Da água da fonte
Almoçava indiferente ao tempo e à agitação que se deslocava com vozes ofegantes. Dizia que tinha de ser. Que o corpo determinava o sustento, a alma é que se rejeitava o prato. Gastavam-se amiúde em discussões incolores. Vazias de conclusões. Apenas a certeza que a fome que a murchava era interna. Mas refulgia o olhar. Ela é que não via. A senhora que morava na cave, aquela que lhe abria porta sempre que as chaves se fechavam no fundo mala, já comentara a ocorrência. Estava mais magra. Ela sorria. Como se lhe respondesse que sim. Ou não. O que a tornava mais magra era a alma. Essa é que tinha emagrecido. A verdade é que a vizinha que morava na cave nunca lhe perguntou se tinha alma. O que era a alma ou que entendia ela de almas para estar a falar do assunto. Emagrecera e ponto final. E cada vez que não encontrava as chaves, sorria. Decidida a zelar pela serenidade da vizinha.
Almoçava num daqueles espaços que as refeições se compõem de amostras. De forma pouco refletida, colocou no prato uma colher de feijão preto. Depois, dois cubos de melancia. Voltou atrás para recuperar um pouco de farofa. E couves. Adorava couves. Continuou pelo trilho que conduzia à caixa registadora. E pelo caminho apanhou metade de um queijo fresco. E não resistiu a duas rodelas de ananás assado. Talvez grelhado, a diferença não a fez perder tempo. Ela sabia que a alma não queria comer. Era o corpo que lhe exigia o almoço. Por isso, qualquer coisa ajudava. Apenas tinha de gostar e tanto que ela louvava o ananás! Pediu uma garrafa de água e um café. Pagou. E foi sentar-se numa mesa que, ao fundo da sala, lhe parecia afastada de tudo. Queria comer consigo mesma, sem ter de se preocupar com quem chegava. Não queria que nada lhe esboroasse os pensamentos. Com os olhos debruçados sobre o prato, hesitava, sem saber o que fazer. A alma doía-lhe cada vez mais. Era uma dor que que se alastrava. Apenas o corpo reclamava o pão. E lembrou-se da senhora da cave. Tinha que comer. Não tinha vontade nenhuma que a senhora lhe dissesse que estava magríssima ou coisa bem pior que a mulher era dada a epítetos desengonçados.
Almoçava em ter a certeza que comia. Abriu a garrafa da água e bebeu. Ignorou o copo. Era assim que lhe sabia melhor. E lembrou-se de um doce prazer de menina. Da fonte. Da água da fonte. Às vezes do cocho que o avô mantinha pendurado na asa da bilha. Admirável utensílio que morava além da sede que ondeava no azul do rio. O dela. Porque lhe corria no sangue e desaguava no coração. Numa meiga e melodiosa corrente livre de arritmias. Apenas se ouvia o bater ritmado dos remos. De repente, um prato estatelou-se no chão. Um rebuliço e muitos cacos. Parecia que tudo acontecia assim. Com estrondo. Em modo desmoronado. Levantou a cabeça e afastou-se imediatamente. O assunto não lhe dizia respeito. Estava ali para comer. Sustentar o corpo. Perdoar a alma que a flagelava. Todavia, não sabia se seria capaz.
- A almoçar… por aqui?
E tudo se abateu. O estrondo desabou e trepou pelas paredes. Subiu ao telhado. Ergueu-se no ar. Volteou e chegou ao céu.
- Precisa de companhia?...
Claro que precisava. E queria-o. E com os olhos percorreu-lhe o olhar. Perdeu-se no verde, logo depois do sorriso. As palavras assustaram-se. Que responder? Como a descobriu? Como? E a alma agitava-se. E se ele soubesse que no fundo do mar os redemoinhos são naturais?
- Sim… sente-se…
Ele sentou-se.
Almoçavam numa tarde de junho. Num quase restaurante. Num quase almoço.