E se elas falassem? Diriam que sim, na total assunção da personalidade. São palavras que eu sei, mas não digo. Sílabas obstinadas que calam o meu silêncio. Dissonâncias que apunhalam. Mimam. Sonham e gemem comigo num doce e profundo navegar. E vou por aí. Tal nau empreiteira de mares e viagens e desejos e saudade. Outras vezes não. Sinto-as asas ou pétalas ou folhas desfiadas que me engadelham o pensamento. Numa maré de tempo. Que é. Porque foi. E se elas falassem? Eu ficava. Na certeza que há canções que me adivinham. Como o mar que me festeja com poemas. Só não tenho a certeza se este rio é uma canção. Música ou baile. Mas é um poema!
... porque me apetece falar com um tempo que ficou parado. na margem do rio. às vezes, vou até lá. conversamos um pouco. ele conta-me histórias e eu lembro-lhe a imaginação fértil que o faz azul. é nesse instante que me mostra fotografias. nasci ali. quando o hospital ainda não era museu. e ele, com a genoridade das mãos que desenham, decide lustrar os contos da minha mãe. não ficaram mais belos. apenas documentados... e, caso eu não soubesse, lembrou-me que ela ficou preocupada com a aspereza das freiras!
Hoje, vou revelar-te um segredo. Não pretendo que cantes. Que rias ou que me digas que sabes onde fica o desejo. Porque não sabes! Tu nunca ouviste o rio a cantar. Nem te atreveste a socorrer a gaivota deitada na areia. No rio havia um bote. E no bote, umas mãos que me abrigavam dos ventos e das marés. Sobravam as gargalhadas que trepavam pela duna. Um sorriso que me vestia quando pulava para terra. Não sabias. Agora, não quero que o vulgarizes. Ninguém compreenderá que o rio corre ao contrário e que se derruba na foz como a mesma voracidade com que o tempo me rouba os momentos. Porque desconheces que eu sou água e ignoras o que é partir e ficar. A olhar o rio…
Quando era menina, chegar aqui assinalava o início da caminhada. Depois dali, os passos marcavam a cadência e a melancia amenizava a sede. Os fetos exultavam no estardalhaço do verde e enovelavam-se nos pinheiros. A cegonha ficava. Ao ritmo das crias. Na segurança do lugar. E a minha mãe dizia “Chegámos” com a boca cheia de satisfação. Sem que eu percebesse a razão. Porque faltava tanto. Agora entendo que as cegonhas pertencem a um só lugar. Como ela. Estejam onde estiverem. Porque o céu é azul… Sempre lá no alto.
Gosto de caracóis. Porque têm cara. Colo e muito sol. E com eles chega as mãos da minha mãe. Que persistência ela punha para que os meus fossem os mais penteados e arrumados da sala. Depois, ao domingo, saímos em fila pelo carreiro das salinas. Regressávamos a casa. E era o meu pai que os preparava. Nós comíamo-los num abraço profundo. Eu sei que não devia. Talvez, nem tenho bem a certeza. Isto de comer animais dita apreciações divergentes. Confesso que não tenho culpa que a palavra me encha a boca de orégãos. Muito menos que os bichos não revelem habilidades físicas excecionais e que fiquem rapidamente afastados de qualquer êxito desportivo. Incautos e ingénuos acreditam que o Sol nasce para todos. Quem lhes terá dito que deveriam pôr os "cornos" ao abrigo do dito? Não é um assunto pacífico. Não é... E os caracóis têm cornos? Apêndices, antenas... Vai dar no mesmo. E são ranhosos! Um pires de caracóis com duas cervejas, por favor.
Penso em ti. Sem me inquietar como o meu corpo. É ele que se afasta de mim. Ficaram as nódoas de uma dor dividida. Até ao momento em que o Sol não dure até ao final do dia. E os pássaros tenham esquecido a letra da canção. A mesma que nos entendia de cor e trauteávamos junto ao rio… Como se abril fosse um porto de abrigo. No concreto de um abraço. Na agitação do beijo. Agora, eu anoiteço na suavidade das minhas memórias. Entre as estrelas e o céu. As papoilas e o vento, há raízes que se agarram ao chão.
Hoje, parto. Amanhã não. Eu vou em ti. Fiquemos assim. Que a hora seja de neblina densa e quente. E que eu me resuma ao que sei. Não existe o que está para além do meu saber. Por isso, larga as amarras e vamos. Que no ancoradouro pernoite quem desconhece o salgado e doce sabor do trajeto. E da natureza dos nossos corpos. Onde quer que seja.
Partiu no aprumo da decisão. Sempre a andar. Pensou em olhar para trás, mas continuou num ritmo tolhido pela música que ouviram na final da tarde. Quase noite. Quase nada. Depois de uma ilimitada dança a dois. Vestiram-se para expor disposições. Despiram-se. Na pele, ficaram tatuadas lentas coreografias. E todos os tipos de dança. Tombou uma lágrima. Calaram-se os aplausos.
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. [...] Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.
Ensina-me a descobrir as cores e vamos ser caleidoscópio. Alterar o padrão, transformar a sombra. Sejamos horizonte. Céu e terra. E sintetizemos os nossos corpos. Tudo numa cor. Única. Suave e essencial. Vem! Toma a minha mão. Faz desenhos com elas. Pinta-me e descobre-me no calor do deserto. Ao sol. Vem! E percebe-me na nudez das minhas palavras. Abrevia as aparências. Mas vem pintado de fresco. Porque não sei de ti.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]