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ponto de admiração

ponto de admiração

29
Dez12

o canto das cerejas [quando o inverno era quente]

Paola

 

Tu foste chão. Terra com sabor a papoilas. Eras a água e o pão que se aquecia no trigo. O arroz e os pés molhados na monda do alento. Um chapéu abado e a ternura dos dias que acordavam cedo no bico dos pardais. Tu eras risos e marés de ternos confortos. Cegonhas que se beijavam no cimo da torre da igreja. E da escola. Eras a mesa e o colo onde comíamos cerejas a cantar. Tu eras a coragem e a estrada que corria em direção ao rio. Os passos na areia e as corridas até à fonte. Depois chegou a manhã. O dia e o mês. A hora que junho murchou.


28
Dez12

mudança das horas [persiste um tempo no relógio do meu avô]

Paola

O relógio já não é novo e falta-lhe a paciência para as horas. Queixa-se das noites mal dormidas. Do barulho cadenciado e consecutivo. Para além disso, confessa, os braços giram cansaços e afrontas. Outrora, e com toda a dedicação, eu dava corda ao relógio. Acertava-lhe os ponteiros com o ritmo da melodia.

 

Agora, exige o tempo. Ao relógio não bastam as horas. Quer o mesmo tempo que eu guardo nas mãos. Digo-lhe que não. Que o mastigo o tempo com o sol todos os dias ao acordar. E o relógio persiste num continuado sintético. Nos recursos disponíveis. Ignora a vida que lhe dou. Que lhe tiro.

 

Roubou-me a areia. Cortou-me o vento no mesmo instante em que rasgou os anos. Juntou os dias e perdeu-se numa amálgama de momentos. É assim que o meu tempo chega de barco. Eu vou para lá com uma vontade aberta de chegar, desnudada de horários estreitados. Entro na água e o meu corpo leva-me numa inesperada maré de azul sem que a ordem seja restabelecida.

 

Na parede da sala, o relógio dava horas que se intrometiam nas paredes da casa. Sem saber que eu vou buscar tempo todas as manhãs. No meu horizonte não há horas, antes o relógio do meu avô. Lindo, com uma corrente dourada e comprida que se agarrava à casa do colete. Na tampa, os motivos de caça. Uma lebre escondia-se no colo daquele bolso pequenino.

 

Na parede da sala, o relógio calou a voz, enquanto os ponteiros marcam o tempo que me apetece. Que eu sei e me aquece. Porque em cada relógio mora um tempo diferente.



[imagem da internet]


 

23
Dez12

Natal à beira-rio [é para lá que vou...por causa dos sonhos de azul]

Paola

 

 

 

 

 

É o braço do abeto a bater na vidraça!
É o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!

                                                     David Mourão-Ferreira


22
Dez12

no restolho das vozes[na fantasia das cores]

Paola


Nos dias cinzentos que correm enfraquecidos, na dor translúcida que me trespassa, na indecisão fina que me afoga, na esperança caída no chão de terra batida, queria amansar a dor. Remover a incerteza e reavivar a cor do sol. Colorir os dias, a lua e a noite. Disputar o brilho das estrelas e rir com elas. Queria ser alma, ser gente e velejar até lá. Reaver a casa grande pendurada na areia com janelas prenhes de luz. E as riscas azuis que se rebolavam no calor branco que cobria as paredes. Queria os mistérios que permanecem espalhados na duna. As toadas dos passos. O restolho das vozes. Queria os ninhos de sonhos que vogam pelo azul do rio. As marés, as ondas e o bote. O aroma da canela naufragado nestes dias frios e cinzentos.

Se agora fosse natal, a minha escuridão desfazia-se prolongadamente num abraço profundo. Das janelas destes dias cansados e frios, trepava até ao céu. Fundeava o tempo e privava-o das estrelas que ele me roubou. No Natal.

 

09
Dez12

Carta para longe [às vezes lembro-me de ti, dele e de nós]

Paola

 

O tempo vai um encanto,
A Primavera ’stá linda,
Voltaram as andorinhas…
E tu não voltaste ainda!…

Porque me fazes sofrer?
Porque te demoras tanto?
A Primavera ’stá linda…
O tempo vai um encanto…

Tu não sabes, meu amor,
Que, quem ’spera, desespera?
O tempo está um encanto…
E, vai linda a Primavera…

Há imensas andorinhas;
Cobrem a terra e o céu!
Elas voltaram aos ninhos…
Volta também para o teu!…

Adeus. Saudades do sol,
Da madressilva e da hera;
Respeitosos cumprimentos
Do tempo e da Primavera.

Mil beijos da tua q’rida,
Que é tua por toda a vida.

     Florbela Espanca, O Livro D’Ele


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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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