superfície …

 

 

01
Jul09

insultar [na teimosa valentia de saber a verdade]

Paola

 

Ericeira, Paola

 

 

 

Num inusitado desacerto mundano, eles puseram-se a conversar. Um jurava que a Lua estava a brilhar. O outro, no mais benevolente insulto, logo detectou o erro. Garantiu que o Sol é que se notabilizava assim. Que uma coisa era o luar e outra a luz solar. Tão desiguais, como o dia era da noite. E que não percebia o equívoco. Ele ouviu a admoestação. Que não estavam a ver o mesmo. Aí estava o engano. Era a noite que ele via. Nem entendia os fundamentos para importunar a noite. Se o outro o dia sentia, problema o dele. Enrolaram-se pela parede esquinada para disfarçar o embaraço. Na esquina do dia, procuravam a resposta. E discutiam, discutiam. Tanto, que se reencontraram no outro lado da rua. À esquina. A enviesada conversa continuou na afabilidade do desacordo, desatando a discorrer qual seria. Qual seria. Não se entenderam, os rapazes, na tamanha desarmonia. Nenhum prescindiu da sua razão, esgotados os argumentos.

 

Ele desceu a ladeira, porque tinha a certeza que aquele era o seu caminho. E desceu. No umbral da porta, virou-se para baixo e viu o Sol. Chorou. Soube naquele instante que o seu fulgor intenso lesões graves.

 

Ele subiu a loutra adeira, porque estava certo que aquela casa era a sua. E subiu. Na ombreira da porta, olhou para o alto e viu a Lua. Sorriu. Sabia, agora, o que é um erro de perspectiva.

 

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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