Há dias em que volto ao rio. Para me tingir de azul. E amornar as lembranças que marinheiram ao sabor das marés. Para me segurar ao verde que cai da serra. Rir. E mergulhar nos afetos. Nas correrias assarapantadas dos caranguejos em direção aos juncos que povoavam a margem. A do lado de cá. Na outra está a cidade. As luzes e uma fonte luminosa. E a voz que embeleza avenida com líricas de amor. No entanto, o meu regresso concretiza-se no bote. O doce encanto do momento! É nele que viajo. Que vou e chego. E vejo. Depois percorro as vozes e os rostos que me seguraram. Estabeleço todos contactos. Ato e desato os laços. Mas é em jeito de reclamação que fico. Porque o rio corre para o mar. Onde tudo é água. Como as lágrimas.
Às vezes, não me lembro por onde caminho. Fico por lá. Mas é fantástico! É indispensável que o meu rosto esteja molhado. Pelo azul da água. Pelo sal. E pelo deserto do silêncio. Assim, vejo tudo nitidamente. Como se fosse já.
Quando vim ao mundo (ovo prodigioso) já ele cantarolava. Fui adolescendo e esse crescer quotidiano alicerçou-se numa distribuição de tudo. No espertar da manhã, no entusiasmo tão inquietante como arrebatado. Superior a relação que se estabeleceu entre nós.
Distinto galo! Jovial na forma, galeria de cores, galante no falar, gaiato nas notas de acordar. Todas as manhãs. Naturalmente. Poeta, também. Daqueles que veneram as palavras e as letras. Que verbalizam as sílabas delirantes de contentamento. Alheado de mundividências. Presente na emoção e na paixão que são a razão de eu permanecer aqui. No modo de dizer erva e estrelas-do-mar e terra e formiga e eu e tu e nós… tamanha sensibilidade! Enorme comoção. Com coisas simples. Com o desadormecer do Sol que se erguia para além dos montes. E chegava com flores. Papoilas. Rubras papoilas.
Triste galo. Enredado na teia do galinheiro. Destino a cumprir, calvário resignado, fado cantado pela manhã. Asas penadas que se derramam pelo galinheiro.
Amor amado, o nosso. Inveja da galinhada, claro. Tratados, crónicas, jornais, romances… Nada! Não houve notícia de amor assim. Na linguagem, na erudição.
Compreendem agora como fiquei? A que peso me entortei? Ao Amor. Traí propósitos e quebrei promessas. Apenas ambicionava ser uma galinha afortunada que rumorejava:
- Bom dia, Amor.
- Talvez um dia…
Embora um dia seja excessivamente tarde… e o muro muito alto. A capoeira é grande. O chão é plano. Sem ímpeto para saltar.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]