… ao longo da estrada, os pinheiros despiam o dia. vacilavam no devaneio das agulhas, abrindo brechas à imaginação… e flautas de carumas, entoavam explosões coloridas... as palavras galgavam os trilhos indecisos de outrora… ali, onde a luz deixa tudo acontecer... as aves revelavam-se no descanso dos beijostranquilos … nas penas arrecadadas nos arrozais... e eu peregrinava à beira da emoção sedenta daqueles espaços e tempos… até onde os meus voos me agarraram… a concertina dançava cantigas de alegria e o rio gargalhava ondas de bonança… agora que tudo são dunas de areia fina, permanece a colorida rapsódia de interpretações harmoniosas… um coro de vozes rasga o silêncio… as sombras ficaram para trás… temperei-me com o sal do rio… num projecto de moderado equilíbrio poente...
Senhora… senhora… senhora… está bem? Nunca estive melhor, minha amiga. Respondeu coçando os olhos com a emoção que descansava serenamente. Na cama. O Sol entrava receoso pela janela. Que se escancarava para lá dos montes. Cautelosamente para não a aborrecer. No quarto generosamente amplo. De espaços livres e frescos. Viçosos como os sonhos que lhe revestiam os ombros. Voluptuosos. Boleados. Tenros. Como as folhas das árvores que porfiavam numa mansa agitação. A quietude erguia-se no brio da antiguidade. Jacinta exibia o requinte do seu olhar por todos os cantos do apartamento. O quarto era o que pensava mais seu. Dela. Inteiro. Explicava tudo na saga das gerações. Apenas acatava a formalidade. Saboreava. Queria. Mantinha a cama que já adormecera avó. A mãe. E ela que gemia num semi-coma de susto. O resto alimentava-se da luz que amolecia pacatamente no chão. E do vermelho correntio naquele corpo ainda a dormir o sobressalto. Duas janelas fartas com cortinados encolhidos. Por onde testemunhava aviões que se encaracolam em acrobacias arriscadas. Asas depenadas no arrojo do gesto. Fumos inversos. Três tapetes vermelhos. E muitas almofadas de alegria. Beatriz jogava silenciosamente às cartas. Paciências enroladas no monitor. Amizade emudecida nas derrotas desatentas. Paredes brancas. Escreviam-se em folhas de estuque pintado na plenitude da cor. Na nobreza da sua função. Sem perturbar… no emaranhado de palavras que contorciam silêncios pelas paredes. Apenas a porta se demorava na resignação da espera. Em movimentos entrelaçados. Com um enorme sorriso aberto. Na curiosidade de saber enrodilhado o lençol que se alongava na cama. Beatriz olhava. Ao mesmo tempo que se enovelava no silêncio de rendas e sonhos.
Ergueu-se numa gentileza sonolenta. Bela. Como se fosse manhã. E não era. Vamos. E foram. Jantaram na companhia da Lua. Na excentricidade do luar. Ao baile. Beatriz mordeu o entulho do espanto. Chegaram, já a música dava solavancos de ritmos esbatidos nos sorrisos bailarinos. Beatriz sorriu. E rumorejou que sim.
No baile, desapertou danças complexas. Só para espantar a audiência afilada nas cadeiras enegrecidas pelo bolor do tempo. Pela corrosão do presente. Pela incerteza do futuro. Por não saberem dançar ritmos de todos os tempos. Pela enorme incapacidade de discernir músicas dançáveis. Na sua cabeça, bailavam passos desencontrados porque pisados por pés intransigentes. Fragmentos das suas certezas rodopiavam perdidamente. Ao ritmo de melodias que escutava no carro. Com ele. E dançava. Dançava. No limite da vertigem. No auge da carnalidade. O seu corpo um piano moldado aos dedos do tocador. Numa escala de dó. Teclas soltas. Forçava os dedos. Deslumbrada no sol. Nos passos em construção. Assumidamente em si. Num gerador aleatório de abdicação. E o sol rodopiava raios com sabor a amor.E ela engolia. Bebia.
Depois cansou-se. Arrumou a meia-cauda do piano. Enfraqueceu a luz. Rebolou-se para o outro lado. Sem gemidos. Só adormeceu. Se o gato tocasse piano, falaria francês. Ballet, quem sabe. Teria uma língua apaixonada. Garras gastas à beira do rio. Beatriz durava no jogo de cartas… num descanso guardião.
... só oSapome faria tornar aqui neste descansado mês de Agosto... Obrigada, amigos, pelodestaque. Que escaldão de alegria! Partilho-ocom quem tem passado por este ponto...Um agradecimento especial para oJoão Palmela.
Ela subia a calçada ao ritmo do andamento das marés. Acompanhada pela ténue luz da lua. No corpo, levava a ondulação do vento. Maresias de palavras naufragadas. Com as mãos, abalroava dunas de doces ventanias. Nos cabelos, resplendecia a derrapagem das gaivotas. Pulava naufrágios e destroços. As pontas dos dedos pegavam pedacinhos de horizonte. Emigalhas de espuma recebidas à noitinha. Içou as velas. Entrou. E amainou o seu incerto navegar. Talvez um dia as perguntas, que ainda constrói, desapareçam.
Na ombreira das portas, as mulheres salivavam desinteresses desfeitos nas bocas deslavadas de inveja.
No postigo das portas, os homens lambiam-lhe o andar. Sempre que subia aquela calçada, ela calçava sapatos de licor de amora.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]