Tu foste chão. Terra com sabor a papoilas. Eras a água e o pão que se aquecia no trigo. O arroz e os pés molhados na monda do alento. Um chapéu abado e a ternura dos dias que acordavam cedo no bico dos pardais. Tu eras risos e marés de ternos confortos. Cegonhas que se beijavam no cimo da torre da igreja. E da escola. Eras a mesa e o colo onde comíamos cerejas a cantar. Tu eras a coragem e a estrada que corria em direção ao rio. Os passos na areia e as corridas até à fonte. Depois chegou a manhã. O dia e o mês. A hora que junho murchou.
O relógio já não é novo e falta-lhe a paciência para as horas. Queixa-se das noites mal dormidas. Do barulho cadenciado e consecutivo. Para além disso, confessa, os braços giram cansaços e afrontas. Outrora, e com toda a dedicação, eu dava corda ao relógio. Acertava-lhe os ponteiros com o ritmo da melodia.
Agora, exige o tempo. Ao relógio não bastam as horas. Quer o mesmo tempo que eu guardo nas mãos. Digo-lhe que não. Que o mastigo o tempo com o sol todos os dias ao acordar. E o relógio persiste num continuado sintético. Nos recursos disponíveis. Ignora a vida que lhe dou. Que lhe tiro.
Roubou-me a areia. Cortou-me o vento no mesmo instante em que rasgou os anos. Juntou os dias e perdeu-se numa amálgama de momentos. É assim que o meu tempo chega de barco. Eu vou para lá com uma vontade aberta de chegar, desnudada de horários estreitados. Entro na água e o meu corpo leva-me numa inesperada maré de azul sem que a ordem seja restabelecida.
Na parede da sala, o relógio dava horas que se intrometiam nas paredes da casa. Sem saber que eu vou buscar tempo todas as manhãs. No meu horizonte não há horas, antes o relógio do meu avô. Lindo, com uma corrente dourada e comprida que se agarrava à casa do colete. Na tampa, os motivos de caça. Uma lebre escondia-se no colo daquele bolso pequenino.
Na parede da sala, o relógio calou a voz, enquanto os ponteiros marcam o tempo que me apetece. Que eu sei e me aquece. Porque em cada relógio mora um tempo diferente.
É o braço do abeto a bater na vidraça! É o ponteiro pequeno a caminho da meta! Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, a trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio. Tão novos os meus Pais, tão novos no passado! E o Menino nascia a bordo de um navio que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia! Depois fui não sei quem que se perdeu na terra. E quanto mais na terra a terra me envolvia mais da terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me à beira desse cais onde Jesus nascia... Serei dos que afinal, errando em terra firme, precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!
Nos dias cinzentos que correm enfraquecidos, na dor translúcida que me trespassa, na indecisão fina que me afoga, na esperança caída no chão de terra batida, queria amansar a dor. Remover a incerteza e reavivar a cor do sol. Colorir os dias, a lua e a noite. Disputar o brilho das estrelas e rir com elas. Queria ser alma, ser gente e velejar até lá. Reaver a casa grande pendurada na areia com janelas prenhes de luz. E as riscas azuis que se rebolavam no calor branco que cobria as paredes. Queria os mistérios que permanecem espalhados na duna. As toadas dos passos. O restolho das vozes. Queria os ninhos de sonhos que vogam pelo azul do rio. As marés, as ondas e o bote. O aroma da canela naufragado nestes dias frios e cinzentos.
Se agora fosse natal, a minha escuridão desfazia-se prolongadamente num abraço profundo. Das janelas destes dias cansados e frios, trepava até ao céu. Fundeava o tempo e privava-o das estrelas que ele me roubou. No Natal.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]