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ponto de admiração

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29
Jul22

Em alta-voz [concentração de estúpida vaidade]

Paola

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Acordei, levantei-me e saí de casa com o silêncio na algibeira. Sobras de uma noite calada. Sem o incómodo da Lua. Acredito que, também ela, tenha dormido bem. Não a ouvi a ressonar. Nem consta que tenho caído da cama.

Só quero um café. Quente, sem açúcar. Essencialmente silencioso. Calado, mesmo. Na total adesão à crença de que chegaria para sair do sono que teimava em perseguir-me, lá fui.

Um carro não parou na passadeira. E fui premiada com uma alegre e ruidosa buzinadela, uma saraivada de sonidos. Parva e desnecessária. Eu parei. Irra! Esta gente não entende nada sobre o sono. Exibicionistas!

Persisti, determinada na aromática busca de um café. Sem tumultos. Na esplanada, vivia-se a guerra dos toques. Das vozes e da parvoíce assumida. As pessoas gritavam umas com as outras. Não deveriam conversar? Respeitar os silêncios?

Os telemóveis vociferavam com quem estava ao lado. Sem antes se terem prestado a uma feira de músicas. Vaidosos! Mal-educados! Eu tinha de ouvir um chorrilho de palavras malcriadas? Eram séries ininterruptas de vocabulário singular. Um telemóvel tocou. Insistentemente. E clamava que queria ser atendido. Urgentemente. O dono não parecia ouvi-lo. O assunto da mesa ao lado era-lhe caro. Foi para lá que virou a cadeira. Só que o zingarelho não se calou. Ufa! Que alívio! Tou? Tou? Sim, sou eu. E tu estás acordada? Estou na esplanada. E vieram as alarvidades todas. E o meu café não vinha. Pum! Um homem sentado no interior do café entusiasmou-se com o toque do seu telemóvel. Se calhar, há muito que não o ouvia. Entusiasticamente, não controlou as mãos. A chávena estatelou-se no chão. O pires foi atrás dela. Andavam cacos por todo o lado. Perguntavam-lhe se precisava de alguma coisa. Se estava bem. A esperança de beber um café no sossego do meu sono extinguia-se a cada instante. Estas coisas são mesmo assim. De fora para dentro, entrou um barulho danado. Seria anedótico, se eu já tivesse tomado café. Acredito que teria desatado a rir. E participaria no carnaval. Afastei-me do balcão, para facilitar a ruidosa limpeza.

Dois jovens conversavam animadamente. Gargalhavam. Enquanto exaltavam os feitos. Como não tinha bebido café, não consegui perceber se estavam a gabarolar-se de factos ou se terminavam os sonhos. Devem ter dormido bem, os senhores. Grosseiros! Burgessos! Ordinários! Tentavam falar de mulheres. Tentavam. Quase tive pena deles. Quase, só que a repugnância sobrepôs-se. No meio disto tudo, tudo foi mau. Nada estava bem. Nem podia. O meu café não chegava. Apenas os telemóveis duravam. Uns despiam a intimidade das pessoas. Outros exibiam vídeos burlescos. E havia os que cavaqueavam em alta-voz. Não fosse perder-se algum cochicho. O inevitável deu-se: alhos e bugalhos. Parvos! Não havia necessidade de tantos vulgarismos. Nem perceberam que eu ainda não tinha bebido café. Que praga! Custa assim tanto conversar com palavras limpas e asseadas? Os carros passeavam o roncar dos motores. A velha vociferava que ia perder o autocarro e acenava ao motorista, pedindo-lhe que parasse. Uma mota estacionou, sem que tivesse resistido a umas tantas habilidades que, sem café, não entendi. Decibéis a mais e exagero de roncos e fumarolas. Tanta barulheira evitável.

E dei por mim a pedir às pessoas que se calassem. Que estava assustada com a violência dos impropérios. Que não tinha nada a ver com a vida dos outros. Que tinha direito a beber um café. E acordar com o silêncio que trazia no bolso. Queria lá saber do homem que partiu a loiça ou da desgarrada dos telemóveis! Um café, apenas, please. Qual quê! Exaltaram-se as vozes. Umas mais do que outras. Que chatice! Tantos erros ortográficos naquela escrita esgoelada.

Fui-me embora. E dei por mim a pensar que as pessoas estão a ensurdecer. Coitadas! Só se ouvem aos gritos. Ou então é a vaidade que as move. Deve ser o exibicionismo que as faz falar assim. Ou não é nada disto. Berram para não se ouvirem. Para amortizar as alfinetadas da vida.

Esta gente anda sempre aos gritos. Talvez se deva à abençoada palmada recebida, sem pedir, ao nascer. De imediato, reivindicaram em alta voz o direito à vida. Sem se incomodarem com o sossego dos outros que também acabavam de chegar ao mundo. Uma questão de berço, só pode. E de hábito. De contágio.

Tomei um fabuloso e lindo café, duas ruas abaixo. Ao lado de meia dúzia de vasos com flores. Uns tantos metros de relva e algumas árvores. Suportei o zumbido das abelhas. O pipilar dos pardais. O melro, esse nem se atreveu a colocar a alegria do canto em alta-voz.

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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