Jacinta XVII [à beira do rio]
Ela dormia. Adormecera ao ritmo da melodia que tocava no baile. Rouca e cansada. Uma velha canção que ouvia no sussurro das lágrimas que apertava nos solavancos do peito. E não se cansava. La chanson des vieux amants vivia numa ilha de temperaturas que se perdiam numa doce onda de calor. Na excelência do verde. Uma voz masculina dizia e ela chorava. Era com aquela canção que o chamava no instante em que o tempo se suspendia. Depois dançava. Sabes, Beatriz, que dá para dançar? Se não acabar… se não acabar… E não percebera que o baile findara. Beatriz permanecia sentada na paciência das cartas. Num jogo retido na monotonia do gesto. Jacinta era de uma beleza sossegada, pensava, mesmo quando dormia num sono atropelado. Guardava a amiga com a mesma brandura com que segurava o ás de copas. E irritava-se com a inutilidade da sequência. Afinal, Jacinta dormia profundamente sobre os ziguezagues que a vinculava ao caminho. Ela estava ali para guiá-la na redefinição do dia. Afiançava que Jacinta merecia aquele sono e que deveria continuar a ouvir aquela canção e a dançar.
Mal a música se calou, Jacinta abriu os olhos numa amena suavidade, espraiou os braços e as pernas. Sentou-se e olhou para Beatriz. Depois, o seu olhar percorreu mansamente a sala. Pendurou-se na janela que se escondia debaixo de umas cortinas vermelhas que dificultavam a afoita entrada do sol. A luz impedia-a de ouvir o que acontecia no outro lado do rio. Apenas o gato se mantinha no silêncio do mármore do parapeito da janela. Caía-lhe o rabo pela parede. Um excesso que usava para brincar. Atirava as patas como se fossem mãos à procura de abraços. E na ausência de tudo, abraçava-se na ilusão do afeto. E ria à custa da imbecilidade do desacerto. Pulou afomeado. Miou meigas e lamechas palavras aos pés da dona. Olhou para ela e foi-se deitar na imobilidade do sofá vermelho. No contentamento do conforto que o corpo de Jacinta ali deixara. Por todo o lado explodia um perfume deslumbrante. Jacinta perdurava no sustento da janela. Atravessou a frustração e ergueu-se na ilusão do instante. À sua frente, rapazes e raparigas sentavam-se na agitação das cadeiras. A sala estendia-se até às janelas numa tolerância de verde cada vez mais verde. E ela falava como se fosse verdade. Era o corpo todo que dizia, enquanto as mãos acariciavam as palavras e a voz disfarçava a emoção da ocasião. Ela sabia que havia lobos pelos cantos e que os peixes não resistiriam às fortes tempestades do inverno. Jacinta agia como se um vento frágil soprasse entre ela e os desenhos que brincavam nos lápis dos garotos. Ela olhava, ao mesmo tempo que um intenso cheiro a mar esvoaçava pela sala. Juntou tudo. O papel, o lápis e a crispação do esboço. Nas folhas em branco nasciam traços hesitantes que ela embalava ao ritmo da vida que lhe tinha quebrado o caminho. Depois, recolheu os desenhos um a um com um sorriso misericordioso. Par cada risco ergueu o passado. Olhou para as janelas e contemplou as mãos vazias. Por instantes, abrigou-se da tempestade. O gato desabou do sofá com o peso do sono, incriminando a cauda do arrastar para o tapete.
Jacinta estremeceu. Deu dois passos para trás. Agradeceu o silêncio de Beatriz com um sorriso desanimado. E ambas, no intervalo das mãos, extinguiram-se num abraço. Beatriz permanecia sentada à cata do ás de copas. Jacinta perdia-se na hesitação. Assustou-se. Um frio ameaçador transpôs a pele da sua perturbação. Sentou-se no sofá vermelho. Cautelosamente para não aborrecer o gato. Reparou na imensa cauda amarela arrumada no tapete. Levantou os braços, ergueu as mãos, lambeu o passado, afagou a cabeça. E deixou-se cair na ilusão do afeto.
Encostou-se e fechou os olhos. Percorreu o caminho de areia e sentou-se à beira do rio. Roubou o azul às gaivotas e voou mais alto. Então, assaltou o céu. E ouviu a mesma canção. Velha e rouca. E mais uma vez chorou. As lágrimas demoraram na areia e atiraram-se ao rio. Quando quis retomar o caminho, não sabia qual o barco que a levaria até lá.