Confesso a relevância do ponto final e o gosto de ter um sempre pronto para usar. Há contextos que o exigem. Mas desgosto-lhe a prepotência. Os caprichos déspotas e eu não queria o fim de agosto. Fica-me a beleza rendilhada da admiração.
Admirável ponto de exclamação. Cumpre-se no fim das frases. Na dissemelhança dos outros. Distancia-se das letras para se albergar no coração. E, com as mãos, enrola afetos. Em cada esquina do corpo, acha o sublime sentido da surpresa, admiração ou exclamação. Despe a sorte das emoções. Multiplica os sentidos sem que se exponha nas palavras. Todas não chegam, tantas são demais. Galanteia as lágrimas. Descerra sorrisos. Segura os silêncios. Para perpetuar o olhar. É um sinal. E fica na minha memória a beleza rendilhada que o azul burilou a ponto de sol.
Oh, quão doces são as lembranças da minha meninice!
Gostava de me empenhar e poder fazer o que agosto ainda não deixou. Andar para trás para calar o relógio. Atirá-lo ao chão e dizer-lhe que bastava de ladrões do tempo. Saborear o perfume da terra e lamber o mar. Colher um ramo rubro de papoilas e enviá-lo para o céu. Tourear um touro e cair na arena sobre o bruaá silencioso das bocas desconhecidas que poisavam nas bancadas. Calar o ruido dos ruídos de tantas vozes difusas.
Apetecia-me apanhar sol na proa da traineira e ver o sol a cair e não o poder ajudar. Saltar para o rio e molhar-me de muito. Chegar à meta sem querer dizer o lugar. E falar para no meio das palavras chorar o silêncio num eloquente e enorme discurso. Poder fechar aqueles livros. Com o mesmo desejo com que um dia os folheei. Erguer-me na proa da mesma traineira azul e morrer descansadamente. Na elegância do azulado do rio.
Queria, agora que agosto já não deixa, desviar-me. Sem que me molestassem. Ou quisessem ver-me muito longe de mim.
fui até lá só para escutar o mar. e andar. foi uma viagem pequena pela margem dos abraços ao colo da maresia. havia uma delicada neblina que me aguentava de pé. olhos nos olhos com o vento que chegara antes de mim. as pessoas contavam vidas que eu não entendia. às vezes gritavam e eu não as ouvia. duas palavras roladas na areia. uma estava a mais. calámo-nos encharcados de azul. e lá do fundo vinha um canto doce. uma cantiga morna. tão quente.
fui até lá só para sentir o perfume que sobrou da pele daquela tarde. e vi que houve um tempo em que me escondia nos teus dedos não fosse a areia querer.
fui até lá para ver o mar. o barco já não estava à minha espera. apenas o mar atirava satisfeitos sorrisos indiferente a quem chegava. ou partia. e as ondas navegavam sozinhas.
fui até lá para me lembrar que roubavas o mar só para mim. no verão.
a traineira desbotada. o mar satisfeito na desigualdade do azul. o sabor da maresia. um abraço consistente. a dureza da sorte das marés. as mãos amansadas pelas cicatrizes. um mergulho danado. o suor que rega a agilidade do corpo. as lágrimas despejadas na areia. o colo do refúgio. um porto ancorado. o grito da gaivota. a noite escondida. a lua clandestina que cuida do espaço. o mar sem idade. o sol que nasce na barra. o cais da saudade. o retorno ao leme de uma imensidade amainada. a alcofa de peixe no chão. a riqueza na mesa. o medo quebrado. uma concha de pão com sabor a espuma que acaba na areia. o prazer do sal na boca do pescador. um emaranhado de malhas remendadas pela paciência dos dedos. na mesa a traineira corta a espuma da maré. a gargalhada imperial. e na minha língua a sardinha faz-se lenda. numa ancoragem de emoções.
imploro-te, doce senhora. o supremo encanto da tua sombra.
concede-me, senhora, o que me segredaste ao ouvido enquanto dormia.
rogo-te o verão colorido e o vento sereno. porque eu quero ser como o tempo. e desarrumar os meus dias. como as rosas perfumam as pétalas. e poder ficar.
agora mais nada. o verão caiu no chão. com o sol na barriga. neste instante, lambe o doce suco que lhe ornamenta as mãos. e agradece o esquecimento dos deuses. que pernoitem longe. que pernoitem.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]