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ponto de admiração

ponto de admiração

17
Fev13

Eu moro aqui [onde as pessoas sobem as escadas a correr]

Paola

Os meus vizinhos gostam de estar encarreirados nas gavetas. É de lá que percorrem um caminho encadeado e sem palmeiras nas bermas. E admitem a noite iluminada pela lua que se banha no rio. Às vezes, a lua cheia entra pela janela e cobre o quarto de luz. Deve ser por isso que eles acordam e fazem expedições pela casa. Garanto que tudo se assemelha ao envio de tropas para uma dessas imprudentes guerras que vagabundeiam por aí. E com um fim bem determinado.

Não sei o nome do indivíduo que mora no rés-do-chão direito. Nem da irmã que passa os dias a gemer. Desafortunada. Mas só grita quando ele vai tomar café. Eu sei que ele não está em casa porque ela gasta-se em altas lamúrias. Só por isso. Não trabalham. Se trabalhassem não estavam sempre à janela. Que ainda se espanta com a angústia da sirene das ambulâncias que correm na rua. E dizem bom dia a toda a gente que chega. Ela gosta de espreitar pela gaveta da sala. Garante que assim tem a sensação de ver a rua. A janela está guardada por uns cortinados de cores bastante vivas. O floreado dá vida à sala que se vira para o asfalto. O padrão concorda muito bem com o alarido que ela constrói todas as manhãs. É notável como as pessoas conseguem escolher tecidos com motivos e cores como se estivessem a adornar o coração. Gente simples. Desconheço as opções dos outros inquilinos. Nem sei se têm cortinas nas janelas.

Disse-me a tia Amélia, uma senhora que faz renda à tardinha, que no lado direito mora um casal que sai sempre cedo. E chega tarde. De vez enquanto, ela entra pela porta da frente. Parece que isso só acontece quando vai buscar o filho mais cedo à escola. Coisa rara porque não tem vida para isso. É a avó que aconchega o rapaz. Não duvido da tia Amélia que entrelaça desenhos com linhas coloridas. E toma café pela manhã. Ainda ontem lhe disse para ter cuidado. A idade não perdoa e os olhos gastam-se com o tempo. As mãos também. Se ela trocar as fiadas, como posso identificar as gavetas de cada um? A tia Amélia sorri e continua o naperon com que quer decorar o balcão da cozinha.

Os meus vizinhos são seres inventados que apenas partilham comigo a mesma escada e a porta de entrada. Os do rés-do-chão só a porta. Não sei quem são… Por vezes dizemos bom dia ou boa tarde. O que nos dias de hoje já é extraordinário. Fico a pensar que devem sonhar com uma casa amarela com piscina e um jardim pintado de verde que viram numa revista enrugada que fora largada sobre a mesa do café. Se olhassem para a data, teriam compreendido a disparidade temporal. Estou certa que continuariam a virar a página da mesma forma como viram os sonhos. Sem tempo nem espaço.

Não sei como gostaria que os meus vizinhos fossem. Penso nos atributos dos argumentos esgrimidos no patamar da entrada. Na rapidez de reação aos desencontros verbais. Nas campanhas de solidariedade cada vez mais acauteladas. Depois medito na perfeição da estruturação das ideias, no humor e na inteligência. E não me resolvo. Porque é certo prosseguir as conversas na sala e não sei se me apetece ter gente estranha em casa. Fico-me na irreverência do percurso. Pela audácia das palavras. Gosto de despir as palavras. Saboreá-las e não as entender. Olhá-las e ouvir o  som da independência que ressoa pelas escadas.

Gosto de ouvir o bater da porta e sentir as voltas da lingueta da fechadura. É assim que que sei que estou a sair. Porque é na rua que quero voltar para casa. É de lá que contemplo os habitantes do meu prédio. Já sei o nome de dois.


