A tarde desabava pela estrada. A desafiar as cálidas horas que tocavam nos sinos da igreja. De longe chegavam os acordes que tateavam a resistência do tempo. A força do aplauso murchava à medida que o eco desmaiava pela ladeira.
Apenas uma flor se encostava à parede no orgulho da cor. E de tanto a olhar pensei que a ouvia.
Os sonhos murcham, mas não podem ser arrancados pela raiz. E de vez enquanto chove. Uma chuva serena e doce. Que os alimenta e os veste com farrapos de seda.
Fui a feira. Não queria ir, mas fui. Temia o barulho das cantigas. O universo ativo das vozes. Os apitos estridentes que gritavam a partida. Quando o silêncio era um desejo maior.
Fui à feira. Rodopiei nas gargalhadas do carrossel. Subi ao céu e colhi um ramo de estrelas. Depois lambi as mãos numa constelação de sabores, enquanto os meninos comiam histórias que eu sei sobre o algodão doce.
E foi no voluteio do carrossel. Foi no preciso momento em quea girafa olhou para mim que o silêncio se pôs. Apenas eu o vi. E uma enorme bola de fogo caiu no horizonte da minha infância quando os olhos dele me chamaram.
A minha mãe queixava-se amiúde da tortura que lhe advinha de ter os pés grandes. De nada servia o colo daqueles que tentavam acalmá-la. Que era alta, bonita… Como queria ela amparar tantos adjetivos se os pés fossem pequenos? Irritava-se sempre com a solenidade de tais palavras. E os sapatos? Só há números para bonecas!
O pior era quando o meu pai se metia na conversa. Lembrava ele os benefícios dos pés grandes. E tecia elogios descarados à beleza dos ditos. Que aquilo sim, eram pés. E tudo descambava quando o confronto se punha entre duas palavras: pés e patas. Que não! Ela tinha uns pés lindos, vistosos que lhe assentavam muito bem. Ainda se lembrava de vê-la a caminhar na areia. No desembaraço do movimento. Enquanto os outros se arrastavam num passo hesitante e desleixado. Um passo para afrente e dois para trás. Como os caranguejos que corriam para a água. Pronto, lá voltava a conversa das patas. O caranguejo tem oito para correr e mesmo assim fá-lo de lado. Deve ser, pensava ela, por andarem descalços. Coitados. A minha mãe sempre lutou pelo livre acesso aos sapatos. Dizia ela que o problema não estava no que calçava, mas nos calcantes. Não percebia a crise dos números. A razão por não ser produzidos sapatos para todos os pés. Escasseavam os modelos e os que apareciam, eram para as clientes habituais.
Ela sabia fazer rendas e tricôs, camisas e vestidos. Também calças. Sapatos é que não. Valia-lhe o verão que era esbanjador em chinelos. O pai é que sofria durante todo o Inverno. De vez em quando, lá andavam à patada.
Agora, que o tempo é fartura, as montras estão atoladas de números e cores. Eu sei que há pés e patas para todos os modelos. Mas há as patadas. Que mais não são do que pancadas com a pata ou pé. Deve haver por aí, muita gente com pés grandes.
Sinto saudade das patas da minha Hera. Uma linda e doce cadela. E que patas! Sempre que me pisava, tinha a noção do peso. Olhava para mim, pedia desculpa e erguia-se num aceno de carinho. Depois, erguia a pata na direção de uma festa.
É por isso, que tenho saudade dos pés da Hera. E dos pés minha mãe. Que sempre me pouparam às patadas da vida.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]