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ponto de admiração

ponto de admiração

31
Jul12

no colo das marés

Paola
[Santa Cruz, Torres Vedras]

Que faço eu quando o azul é tanto? Que sei eu já se ainda não me mostraste todas as cores que tens nas mãos? Que percebo eu quando não me dizes o que eu vejo? Que caminho percorro se o cantar da minha respiração não se diz com palavras?


Eu vou! Para me agasalhar neste manto de azul. Um manto sublime. De ouro e prata. Com rendas trançadas com fiapos de luz.


Eu vou! Para escrever um poema com os silêncios das palavras que não sei dizer. Mas que escrevo com a tinta das marés. Guardo-o no coração. Como quem guarda a doçura de um segredo. Depois, vou enxugar o meu corpo molhado.


E adormecer no doce colo das estrelas.

 

 

30
Jul12

Verde [na ternura do olhar]

Paola
 
[Castanheira de Pera]


Gosto deste mundo colorido e vivo. Da expressividade das ervas e das flores. Do jardim talhado e geométrico. Do abandono acautelado das árvores. Do rio que serpenteia agressivo por vales e montes. Da doce pacatez das águas aprisionadas. Do fingimento do mar. Gosto do direito e do avesso. Assim, sem ter que escolher entre isto ou aquilo.

 

Do contentamento do verde. Da luxúria esverdeada em redor. Do pássaro pipilante na quietude da folhagem.

 

Gosto do verão com horas suspensas. E de saber que amanhã aparecerá um novo rebento em cada semente desabotoada. Um princípio novo. Brilhos da natureza no esplendor do amanhecer. De um sol brilhante. Porque gosto da simplicidade verde da natureza. Sempre que os meus olhos se perdem na embriagada harmonia que se satisfaz do chão.

 

29
Jul12

Jacinta XVIII [com os pés no chão]

Paola

 

 

 

 

Jacinta acordou sobressaltada. Que fazer quando o susto lhe tolhia as pernas e o medo se agarrava às mãos. Qual barco qual nada, cochichava. Sabia que Beatriz estava ali. Fico…Fico… Já estou. Não olhava. Não a via, mas sentia-lhe a tranquilidade do silêncio. O aroma da cumplicidade. Levantou-se arrebatadamente. Somente o salto do gato fora manso e certeiro. Há muito que partilhava a sua privacidade com a dona. E como a sabia! Nos sonos abertos que faziam no sofá, trocavam os sonhos. E as determinações por conveniência estendiam-se no chão.

Jacinta ergueu os braços numa infinda resolução de afastar a preguiça que se alastrava pelo corpo. De pé, mostrava a finura do seu corpo. E via a sua beleza levantada. Acercou-se da janela. Olhou sem a certeza de ver o que quer que fosse. Mas deixava que os seus olhos presenciassem o que lhe cortava o coração.

Ao fundo, levemente para a esquerda, um moinho agonizava com os mal-estares do tempo e a incapacidade dos homens. Asilava montes de mães que se davam na negritude das amoras. Cresciam bravias por entre as paredes abandonadas. Negras, saborosas, desejáveis, todavia valiam algumas dores. Eram cachos suculentos que não se deixavam apanhar. Às vezes, Jacinta ia lá. E deliciava-me no encanto dos frutos. Um cão corria de um lado para o outro no alvoroço da alegria. De tão beijado pelo sol, o pelo soltava fiapos de ouro. Nos olhos cabia a doçura azul-clara que o dia lhe dava. Nas orelhas a consonância com a raça. E pulava na fartura das flores. Eram abrigos coloridos no entusiasmo da terra. O cão corria, enquanto Jacinta teimava que não partiria. Porquê? E fazia comparações sem como, sem nada. Apenas com uma brisa aquietada na copa das árvores. Era de lá que via o mundo que a rodeava. E andava com as palavras que afastava com as mãos hesitantes. Curvava-se na necessidade de achar a decisão. Olhava e não reparava no cão que içava a cauda na vaidade do sol como se cantasse em versos sublimes a disputa da luz.

Jacinta dobrava-se no peitoril de mármore, apoiando os braços num enredo profundo. Beijava os ecos que se repetiam na cabeça. E sentia um sofrimento imenso. Amava-o no desatino da primeira vez. Colocar um ponto final num amor feliz. Doía-lhe tanto! Por tanto o querer. Exatamente por isso. Há amores felizes assim. Que pernoitam no segredo do corpo. Sentiu o frio da indiferente pedra. Inerte e insensível ao murmúrio da água corrente do riacho que descia pelo ramalhar das oliveiras. E o sol caía num poema calado. Nesse instante, Jacinta sorriu.

