Agora, para não confundir o dia com a noite, chega olhar. É tão evidente! Erguem-se os olhos famintos de carinhos. Se o azul sobressair, é dia. Se preto, é de noite. Cinzento, não sei. Fico-me na indefinição do tempo. Apago-me na beleza do momento. Contemplo. Se uma bola de fogo arder no horizonte, encolhe-se o olhar. Tolda-se a visão. Engrandece a incerteza. Mas se tantos pontos luminosos se atearem no alto, a crença da noite cresce. Às vezes, não sei. Não posso saber quantas estrelas há no céu. Pesa-me a cabeça. Dói-me o instante. Não os vejo. Na rua, as janelas omitem o brilho que outrora arremessavam para a calçada. As portas fecham-se no cansaço. E as cortinas encobrem a nudez dos corpos. Não há luz. Não vejo as horas.
Na pressa que se alonga na calçada, oiço gritos. São sustos. Peles arrepiadas que olham o cinzento do dia. De vez em quando, um afago. São alegrias. Meninos que descobrem o azul, naquela tarde imperfeita. Há dias, em que o Sol é tão infantil! Caminho num passo pensativo. Distante. Outro grito. Não ouvi. Um automóvel afadiga-se em gestos dados. Uma gargalhada canta. Na alegria de um abraço. No aconchego do colo.
No outro lado da rua, um pinheiro manso. Agasalha o corpo redondo no bico pardais. Chilreios de tempos frios. Saudosos do Sol que não há. E no cantarolar das aves, perdi-me no trinado de uns olhos esverdeados. E adiei uma lágrima que se calou no silêncio da mágoa que me escorria pelo rosto. Sem me dar conta que pardais não dizem assim.
A menina saiu da escola nuns sapatos abotoados na pressa. Alta na desenvoltura dos seus verdes anos, arrastava um sorriso da cor dos cabelos. Que o vento puxava. Com carinho não fosse a menina sentir. Bonita. Com a beleza que a idade lhe dava.
Corria determinada. Passadas doces estrondeavam tédios e algazarras que não cabiam na mochila espessa de pesos acarretados todos os dias pela manhã. Mas moída. Ouviam-se as dúvidas ofegantes que lhe corriam pelo rosto corado. Tanta pergunta para tão pouca resposta! E a menina encostava-se, enfadada, à parede. E os seus pés escorriam até à rua. Depois, ausentavam-se pelo discurso do portão. Sonhou com ele. Sem que lhe descobrissem o desvario. Um beijo num abraço minguado. E riu-se da inveja das outras. Sentiu-lhe os dedos que percorriam o seu cabelo da cor do trigo que germina nos campos da mocidade. Lá em baixo, à esquerda. E lembrou-se do passeio à beira do nada. Que lhe pareceu tanto. E sem que ninguém visse pendurou-se no pescoço dele. Pediu-lhe que a tirasse dali. Que a parede estava fria.
Já na rua, correu na direcção de um carro que a esperava. Com a saudade nos braços que se lhe estendiam. Descaradamente. Ridículo, apostrofava. Um abraço, dá-me um abraço. Aqui não!!!! Na escola? Ridículo! A mãe recolheu os braços. Como um mastro que se acanha à passagem do vento.
Subitamente, senti frio. Naquele lugar público bafejado pelo sol de início da tarde. Olhei para dentro de mim. Faltavam-me os braços que em tempos se entretinham com os meus. E me abrigavam do frio. Naquele lugar, o meu rosto foi um gesto. Atónito à procura de tudo. Um riacho de luz. O tecido dos afectos. Ela. E as mãos que se interromperam no momento do afago. Perfeitas no tecer.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]