[pintura de Isabel Maia]


01
Fev13

Eu moro aqui [na cave do tempo de pantufas]

Paola
Eu moro aqui. Num segundo andar com gavetas para a rua. Dois vasos. E a salsa e os coentros agonizam num verde amedrontado. Deve ser por causa da velocidade do dia. Do nevoeiro… talvez da luz.O prédio ao lado também tem gavetas. É lá dentro que as pessoas se arrumam, contaram-me no café em frente enquanto bebia um café muito escuro. Ou desarrumam-se, titubeei. Umas dobram-se sobre os dias. E saem à rua com vincos no rosto. Não sei quem são. Não se mostram nos estendais. Um estendal é um acessório que garante que as roupas não fiquem amarrotadas e que se mantenham em perfeitas condições. Mas as pessoas esquecem-se do vento e o sol. É preciso que a chuva chegue e que escorra pelos telhados em grossas gotas de água. Elas abrem as janelas, curvam-se e atiram-se às molas coloridas. A chuva não lhes pertence. Depois fecham as janelas. Por vezes apagam as luzes. Dormem. Devem dormir, não sei.

Outras vivem agarradas aos dedais cor-de-rosa que libertam perfumes baratos. Assumem ares desconfortados e esquecem-se de dizer bom dia. Eu não as ouço. É por isso que concluo que não falam pela manhã. Talvez não queiram ser vistas. Nem elas e muito menos a galinha. Ignoro a cor do galináceo da minha vizinha. Duvido que tenha um. Mas deveria ter para que o provérbio se cumprisse. O problema são as penas.

E há as outras. As que dizem tudo. Falam de mais porque falam. Cumprimentam e murmuram mazelas. Raramente as próprias. Afiançam que as suas não têm serventia. Tomam o café e desenham planos para o jantar. É que os maridos são rigorosos na hora do comer e não consentem negligências domésticas. Às vezes lá confessam que os homens se excederam. Que avançaram sem pensar. Que disseram palavras sem ponderar. Que não foi por mal. Estavam cansados, coitados. Mal as vejo. Desconfio que não estão à janela. Mas sei que existem. Numa gaveta e muito desalinhadas.

Na cave, uma espécie de cómoda baixa sem gavetas e com dois puxadores. É aí que mora o João, um professor reformado. Tem um cão e muitos vasos no terraço. E uma bicicleta que enferruja encostada ao muro. Ele acredita que os dias são muito grandes. Lembra-se da escola, dos alunos e do caminho que já não faz. E sorri. Depois vai-se embora. Só volta de vez em quando. Rega as flores apanha a roupa e lembra-se que gostava de não estar reformado. Arrepende-se logo a seguir e afasta-se. Vai porque eu oiço a porta a bater. Sai a correr como se fosse para o baile. O João volta sempre, para se ausentar com a mesma pressa. Confessa que tem, agora, menos tempo.

No outro lado, não sei quem está. Às vezes, oiço os passos de um homem cansado. Doente, pela certa. Magro e silencioso. Tem um casaco de fazenda com uns quadrados enormes. Não gosto do casaco. Porque abafa dores desbotadas. Desânimos que não consegue abandonar no hospital. Devia. Entra em casa sempre com pressa. Estende a roupa para depois a apanhar. Come peixe cozido sem sal e bebe muita água. Isso vê-se na cor da pele, no corpo franzino e na fragilidade das mãos. Tem visitas que eu bem as oiço. A ele é que não. Um senhora já de meia-idade que fala em excesso. Gorda, com uma pele desalumiada muito cansada. E um homem ainda jovem. Apanham roupa. Falam. Alinhavam os dias seguintes e vão-se embora. O homem da cave fica sozinho. É por isso que se deita cedo. Para se levantar e sair. Garanto que ele mora na cave. A porta bate sempre ligeiramente. É um bater adoentado, com robe e pantufas.

Hoje, vi o inquilino da cave. Eu entrei no prédio e ele saiu. Foi-se embora. Nunca me disse como se chamava.

Nem disse bom dia. Apenas impediu que a porta batesse. Mas eu cumprimentei.

Não faz mal, ele ia com pressa. Foi pena! A gaveta Fechou-se no mesmo instante em que se abriu. Nos prédios as gavetas andam assim. Ou não andam.

 

 


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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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