Meia noite de vento expressivo. Uma madrugada de chuvamiudinha. Eloquente. Memórias de um poema que se escrevia na ausência das suas mãos. Na paginação de um sono reescrito nas páginas ímpares. De uma noite assustada.
O Sol entrava aceso pela janela. Quieto. Seguro. Afastava os cortinados acetinados. Castanhos. Da cor do chocolate. Doce. Com o mesmo sabor a laranja que conhecia das mãos da avó. Entrava na cautela da perturbação. Generosamente. E pulou para um quarto amplo. Livre e com a frescura das laranjeiras que sabia de cor. Desde a infância. Havia aquela, ali, mesmo junto à figueira de figos amarelos. Debicados pelos pássaros que se atreviam a voar tão alto. O quarto suculento erguia-se no orgulho da antiguidade. Uma narrativa extensa. Uma saga de gerações com nome. Os outros desmoronaram no branco das paredes. Sumidos pelas frechas matreiras das portas que o fluxo dos dias aparelhava. Uma cama de ferro. As gavetas com incrustações de pau-preto numa cómoda, ao fundo. Puxadores de lágrimas. Os tapetes lambiam o chão que flutuava na berma da saudade. O candeeiro caía do tecto. Desfazia-se na dávida da iluminação. Branca e transparente. E ela espreguiçava tristezas amotinadas na teimosia. O sol ardia no desassossego da hora. Sem saber se era tarde ou cedo. Apenas tempo. E o cheiro a pão arredondava-se por ali. Conseguia lembrar-se do sabor da água-mel com que adornava fatias de prazer. A cafeteira estava na cozinha. Fervilhava os aromas da manhã. A rapariga rolava na cama as inquietudes da distância. E o Sol amarelo galopava por ali. Assim. E ela via. Longe. Tão longe de si. Um frio esquivo mirrava-lhe os dedos. Não esboçava um gesto. Apenas se perdia na horizontalidade do tempo. Um cadeirão reclinava-se na leitura de um livro… de poemas. Lido do princípio até ao fim. Na fé que as palavras abafassem as intempéries.
Lá fora, no beco dos postigos amarelos, as velhas desfechavam as portas. Diziam bom-dia. E os narcisos amarelos floresciam até ser tarde. Depois, atiravam os desgostos para a mansidão das pedras. Desenhavam, no empedrado da subida, a aflição agnóstica de serem gente.
No amaraledado de uma tarde banal. Azeda e fria, apesar do Sol que teima em caber nos quintais. Agradecem as árvores. Num ritual de nudez acalorado. Benzem-se as velhas em cruzes ziguezagueadas de dedos calejados. Raivas apodrecidas na lavoura da miséria. Praguejam exasperos ao Sol que demorou. Mesmo que em rodilhas esfarrapadas pelo beco dos postigos amarelos. Evidentes. Para que o rio lhes inunde o tempo. E as ondas arrombem os gritos aflitos que o tempo amansou. Porque escasseia numa míngua de acenos doentios. São cinco horas nas badaladas estúpidas da parede. As palavras emaranham-se nos objectos de outras histórias. E fogem pelas portas semi-abertas com postigos amarelos.
Um livro jaz na prateleira. Ao fundo do corredor. À direita. Escreve-se em folhas descoradas. Abandonadas na interrupção da leitura. Há muito que ela deixara a casa da avó. Esqueceu-se. Os poemas escorregavam pela badana da contracapa. Do fim para o princípio. Analfabeta de letras. Tanto lhe fazia. Mas gostava do cheiro do livro. Do pó que pingava e que se enliçava nas mãos. Fingia que lia. E sentia-a ali tão perto. Carícias. Mais um beijo. Tantos. E chorava a ilusão no papel. E o rio aquietava-se num silêncio profundo. Num minuto de sossego conivente. Apenas um barco passava. Porque os barcos passam. E numa derrapagem de versos sentou-se à mesa e leu o livro. Todo. Do princípio para o fim. Sem uma lágrima. O rio retomou a corrida para lá. O postigo encostou-se. E dorme tranquilamente. Numa cama de ferro. Com maçanetas que limpa aos sábados com celarina. Ou celerina. Apenas ouvia a palavra enrolada aos jornais. Ao domingo brilham mais. Os lençóis são brancos. Com pontas de arquitectura rendilhada.
Meia noite de vento expressivo. Uma madrugada de chuva miudinha. Eloquente. Memórias de um poema que se escreve na ausência das tuas mãos.
O roxo alastra-se pela alegria do vinho. Num copo descansado no alabastro do desconforto. O jornal cai pelo chão, enrugado pelo fortuito das notícias vazias. Nuas e rugosas. O vinho revela-se equilibrado. Tinto ou branco. Não te importa a cor. São os teus olhos que perco na contemplação do tempo que escorrega pela ladeira de sardinheiras vermelhas. A rolha salta. Uma atrás da outra. O copo rompe-se boquiaberto com os exageros dos postigos. As velhas benzem-se e falam rezas junto aos retratos pendurados nas sombras que pingam pelas paredes brancas da privação. Comem a solidão com bocados de comprimidos sem reputação. A cor geme a ausência da luz. E as memórias de silhuetas incertas definem-se no luto dos vinhos.
E tu seguras com o olhar as descalçadas paredes do quarto. Sentes a ausência das lágrimas que te imunizam o rosto e acreditas que os gemidos moribundos da tua pele saram num copo de uvas tintas. Ou brancas. Não te interessa a cor. Preto. Às vezes, começas a pensar. Hoje, pensaste pouco. Não tiveste tempo para meditar. Agonizas na embriaguez que seguras à mesa. Sozinha. Ergues o copo e garantes que, sempre que podes, usas o tempo como queres. Mesmo que na lucidez da violácea linguagem vislumbres a bebedeira do relógio. Que se bamboleia na parede em frente. Por cima de ti.
António Antunes Arquimedes Almeida.Abatido ardina alabardense. Amava avenidas, artérias, artes, artistas e artesãos. Ainda amplas amabilidades. Almocreves, asneiras e atractivos antibióticos. Acompanhava-o a almoçadeira amarela. Audaz apaixonado por automóveis. Arranjava-os e agachava-os no armário. Abreviaturas dos anseios da adolescência. Acompanhava os aborrecimentos dos artelhos. Andava.
Apressadamente, abandonou o apartamento. Arrancou alvoraçado. Antes, apontou para o analfabeto do Américo. Acusações amedrontadas. Asfixiadas. Arritmias alvoroçadas. Ambulância. O ardina acabou no asfalto. No atalho para o acabamento. Apagou-se o ardina que apregoava pelas artérias de Alabarda.
António Antunes Arquimedes Almeida apartou-se assim. O matutino foi acusado de alheamento. Animais. Achacosos. Agastados. Assanhados. Agressivos. Arreliados. Acanhados. Agasalhados. Abafados. Apertados. O ardina abrandou… apertado pelos automóveis! Ao menos um agradecimento… Há alturas assim!
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]