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ponto de admiração

ponto de admiração

26
Mai10

Parecer [quando as silvas sabem ao amargo dos juncos]

Paola

 

Ao longe parecias-me tu. E de tanto olhar, vi-te no aparato da saudade. Pelos teus olhos,   escorria um rio azul na alucinação do mar. A crença obstinada trauteava incertas melodias ao som do verde do alento. O aroma rugoso dos juncos chegava no sopro do vento. A agilidade dos teus dedos acalorava-se nos remos abalroados pelo Sol. No lodo das marés. Num esforço calado a subir a ladeira.

 

Ao longe, parecias-me tu. Mas era tão perto. Agora. Gostava do silêncio com que me falavas à tardinha. Há um sabor gelado nos juncos que estão na margem. Não te tenho. Tenho. Pouco. Nada. Tudo. E eu trocava cada pétala por um olhar. Por uma palavra que me obrigasse a assentar os pés no chão.

 

Ao longe, parecias-me tu. É impressionante a frequência com que erro. Pasmo-me com os corpos apáticos à verticalidade do andar. Erro porque os meus olhos vagueiam na desorientação do caminho, perdidos na cumplicidade dos silêncios à beira da estrada. Às vezes, disfarço que não te vejo, só para que não me repreendam. Não tenho culpa que passes nos rostos dos outros. E mascaro-me na pacificação das silvas. Que se compõem todas as manhãs nos ressaltos contorcidos do terreno.

 

 

 

02
Mai10

Dar [raízes agarradas à terra]

Paola
Margaridas amarelas

 

 

 

Há no meu corpo uma fome desgrenhada. Que não percebo, mas compreendo, nas feridas da falta. E na aridez dos dedos procuro alimento. Lambo os restos. Na ausência do pão. Nos retratos que adornam a mesa. Inutilidade tamanha! Como se a minha fome se saciasse com desenhos… Aconchego-me na sombra do colo. E um perfume inunda o meu corpo. Chega-me o doce fervilhar do tomate num beijo que guardo no olhar. Na mesa estende-se uma toalha desenhada na trama da linha. À noitinha, no silêncio do coração em que me deito e me calo. E lambo o gosto que guardo na boca. Numa azeda e funesta fusão que experimentei pela manhã.

No resguardo deste dia, o pão, que agora como, não tem sabor. Falta-lhe o doce dos teus braços. Onde eu comia até ser dia. Outra vez. Enquanto o tacto se satisfazia na seda do teu sorriso. Numa experiência única para o paladar. E o olhar se perdia na imensidão do mar. Há nos meus olhos um pranto calado. E lágrimas que se amotinam pelas ruas, numa revolta de flores.

Hoje, não te ofereço flores de comprar. Daquelas que estão embaladas nas montras. Penduradas na pressa do dia. Essas, dizias tu, dão-se no fim. Deixo-te um beijo de margaridas amarelas. Que se erguem na fertilização da paisagem. Raízes agarradas à terra, mãe.

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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