Lá em baixo, o rio corre na frustração de um cuidado. Um afecto pilhado nas margens desbainhadas. Mutilado. Desapertado num gesto que exige quatro braços. De tantos que ele tem. Não tem. Todos correm na esquina do vulto. Envolto nas luzes mortiças da cidade, o rio acontece. Num passo lento. No silêncio da noite que começa a ficar. Tão quieto na ira insurreição das águas. Tão longe daqui. Vai na inclinação de mim. Rente às claridades macilentas do lugar.
Há peixes no rio. Eu sei-os de cor sem lhes saber o nome. São peixes. Os pescadores estão a dormir. Porventura. Cansados de fainas inglórias. E que querias que houvesse no rio? A água está parada. Há sombras empoladas na minha pele. É tão tarde, já. E eu não sei o nome dos peixes. Nem dos pescadores. Uma ponte. Mais longe ainda. Brilha mais que o rio. No profissionalismo da sua competência, abraça as margens. Adama-se num beijo aguado. Os carros vão apressados. Não contemplam o rio. Esquecem as margens na fome da chegada. Apenas vão. E vêm. Na partilha de camadas de carregos.
Lá em baixo, está o rio. Uma ponte mais longe ainda. E há peixes que pastam restos do dia. Que se esgota no fogo que queima o horizonte. Eu olho a ponte no prolongamento do rio. Num abraço profundo entre o céu e a terra.
Quando me ponho contemplar, vejo para além do rio... Os ecos que ele me entrega, sustentam a sede que alaga as margens que vejo daqui. Sempre que olho o rio, intervém uma distância chorada. Por isso, arrumo o horizonte no meu colo.
Permite que me afogue no silêncio das vozes que escuto. De cores desbotadamente esgotadas nos passeios que dou ao domingo. O nevoeiro escondia o rio. Numa amálgama de beijos cobertos de desejo. Desejado, aquele momento. Os barcos sossegavam no rio. Na irritação das súbitas trevas. Escondiam-se os caminhos. Eu ainda não te amava. No amor doido que o rio acarinhou, quando à tardinha nos tocávamos nas dunas. E a areia fugia debaixo dos nossos corpos. E troçávamos. Dos rostos ajuizados estendidos em toalhas turcas. De padrões excessivos. Com brilhos duvidosos. E a Inês perguntava a razão. Porque nos mutilávamos num amor tão profundo. As nossas gargalhadas espalhavam a perenidade dos gestos. As ondas tranquilas do rio riam connosco. E rebolavam na areia.
O nevoeiro aferrolhava a outra margem. Pelas ruas, ouviam-se bafos de frio. O cinzento alastrava. Ouviam-se lamentos gelados. A manhã acordara assim. Apenas as árvores choravam a míngua do Sol. Tinha os pés de menina apavorados com o frio. Vamos. E eu ia. Havia que cumprir hábitos prescritos na lei dos pais. Não! Esgotei-me na negação que podia. Não! As lágrimas chegariam depois. Só em caso de necessidade. Ele cedia sempre. Saí da sapataria com uns sapatos novos. Tão frios como os que me trouxeram até ali. Castanhos. De verniz.
Na margem do rio, um barco. Barca, corrigiam. Azul. Levou-me para lá. Galgou chuvas e ventos. Trovões que se atravessaram no caminho. Entre o céu e o rio. O motor roncava forças que lhe pareciam falhar. Os homens vociferavam palavras negras. Não os entendia. Olhava os sapatos de oiro escuro. E orgulhava-me com a fivela que os ornava. O rio estendia-se num desatino cinzento-escuro. O céu desacertava-se na cor. Somente o barco singrava na senda do azul.
Ontem, meu amor, quando tornámos os dois, o azul era também do rio. E do céu. E, ainda hoje, me lembro do verde dos teus olhos. Sempre que me agasalho na abundância daquelas águas.
A noite chega morna. Olhos negros atrapalhados. Cabelos soltos. Adornos de prata na negrura com que se ilumina. Os braços carregam os festejos do dia. Não há sinais de cansaço. Cumpre-se no rosto do rasto do tempo.
Pela parede branca. Suja. Tão rota de riquezas. Escorregam réstias de luz. Pobreza aborrecida na divergência do chão. Uma janela. Opaca. A luz! Sento-me a olhar. Descanso o corpo. Canso a ilusão de saber. E quero. Duvido. Sim. Não me entendo. Nunca mais. A luz escorre pela parede. E a janela não mostra. Fico na desimportância do que não vejo. A noite corre. Uma mesa. Uma sopa quente fumega tranquilamente. Pão, talvez queijo. Um copo dança na arritmia dos corpos. Aquece a luz. Faz frio. O vento. Não, não vai chover. Há noites em que não chove. Gargalhadas impostoras. Estão cansados. Despidos. Afectos que cumprem rituais. Horas. E o tempo agarra a noite. Jura-lhe que o dia será a seguir. Assim. Na sismicidade do hábito. Um cigarro. Ainda não. Os corpos esgrimem cansaços. O dia foi grande. Calor. Este calor serôdio. Encardido. Enfeitado.
A luz permanece na parede. Pobre. De vez em quando, esgares amarelados. Claridade vazia. A janela espreita pela impenetrabilidade de vidro. Tudo acontece. Não sei. A luz agonia no branco-sujo das paredes. Lá dentro, a luz apagou-se repentinamente. Está frio cá fora. Enorme é o medronhal cujo aroma já esqueci. Onde os piscos não podem voar. Grande é a noite em que penso que não penso… encadeada na opacidade da luz.
Ela segurava o mundo numa mão. Afagava-o com a outra. Com as duas, desordenava os sentimentos. Então, pôs-se a pensar. E não percebeu nada. Enleou-se no corpo amputado de um amor verde. Intenso na lealdade do rio. As palavras escorriam pelas paredes cansadas do dia. Era tarde. Tão tarde, naquela tarde em que o pôr-do-sol foi o discernimento. O limite de um alvoroço adocicado. A foz. O grito do rio que se arromba no mar. Agudo. Doído na inevitabilidade do seu correr.
Hoje, a tarde ainda é mais tarde. Ao fundo, não discerne os vultos que lhe vestem a memória. E o seu corpo estremece de paixão. Envolve-se nela. Ousa querer saciar a sede com que acordara. O vento trouxera-lhe a sinfonia dos pardais. E ela ardeu no impulso do voo.
Hoje, no instante em que os seus olhos se tocaram, ela ouviu os pássaros. Que chilreavam no telhado. E teve a certeza que há rios que não desaguam no mar. Porque correm ao contrário. No silêncio do Sol.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]