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ponto de admiração

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07
Fev10

Entardecer [era tarde, mesmo que faltasse pouco para a hora]

Paola

João Palmela

 

 

Naquele fim de tade, fomos. Pouco faltava para a noite, mas teimámos. Tu. Não tenho a certeza. Os campos aconteciam à nossa frente. Perguntei-te se os cavalos também caminhavam assim. Calaste-te num silêncio que chocou com a nudez do sobreiro. As solhas caíram. No chão, num sopro de exaustão, para ver o amor. Não, tu não sabias o que era o amor. Não distinguias as folhas todas na sombra das árvores. Nem os frutos que espreitavam para o alto. Criticavas-lhes o gesto. Desnudaste as nuvens molhadas de pranto cinzento ao mesmo tempo que lambias os dedos maltratados pelos afectos. Não, não sabias. E como podias saber se não concebias o avesso da pele. Se da teia tricotada com aroma de alecrim dizias não perceber o fazer. Estranhavas a ceifa das mãos que se erguiam no ar. Num movimento turvo e desgrenhado. Circular. No desvario da franqueza da aranha. Não sabias tecer, apesar do aperfeiçoamento da vontade. Acusavas os sonhos da abundância das searas que ondulavam distraidamente lá em baixo. Não vias as estrelas ou se as vias comia-las na pressa da loucura, sem que notasses o seu contínuo ressurgimento. Não, não sabias o que era o amor. No instante em que sequiosa a minha língua morria, tu embrulhavas-te num silêncio assustado. Descuravas a casta da minha voz e andavas sobre a água que inventavas à beira do carreiro que se consumia até ao cume da secura. Falavas um discurso indirecto convencido que era teu. Na intromissão dos pontos, tolheste os passos no descanso de uma boa conversa. Abriste o sorriso e não escutaste o murmurar do riacho que se desfazia no polimento das pedras. Não, não sabias que a chuva se derrubava no chão na digna verticalidade da circunstância. Pelos meus olhos escorriam ventos sossegados, enquando te dizia que o medo era um vendaval previsto na míngua do sol. E que a chuva fluía espaçada na transparência do meu olhar. Num entardecer coberto de cinzento-violento. Não, não sabias o que era o amor. Essa mania maluca de te agasalhares nos braços irrequietos da respiração que aparecia do lado para onde querias navegar, assustava-me. Não, não sabias o que era o amor. Esqueceste o poema que lemos na véspera. Na velha biblioteca, no momento em que te sentaste na irritação do pó. Abalaste nos cortinados toscos que fechavam as janelas. Nem reparaste no nevoeiro que cerrava o dia. Ignoraste a música que se acalmava nas páginas que se torciam. Na incapacidade de distinguir a afinação do rouxinol no rancho de vozes. Eu deambulava translúcida e roía as palavras. Rodopiava e arremessava os sonhos. E lia. E o poema pingava pela minha pele. Calidamente. Então, invocaste os ventos. Chamaste a sorte. Praguejaste com as carícias que vias morrer pela raiz. Tudo para que as minhas frases se sufocassem no silêncio do espanto. Não, não sabes o que é o amor. E que o poema escutava o vento numa brincadeira feliz. Não, não sabias. Corrias para o lado de lá das marés. Não esperavas por elas, nem admitias o que elas explicavam à lua. Apenas negavas o luar. Vacilavas com a luz que demorava à tona das águas. Não, não sabias o que era o amor. Renegaste as escadas e subiste no elevador que te aliviava o cansaço, mas que te impedia de saborear os degraus. Dali até à porta, apalpavas passos defuntos pelo percurso que não aprendeste. Deverias ter experimentado caminhar. E olhar. Até falar. Agora, observas o relógio sem saber se as horas batem certo com o tempo que tens. Naquela tarde, era tarde, mesmo que faltasse pouco para a hora. Houve um incêndio agreste. E tu nunca me disseste se já sabes o que é o amor.

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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