À noitinha, gosto de andar. Passadas ansiosas, mornas. Devagar. Dissolvo as horas, percorro a avenida guarnecida com linhas azuis vindas do rio. Atalho o tempo. Desfaço o espaço numa amálgama de aromas. Apago as sombras e os riscos. Gasto passos. E peço-te que não tenhas pressa. Que tornes aos gritos de outrora. Para irmos à feira voar no carrossel. Quero agarrar-me à girafa que teima em erguer-se na incerteza das voltas. Sentar-me no colo do cisne de brancos e quietos cantos. Quero as minhas nas tuas mãos reclamando palavras de algodão-doce. E prosseguimos num passo impaciente até à fonte que sustenta as verdes e bravas piteiras de figos açucarados. Eu gosto de andar. Correr pelo chão resguardado pelos versos dos poetas. Hoje não vou à rua. Não gosto que me obriguem a parar.
Agarrei num lápis de carvão, numa folha de papel muito branca e numa tranquilidade perturbada. Construí riscos. E fiquei sem tempo. Depois, apaguei tudo. Saíram uns traços. E acendi imagens que pernoitavam na memória.
A seguir, exercitei uns pontos. Ficaram umas reticências largas e dispersas. Entrou o sol, o azul e o mar. Uma escassa réstia de vento. Uma ondulação cristalina e uma traineira. Um areal.
Por fim, segurei num risco. Confundi-o num traço. Acrescentei um ponto. Percorri a folha numa volta deslumbrada. De um lado ao outro. Quedei-me na admiração!
Eu nunca te pedi facilidades. Nos teus olhos dispus as imagens que moravam no meu corpo. Às tuas mãos atei amarras de fibras trançadas de sol.
Na tua mão direita, lembras-te, erguiam-se cordas libertas da admiração. E o rio dançava musicatas azuis. Enquanto nos teus olhos passavam alegres composições verdes. A gente cantarolava ao som do violino que entrelaçava acordes perfeitos. Numa tensão afinada.
Agora eu sei que o tempo enferruja o equilíbrio. E que os nós se agarram às cordas. E obrigam a habilidades de coordenação rítmica dos dedos. Cadenciada e com intervalos regulares.
Mas eu não sei como se desatam os nós. Nem tocar sem que umbeijose solte num sopro de sonoridades irrepreensíveis.
Um pescador de passados, um papel e a paisagem. A ponte e a passagem. O palácio, as portas e as paliçadas de pálidas proteções. Pergunto pelos perdões e percorro pecados. E parto para próximo dos pedaços, porém com paisagens permaneço. Com paisagens me perco. Com paisagens me pinto. E pernoito. Nas paisagens me sinto e nelas me pacifico. E pinto papoilas na possibilidade pálida da planície. Um preâmbulo protetor.
Oh, pescador de passados, passa o poema que a poesia proclamou. Um pardal, uma ponte e um piano. Um projeto e um prazo. Pés de percetíveis pérolas que percorrem a minha paisagem.
Hoje, vou oferecer-te o meu suor gota a gota, para te lamber a pele. E ver o Sol. A Lua e as refulgentes estrelas num abraço profundo. Então, tudo fará sentido. Amarramos o tempo ao chão e inauguramos uma tempestade passageira. E bailamos os dois ao ritmo da fortuna enfileirada numa doce melopeia.
Agora, não me digas mais nada. Estou ocupada a ouvir a chuva a sorrir.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]