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ponto de admiração

ponto de admiração

12
Jan13

XIX. Jacinta [nos círculos do tempo]

Paola

 

O dia acordou enrolado num nevoeiro cerrado. Fazia frio. Não se vislumbrava o sol, apenas um fecundo pressentimento permitia supor que chegaria mais tarde. E não lhe apetecia. O sol chegava sempre tarde, pensava, enquanto enterrava o rosto na almofada. Por vezes nem vinha. Outras vezes, eram reflexos amuados que desciam lentamente pela manhã. Eram quase nove horas. Tinha frio. No quarto caía uma quietude perturbada. Que permitia ver formas indistintas na imperfeição daquela indigente luz. Jacinta há muito que acordara. E percebia vozes. Nítidos os rostos. Corpos que se despiam na sombra do nevoeiro.

   Aos pés da cama, uma banqueta magnificamente arrumada. Lacada de um nobre e preguiçoso branco, alindava-se num vermelho acetinado como o canto de  paixão. Sobre o banco pé de cama, um robe curto. De seda pura com mangas largas, estilo raglã. Um luxo suave e doce que se prolongava na maciez do estampado. Debaixo do banco, o gato. A fidelidade felina ronronava a sua presença. Que estava ali, que gostava dela. Jacinta voltou-se e enleou-se no tempo, puxou o lençol. Agarrou o dia e ficou por lá. Ela sabia que Beatriz chegaria por volta do almoço. Na noite anterior, tinham acordado almoçar juntas para prosseguir as frases inacabadas. As incertezas e os medos. As fotografias que partilharam ao jantar. Era cedo. Muito cedo. Jacinta sabia que o gato se aguentaria quieto durante o tempo em que ela estivesse deitada. Ele não compreendia que a dona viajava. E caminhava para trás.     

   Quando tinha sede, refrescava-se alegremente na água que atravessava a pele daquela paixão. Mar teu. Rio nosso. E tinha sede os dias todos. De pisar a areia. De rebolar na ternura das vozes que entardeciam na traineira. Da correria do mel. E de ir à fonte. Dos cântaros empoleirados na cabeça das mulheres. Da alegria do canto. Das quadras de rimas naturais. Bebia. E embriagava-se numa bebedeira consentida com copos de poemas. Do lado de lá, não era preciso mais nada. Tudo chegava. No sublime encanto das oportunidades repetidas, ouvia tranquilamente o silêncio do azul. E voava ao ritmo do bater das asas das cegonhas que corriam para os ninhos elevados na chaminé da escola. Imaginava-se um pássaro livre que bebia silêncios.

   Jacinta sentia-se refém do nevoeiro e do mar. E daquele beijo de despedida. Num instante em que o que mais queria era sol. Não podia. O Instituto de Meteorologia, antevira nevoeiro intenso que se iria dissipar ao longo da tarde. No dia seguinte, o Sul continuaria com neblina intensa.

   Numa descida acelerada, todos as gaivotas correram para o mar. Numa histeria coletiva, num bando improvisado estenderam-se à beira-mar. E apregoaram o feito com gritos cansados. E tornaram com os mesmos movimentos nas asas. E queixaram-se de não ter tido tempo para brincar.

- Bom dia, princesa! Ainda de robe?

- Visto-me num instante. Espera um pouco…

- Jacinta?

- Hum?

- Está bem…

   No tempo das papoulas vermelhas, ela não se atreve a procurar o mar, pensou Beatriz. E sentou-se.

- Teimosa, como é, não sei… De certeza que leva o rio…Ou o tempo. As asas e o azul.


(fotografia de Hugo Colares Pinto)



01
Jan13

saboroso ano novo [na ausência do rio]

Paola

As despedidas são sempre tristes e esta não era excepção.

As férias estavam no fim, as malas feitas, a casa arrumada, o carro atafulhado de tralha. É impressionante o volume de memórias e lágrimas não derramadas que se consegue arrumar no porta-bagagens de um Toyota Corolla!

Antes de partirmos rumo a casa, um último adeus à praia dos meus afetos.

O dia despedia-se da luz. O céu cobria-se de farripas de algodão doce que dançavam embaladas pela suave e amena brisa, num festival de cores. E, de repente, desenhou-se um arco-íris do tamanho do céu. Por cima de mim, o firmamento era de um azul anilado, passando por um tom verde amarelado para terminar num laranja avermelhado que se estendia até onde a vista já não conseguia ver. E eu passava por baixo, na alegria das cores. Escondida sorrateiramente atrás das nuvens, uma estrela abria os seus braços para mim, aconchegando-me no seu colo e atrasando a partida. Aquele era um lugar que existia a prazo e, por isso, havia que prolongá-lo no olhar.

Ao fundo, recortado na linha do horizonte, o monte brotava suavemente, como se um pintor tivesse tido uma doce perturbação e o delicado pincel lhe tivesse escapado momentaneamente das mãos. E o lugar surgia, concebido por um ser superior, numa fresca representação bíblica.

Depois, só tons de azul. Atalhados por uma estrada de um amarelo muito cálido que o Sol abrira só para mim, corri até ao areal que percorri descalça. Uma suave espuma vinha beijar-me os pés. Falava baixinho. Num murmúrio delicioso, um lamento desesperado que me invadia e perturbava, mas que quero reter na memória.

No areal, os botes sobreviviam despidos de brilhos de outros tempos. Era desolador vê-los assim, vazios do seu esplendor, da algazarra das crianças, do ensurdecedor barulho das agulhas de croché da avó, das conversas das “tias”. Do balde negro que chegava com chocos, lulas e robalos.

Segurei-me àquele cheiro. Não era um cheiro qualquer, de uma qualquer praia, de um qualquer rio. É o meu bálsamo. Inconfundível. Reconhecê-lo-ia em qualquer lugar e é dele que eu sinto mais falta quando não estou ali.

É um misto de mar, com cobertura de algas e recheio de espuma, mais ou menos como as lulas recheadas que a minha mãe servia no dia de ano novo. Porque um poema não para no fim. Porque um verdadeiro poema vive eternamente.


(imagem da internet)



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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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