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ponto de admiração

ponto de admiração

25
Abr10

Temporalizar [edição limitada de naturezas vivas]

Paola

 

 

Gosto tanto de ver os meses espalhados no chão! Do sabor a terra. De ter os olhos encharcados de luz. De noite e muito luar. Mas do que eu gosto mais é de os contar. E conto-os um a um, não me vá o Sol escapar. Uma vez e outra. E torno a contar. Às vezes engano-me. São gralhas acidentais. Escorregadelas dos dedos que resistem ao rigor do Inverno. Tropeço no pranto dos dias marcados. E delicio-me com um suculento pedaço de tempo. Depois, guardo numa caixinha acelerada a primeira vez que vi o Sol nascer. E a chuva que se consome no alimento das flores. E a água que corre pelo calor dos nossos corpos. Há uma paisagem estendida no prazo das nossas mãos acocoradas na escrita de um poema. Uma seara de gestos da qual resta o cavalo que galopa pela liberdade de querer chegar. E temos os nossos olhos que se desorientam com as palavras que calamos. Como um sopro de melancolia resignada. E reconto aqueles dias que foram tão pouco. Quase tudo, mas tão pouco. Mastigo as horas do adormecer das laranjas que se aquietam no laranjal, enquanto as nossas línguas se perdem no sabor do alecrim e as laranjeiras se despedem dos vultos sombrios e se queixam da censura das paredes. Há o ardor de Agosto, quando nossa sede se quebra no rubro cetim da melancia. Anoto as horas. Rasgo os dias em que uma afogueda talhada escorre pelos nossos rostos numa plangente canção de despedida. Se ao menos os frutos estivessem maduros. Se ao menos as cascas não escondessem as cicatrizes que se sustentam de Janeiro a Janeiro. Até ser dia outra vez.

 

Gosto tanto de contar o tempo! Do perfume das flores que Abril tem. Mas há Janeiro preso a uma fotografia abatida pelo coração. E Março afogado mum rio que fora tão azul. Só que a seguir vem Setembro com a barriga prenhe de gargalhadas celestiais. E Fevereiro consola-se no brilho das ternas e eloquentes azeitonas. Gosto tanto que chova agora. E que a água seja estrelas, terra e Sol. E vinho, cepas e cabaz. Para que eu, quando olho este tempo fértil de saudade, possa regressar sôfrega ao abrigo. Onde as tuas mãos param numa oração amplificada de fé.

 

Gosto tanto de narrar esta série continuada e eterna de instantes! Contudo, hoje, venho sentar-me a teu lado. Rejeitar gestos supérfluos, para me aconhegar na distância dos nossos corpos. Enquanto o vento sobrevém neste sereno e veludíneo dia e a data se veste de nós. Para lá do resto, tenho um Abril que se cumpriu. No grito líquido e nutritivo da papoila.

17
Abr10

Ser [na fartura do tempo, na míngua do Sol]

Paola

 

Chove tanto! A água desliza num doce e sussurante caminhar pela ladeira. Não sei, se vem de cima ou de baixo. Como não sei, se a ladeira sobe ou desce. E é nesta inquietante perturbação que me desoriento no tempo. Há em mim, o desconcerto do empedrado. Conheço as pedras. Sei o chão. Apenas o relógio não estranha a abominável monotonia dos ponteiros. Que se repetem nos passos simétricos e frios da calçada. E andam. Andam na ignorância que o tempo é uma medida arbitrária da duração das coisas. E penso que ele é feliz assim. Pelo chão, esvaiem-se prantos quebrados. São regatos desidratados pelo longo período de seca. Estalam frechas de saudade. Chove tanto!

