memórias[quando as ervas rasgavam o chão]
Nada vos direi sobre o voo dos pássaros à volta dos figos. Dos pardais e dos piscos empoleirados na figueira na disputa dos frutos. Calarei a correria na direção das cerejeiras que perfumavam o vale. Não, nada. Não se fala de um rio que corre em espontâneas e contentes marés de azul. Em abraços hesitantes, calados, preservados nos ninhos das garças. Nem dos gritos das gaivotas e muito menos das cegonhas. Nem afirmarei que vi os ninhos cuidadosamente erguidos na torre da igreja. Vou calar a melodia que os sinos tocavam à tardinha. Nada direi das papoilas que rasgavam o chão na louca exuberância do vermelho. Do beijo que caiu.Não pronunciarei uma palavra sobre as mãos dela. Não vos mostrarei o sorriso que plantava nos vasos.Nem vos mostrarei as rendas que decoram as toalhas de rosto. Não vos maçarei com passados que escorregam ao meu lado, nem do alecrim que chora nos meus olhos. Numa doce e amena brisa que me beija a pele. Nada vos direi. Nada. Porque não vos posso dizer que acordei com uma inexplicável vontade de ver. Estender os olhos pelo chão. Ir para lá e entoar versos coloridos e cintilantes. Até às raízes. Apanhar os cacos. Agarrar o corpo e saborear a alma. Ignorar a forma e pintá-los de azul. Na organização das marés. Na certeza que as minhas memórias não são de ninguém. Sou eu que lhes concedo a cadência do uso. Nada direi. Na desordem do tempo.