o caso das portas fechadas [no delírio da manhã]
O bom da manhã, mesmo que borralheira e a espreguiçar-se pelos telhados frescos e calados, está no jeito com que olho para o sol. Não o vejo da minha janela, mas sei que está lá. É por isso que no meu corpo sobrevive o doce e quente aconchego da minha íntima certeza.
O sol entrou no quarto, como se a porta permanecesse amplamente escancarada e eu tivesse dito que sim. E viveu alongado num tapete de verdade, multiplicando-se na luz. Até a chuva chegar. E choveu uma chuva pequenina que permanecia como se o baile fosse ali. O vento desconcertava-se no aperto das mãos como se a concertina fosse eu. As vozes expunham alaridos desproporcionados sentadas na ombreia da porta. Como se tivessem engolido pedaços se sol que lhes incendiava o alvoroço. Numa dição quase que imperfeita. As ruas tinham mudado e a alegria já não cabia nos passeios. As tabernas, agora de portas fechadas, já não negociavam vinho. Quebraram-se os jarros, desagregaram-se as asas. Sobre o balcão de mármore malhado e encardido, jaziam, desamparados, meia dúzia de copos de barro. No outro lado da rua, as portas entupiam-se ao ritmo do silêncio. E fechavam assustadas com a ausência da música. Já não havia vinho, nem vinhas, nem uvas. E as vozes exclamavam que a culpa era de Baco. Que ao provar o rubro líquido se deslumbrou com tantos atributos. Delírio da mulher que corria pela estrada e que não compreendia tamanha arrumação. Desconhecia a razão de tantas portas fechadas. Estranhava que o divino deus fosse a causa do fecho das tascas. Garantia que não fora ele que partira os copos. Irritada, olhou para mim e exigiu que lhe explicasse o que lhe tinha acontecido. Sei lá!!! Eu apenas sabia que já não havia música nos beirais, nem vinho, nem uvas, nem bêbedos felizes.