Gosto de ouvir rádio. Andar por lá, adormecer no bulício das vozes, enrolar-me na cadência da música e desadormecer ao colo da canção seguinte. E dou por mim a pensar naquela canção que ouvia sem me atrever a contar as vezes. Que não ousava contar a ninguém, com medo que me furtassem o instante. O tempo passou e agora não escuto as mesmas canções. Mergulho nas vozes, gosto das músicas e enrolo-me exatamente com a mesma desordem com que antes me embalava.
Passa uma canção que escutava com o volume incendiado… quase não a reconheço. Desejo que acabe… E dou por mim a pensar a razão do meu sentir. A canção permanece inalterável…
Não fui eu que mudei… mas é impossível ouvir a mesma canção sem lhe mudar o sabor. Como o beijo que trocámos à tardinha… Como a cor deste mar de ritmos cadenciados… Como o bater inquieto das nossas bocas que numa tarde se calaram com uma vontade doida de chorar.
Num reino muito antigo, havia um castelo. No alto. Pela colina escorriam pedaços de histórias. Passados de homens destemidos que se perderam pelo mar. E partiram engalanados de vontades e segredos. Conta-se que o castelo era habitado por uma moira encantada. Jovem e de enorme beleza. Felinamente sedutora. Aparecia frequentemente pelo recinto do castelo. Cantando e penteando os seus reluzentes cabelos negros como os fiapos da noite com um pente de ouro. Nunca prometeu riquezas a quem a libertasse do encanto. Meiga. Tão doce. Apareceu junto ao rio e entrou no velho castelo de tesouros guardados em baús decorados com ferragens de tempo. Das diversas formas que podia assumir, optou por uma. E escolheu ser gata. Guardiã do local e dos visitantes. A população mais antiga declarou que a Chana nunca se separou do castelo. É lá que dormia a sesta. Todos os dias. Depois, espreguiçava enigmas e ensinava caminhos dentro das muralhas. Visitava as ruínas da antiga igreja matriz e as ruínas do palácio dos alcaides da vila. Espreitava as salinas e assegurava que a terra era uma flor de sal.
No castelo velho, a Chana é uma gata bonita. É guia de profissão. Consta que ali permanecerá eternamente, tecendo idas e vindas e miando maravilhosamente, encantando quem a ouve, qual donzela enfeitiçada.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]