Beatriz acabava mais uma paciência. Não levantou a cabeça, mas pressentiu o sorriso da amiga e percorreu com ela o caminho do desconforto. Beatriz percebia que pelo outro lado da janela ia passando uma corrente de sabedoria tão natural como as propriedades distintivas das flores. Ou do cão.

Vou ficar, Bia. Afirmou sem vacilar. Beatriz procurou-lhe os olhos e acrescentou que percebia. Há tanto que se conheciam! Jacinta falava. Que se lembrava perfeitamente dos corpos deitados na areia. Do calor contestado que os juntava. Do cheiro dos caminhos. E acrescentava que estivera a uma minúscula distância do céu. E que se lembrava das papoilas rubras que cresciam na colina. E passava a língua pelas palavras com a mesma fome com que trincava os sabores. Um a um, demoradamente. Letra a letra. No sabor de uma tarde de verão. Agora, Jacinta reconhecia bem as palavras que eram boas para comer. Irra! Ainda vejo a sombra dele. Ainda existe a alma. O sorriso esverdeado que se espraia nas marés. Beatriz ouvia-a. Só a escutava.

Jacinta chegou-se de novo à janela, olhou e viu o rio. Não o que estava lá. O outro. O que se apressava nas veias. O rio que serpenteava na calada do azul. E lembrou-se dos movimentos elegantes dos flamingos. Dos voos madrugadores das cegonhas. Do porte majestoso e branco das garças. Um límpido manto cor-de-rosa esvaía-se como uma rosa. Efémero. Com princípio. Mas sem fim. Guardá-lo-ia no outro lado da vida. Junto ao rio. Para sustentar o coração.

Beatriz antecipava o frio que viria. O vento e a chuva. Jacinta falara verdade. E no silêncio das suas mãos esticava a adesão parceira de quem participou na história. Beatriz sempre esteve ali. Protegeu sem anotações rabiscadas. Sem térreos bons-sensos. Sem opiniões, sequer. Findava as conversas com um sejamos felizes, amiga. Com a força que o conjuntivo lhe dava.

O gato acordou com o silêncio. Jacinta aproximou-se. Pegou-o ao colo e sentou-se no sofá. O bichano fechou os olhos no encanto dos afetos e preparou-se para mais um jantar tranquilo, enquanto um violino chorava na calçada.

Beatriz levantou-se e disse que tinha fome. Que o melhor era sair. Vamos jantar no restaurante do senhor Carlos, sugeriu. Jacinta concordou no mesmo instante em que o telemóvel tocou. Foi um grito sofrido. Uma súplica que ecoou pela sala. Estremeceu. Atendeu e disse o que já tinha dito. Não. Numa extensão que lhe magoou o corpo inteiro. Depois tornou a dizer o mesmo. Mais uma vez. Desligou o telefone. Sorriu e pediu que fossem. Afinal, a minha vida sou eu. Mais a minha história. Mesmo que os meus pés não estejam seguros no chão. Também o sol cai à noitinha, assegurava.

 

25
Jul12

No rio [no tempo do verão]

Paola

 

Fotografia de Jorge Soares

 

 

 

 

 

  Por vezes, tantas são as vezes, apetece-me ir para trás. Não que queira, não que corra. Somente deslizo. É o tempo que suplica um beijo à tardinha. O vento que impõe a frescura do abraço. E eu não vejo a simplicidade do caminho. É o mel que escorre pela areia. São os corpos encharcados de azul. São as algas que se enredam na rima das marés. Somos nós. Que nos poupamos no excesso das dunas. É a areia que se desfaz. É o sol que acende as nossas tréguas. E eu não antecipo a outra margem. É o meu tempo que cai desamparado nas sombras do carreiro. É o teu sorriso molhado que escorrega pela serra.

Às vezes, o rio concede-me as tuas mãos. Tantos acenos. Mais abraços. Mil afetos. E as gotas salgadas sorriem na aflição dos gritos dos pinheiros.

Depois, agarro o céu. Destapo o dia. E fica a distância que há entre mim e os restos dos botes que morrem na praia. As nuvens içam as cores rasgadas que sobram da tarde e a margem do meu olhar. E tu dizes que tens procurado.

Há momentos em que perco o olhar. E não faço nada. Apenas o rio faz o que pode.


Fotografia de Jorge Soares 


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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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