Queria tanto ser o dia. A noite e o mar. Enfiar o Sol na algibeira e escorregar pelo momento. Pisar o verde. Beber o perfume das flores. Desenhar ramos de papoilas. Trepar aos frutos e comer os figos. Para deixar as árvores agarradas à raiz.
Queria muito acordar abraçada à voz do meu passado. Beijar a manhã contar uma história de encantar. Com duendes pequeninos. E fadas. E o pipilar dos pardais. Parar no crepúsculo que paira na nitidez do quadro que jaz solitário na parede do quarto.
O roxo alastra-se pela alegria do vinho num copo descansado no alabastro do dia. O jornal cai pelo chão amarrotado pelo deserto das notícias repisadas e os teus olhos perdem-se na contemplação do tempo que escorrega pela ladeira ornada de sardinheiras vermelhas. São flores sentadas nos postigos das velhas que se benzem e cantam rezas muito restritas e pendentes nos retratos alinhados em cima das cómodas. São memórias de sombras vagas que lhes definem confortos do luto dos vinhos. E tu seguras as paredes nuas do quarto. Sentes a ausência das lágrimas. Pensas que a pele é insuficiente para absorver o líquido que escorre do copo. E sais. Lá fora estugas o passo. Enquanto eu arrumo os copos já esquecidos do momento. Apenas as sardinheiras exultam o esmero da cor.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]