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ponto de admiração

ponto de admiração

31
Dez09

Prescindir [E o rio era azul. Com juncos de Sol]

Paola

 

Jorge Soares

 

 

 

Vitória saiu cedo. Agastada com os sapatos que lhe arreliavam os pés e com o nome. Que a exasperava tanto. Senhora de notável porte. A pele exibia o esmero, embora as mãos denunciassem a idade que lhe dava uma tranquilidade construída. Nunca percebera a teimosia da mãe. Nem o conluio do pai lhe fora decifrado. Havia coisas que eram assim. Tal como a família. Eram. Tinham. Isso bastava-lhes. O seu corpo não cabia naquela saga familiar. Há muito que perdera a juventude. Gabava-se de não precisar dela. Agora corria com maior cuidado. Na convicção das passadas. Como o rio. Como a ponte. E o céu. Ela olhava. De longe não se distinguiam. Ao perto ignoravam-se. Apesar do abraço tão profundo. Não havia céu… Ela sorria. Estendia-se numa plácida horizontalidade cinzenta. Vitória, que queria ser Vita, perdia-se num olhar inquieto. Só que não via. Espreitava no silêncio arrecadado do dia. Chovia. Vitória via. O despropósito das formas. A extraordinária história do jogo de futebol. O desconforto das vozes. Contorcia-se no prazer da concertina. E dançava, dançava. O rio atapetava-se no delírio do cinzento. As gaivotas serpenteavam berros indefinidos.

 

A cómoda encostada à parede da casa de entrada. O prato na parede. Daqueles que persistem em durar nos remendos grampados para homenagear a família. Na respeitável promiscuidade do tempo. Na travessa, as laranjas exaltavam-se no sumo do pomar. Vitória penetrou no estuário do cinzento. Virou a página. Um suspiro desfez-se na mansidão do azul. E o rio era tão azul. Com juncos de sol. Vitória preparou-se a preceito. O vestidinho cor-de-rosa com mangas de balão. Desbotado. Esquecido. Dividiu as partes. Estruturou os capítulos. E assumiu-se como personagem principal. Expulsou os figurantes. Os adereços e rasgou o tempo. Não prescindiu do espaço. Uma cozinha arejada. Uma mesa necessariamente grande. Três alguidares de barro cobriam-se com o branco com que teceram os panos. A massa repousava e crescia. As vozes também fermentavam alegrias e beijos que se movimentavam na circularidade do gesto. Do entusiasmo que esmurrava a massa. Da ternura que se alongava na mesa. No delicado recorte da carretilha de madeira.

 

O nevoeiro resfriava a manhã. A chuva molhava-se no chão. Em cada pinga, Vitória ouvia uma cantiga. E o sabor agarrava-se ao seu coração. Vita olhou serenamente para o rio. Seguiu pela ponte. E foi até lá. No desleixo do cinzento. Conhecia o caminho pelo cheiro. Mas não precindiu de voar.

 

 

 

27
Dez09

Ter [na ausência das marés]

Paola

Jorge Soares
 
 
 
 

Tenho frio. Tendo um copo de vinho que se esvazia na gula dos dedos boquiabertos. Tenho sede. Embriago-me na tristeza liquefeita da vinha. Na ira da raiz. Esfrego as mãos nas parras que se despedaçam na terra. Tenho o enjoo encostado a mim. Que me atravessa em pontos determinados. No alvoroço das marés. Remo no silêncio sossegado da baixa-mar. No instante em que o horizonte é lugar no longe. No nada. Na efeméride calada. Tenho olhos de vidro. Escaqueirados no areal. Lá, onde os copos não existem e os vinhos não transportam alegrias de entoar.

 

Vai-te, flutuante casa da memória. A minha ferida segue à bolina na doce espuma do desgosto. Enfeitada com vozes afónicas. Tenho a noite. Que é mais segura sem ti. De dia, sobram-me roncos dos barcos vazios. Esburacados. Rombos nas mãos que ainda tenho. Na sede da água que se foi com a maré… Outra vez a casa. A casa deles não vem com o mar. Tenho a memória dos pardais que trinavam no telhado. A ver aqueles barcos que já não podem naufragar.

 

Sou barca atracada na quietude do desabrigo. Tenho uma mansa planície de papoilas azuis no sangue. Ardo na língua do Sol. E o barco segue, como se a foz o não tivesse afogado. Como se as amarras detivessem o vendaval. O homem do barco a remos desligou o motor. E as barcas persistem no seu carregar. Não tenho. Mas as gaivotas caçam o equívoco da abundância…


 

04
Dez09

Desfolhar [do verde ao amarelo. irreversível]

Paola

Jorge Soares

 
 

Sou folha. Sou livro. Agitação na desordem da flor. Sou enigma debulhado na ignorância do rodapé. Nem reparaste que o capítulo se exprimia na cabeça da folha. Abundantemente. Numa narrativa fechada.

 

Sou folha dourada. Sou gente. Desmaiada na verticalidade da árvore. Inebriaste-te no carmesim das pétalas. Bebeste a seiva liquefeita. Na totalidade da flor.

 

Sou folha. Sou rasto. Nos cardos campesinos. No orvalho que os descansa. Ali. Na fragilidade dos acúleos.

 

Sou folha. Sou eu. Na verde vertigem amarelada dos nossos corpos. Sou vento. Sou cabelo despenteado na impiedade da memória. No derramamento da luz.

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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