 

Corri pela ladeira com a mesma inclinação das cansadas pedras da calçada. Percebi urros. Escutei raivas. São dores apertadas à fragilidade das formas. Contei as pedras. Sobram arrombos. Há tropeços nos buracos escancarados. Contei o tempo. Voltei para trás. O meu tempo é agora mais curto. Lá ao fundo, demora-se um passado de cores intensas. Foi um prazer. Tem um medronhal e um charco. As rãs coaxam na alegria da chuva. E eu canso-me da pressa dos autocarros. E dos passageiros que atropelam o tempo. E a estrada que sobe pela calçada. Penso que são felizes assim. Na conveniência da gula. São corpos narcísicos que ignoram os campos de margaridas. Às floritas amarelas. E brancas. Arrojada, a papoila que se intromete entre o nada e o tudo. É sangue, é vida que se alastra pelo ópio do futuro. Ali, no meio das margaridas amarelas. Um rio de azul gargalha num leito generoso. De mão dada, um abraço aconhegado dos frutos que espreitavam o Sol. Penso que são felizes assim.

 

E eu vergo-me ao passado que me anche o coração. Tão sublime. Cheira a terra e a laranja. E tem um raminho de rosmaninho nos cabelos. Nos olhos saltitam piscos e melros. E há gaivotas e cegonhas nos arrozais. E tem vozes e rostos. E barcos. Assentos suspensos na pele das águas para eu me baloiçar. E uma concertina que se estripa na exultação dos dedos. Sabe a marés salgadas e a benignos areais. O meu passado, que é tanto, tem. Penso que sou feliz assim. Se não o tivesse, não teria alma. Nem coração. Nem estremeceria de emoção à luz e ao calor do Sol. Nem subiria a ladeira, na impossibilidade de saber as pedras. O futuro está no outro lado. Como quem desce, à direita. Depois à esquerda. No centro de tudo. De mim. Num campo de margaridas amarelas. Creio que sou feliz assim. Mesmo que o meu futuro já não tenha as minhas raízes. Que lhe falte chão. E que os meus pés se dobrem num plangente caminhar.

Desço a ladeira que dá para o campo de margaridas amarelas. Na agnosia das pedras. No redemoinho da vida. De sol a sol. E rio-me. E choro. E estremeço sempre que me reinvento ao pôr-do-sol. Ali, onde escalo e engulo a ladeira na inexistência de corrimão. Sempre que em Abril for Primavera.


04
Abr10

Acontecer (no campo de margaridas amarelas)

Paola

 

 

Voltei. Corri com os pés ensanguentados pela saudade. Doíam-me os dedos. Que se desviavam na ansiedade de chegar primeiro. Ali, na euforia do Sol. O campo de margaridas amarelas. Sobreviventes na audácia de quebrar o alcatrão. Pelos meus olhos, demorou-se uma música que brotava da terra. Assim, em risonhas e quentes leiras que disputavam o Sol. Há locais que se alongam para além de nós. No recanto da minha pele, ouvi a o silêncio. E quis ser folha, pétala. Horto. Tanto que cobicei a raiz! E haste erguida na cruz dos montes. Água e pólen. E ser vento para de mansinho beijar o teu corpo. Mas um pranto chegou na aridez do caminho. Deter as tuas mãos nas minhas. Dizer-te que sim. Que não. E correr pelo teu colo como se fosse um campo de margaridas amarelas. Saciar a sede nos sorrisos disfarçados. Delirar a cada doce palavra com sabor a canela. Ouvir o grito, saber a voz.

 

Vesti o vestidinho de chita. Com florinhas amarelas e um lacinho na ponta. No olhar, coloquei o orgulho sorridente dos teus lábios. Na minha cabeça, senti a quente doçura dos teus dedos. Na pele, arrepios de vaidade. E escutei a música que vinha de ti. Fui na maré que corria na brutalidade da seca. E vi os candeeiros despojados do nada. Sem projectos para estrear. Capricho de quem tem luz o tempo inteiro. É domingo de Páscoa, mãe. Não inaugurei nenhum vestido novo. Deixei de gostar. Não fiz nada. Nem estreei os sapatos de verniz. Porque, no campo de margaridas amarelas, vi sombras magoadas nas terras enlameadas. E as lágrimas jaziam derrotadas até à raiz.

 

Voltei. Pelo trilho do Sol. Na teimosia do desalento. No vazio das palavras. Na míngua dos pacotes de amargo chocolate. Enquanto, o cardo elevava os olhos para o céu. E o vestidinho de chita se despia das floritas amarelas.


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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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