Ignoro a existência de alguma lei que me barre a possibilidade de caminhar pelo passado. Com o mesmo compromisso com que ando por aqui. Deve haver, mas não me interessa a razão. Há pessoas que não têm um tempo para onde ir. Inventam leis. Não me importo. Eu vou sempre que quero. Às vezes não quero, mas vou.
Cheguei cedo à praia. Desci a duna, atravessei a ponte que cruza o canal. E fui. Molhei os pés. Sentei-me na areia. Rebolei satisfações. Vi os caranguejos que se entretinham com conversas arreliadas. Desorientados, encetavam viagens ao contrário. E voltavam sempre ao mesmo local.
Uma garça. Outra cegonha. Tanto silêncio. Um peixe sorria na água. Na outra margem a cidade. Uma onda sossegada que chegava e se desmazelava nos meus pés. Mais nada.
Entrei na água num mergulho ávido e fresco. Sacudi os cabelos. Tornei a entrar. Limpei os olhos da doçura da voz que me molhava o rosto. A minha mãe dizia-me que estava na hora de ir para cima. Que o almoço estava pronto. Que o pai não gostava de esperar. Só tive tempo de lhe responder. E gritei: já vou!
Ergui os olhos para o céu e sorri. E pensei que um dia destes hei de ir passear outra vez. No desconhecimento da lei.
Hoje, não me apetece escrever. Tenho a boca alagada por palavras e as mãos desenrodilham meadas de falas melindradas. É por isso que não quero escrever. Porque a diferença está entre o que vi o que não vi. Também o sol regressa todos os dias e anda pelas ruas em silêncio para eu ouvir a chuva que cai nos beirais.Não sei pensar quando as palavras não estão quietas.
Em sonho lá vou de fugida, Tão longe daqui, tão longe. É triste viver tendo a vida, Tão longe daqui, tão longe. Mais triste será quem não sofre, Do amor a prisão sem grades. No meu coração há um cofre, Com joias que são saudades. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar. Ó bem que me dá mil cuidados, Tão longe daqui, tão longe. A lua me leva recados, Tão longe daqui, tão longe. Quem me dera este céu adiante, Correndo veloz no vento. Irás a chegar num instante, Onde está o meu pensamento. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar, Tenho o meu amor para além do mar.
Já não é tempo de cerejas. O sol cai sossegadamente no colo da colina e os homens abdicam das cestas. Calam-se as cantigas dos dedos e desarrumam-se as mãos que não acertam com a eficácia da mudança. É um retrocesso que se estende pelo vale. Apenas uma brisaabafada segue o mesmo caminho. Sem atalhos. Pelo trilho das pedras. Para recuperar o sentido do compromisso, os pássaros empoleiram-se nas árvores despidas de frutos. E olham numa incessante busca de equilíbrio.
E estepássaro que aqui chegou conserva o ritual e recusa-se a construir o ninho no chão. Crava o olhar no infinito na ilusória busca de locais com abundância de alimentos. No cimo da árvore, compõe o voo para ir mais longe.
Já não há cerejas no vale e eu não sei onde ouvir os pássaros. Fazem-me faltas as perfeitas melodias sem hora marcada. A beleza das penas. Os silêncios alegres. Mas sei que vou continuar a ouvi-los. Porque “os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas.”
Foi há seis anos que nasceu um setembro tranquilo. Chegou com um contentamento azul nos braços. Um choro ténue, uma lágrima alegre e na noite abriu-se uma excecional clareira de luz.
Hoje, que setembro torna, há um recomeço que se diz em poucas palavras. Frases simples que contam histórias sobre o tempo. E o desentendimento por tantos relógios.
Agora diz que já é tempo de ir para a escola. Jura acordar cedo e não fazer asneiras. Vestir-se sozinho. Só não sabe se volta com as calças limpas. Tem que brincar com a namorada. Jogar à bola e marcar um golo. Procurar a dúvida no chão.
Eu disse-lhe para se apressar não fosse a escola acabar. Ou deixar de gostar.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]