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ponto de admiração

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20
Mai08

à janela - devaneios de bonecas

Paola

d O medronhal acordou repentinamente. Sobressaltado. Os medronheiros espreguiçavam-se em movimentos cadenciados. As folhas, uma ou outra, deslizavam lentamente. Acabavam no chão a trautear trovas ao vento. Um soalho negro. Fresco e macio. Um tapete matizado de castanhos, de verdes e alguns amarelados. Aqui e ali, o vermelho-agonizante dos medronhos que não susteve o vento. Repito esta palavra por não conhecer letras para escrever outra. Pronunciei-a vento e soube-me a vento. Não sei outra.

Uma terra fertilizada pela sombra das grandes árvores. Uma terra que eu tinha nas minhas mãos porque a remexia na ânsia de encontrar isco para as ratoeiras. Formigas com asas, agudes para uns agúdias para outros, e uns bichinhos amarelos que se enroscavam numa vã tentativa de escapar, cujo nome já não me lembro. A memória é selectiva. Prefiro recordar os pássaros e os tais bichinhos sem nenhuma ligação entre si. Foi um vício horrendo que perdi no dia em que capturei um pisco vivo. Tratei dele numa gaiola que não tinha o cheiro húmido daquela terra. Não resistiu e eu derramei lágrimas de arrependimento. Nas ratoeiras nunca mais lhes mexi. A partir daí, apenas me tenho cruzado com aquelas que a vida arruma no meu caminho.  

Uma terra, dizia eu, leve e solta. Cheirava a cogumelos silvestres. De todos os tamanhos. Com chapéu e lâminas cor violeta. Sem chapéu. Sem dúvida que preferia os Boletus aereus. Pela combinação de cores, pelo chapéu castanho-escuro, pelo pé castanho. Será por isso que os cogumelos dos livros usam quase sempre chapéu? Bem cedo aprendi a destrinçar os bons dos maus. Por sobrevivência. Por hábito. Todavia aqueles cogumelos eram carrascos de ninguém! Protegiam-se, só isso.

O grito que nos despertou ainda planava no ar. Uma contínua propagação sonora. Os piscos romperam a perenidade das folhas e abalaram. Os pardais insistiram na permanência, unicamente mudaram de medronheiro. As poupas, não as voltei a ver. Os medronhos teimaram em não continuar a amadurecer. Esperaram por mim. Eles sabiam que eu voltaria. Eu voltava sempre. A perturbação de silêncios assentou e doeu. As páginas escritas com caligrafias enternecidas, nas tardes que ali passava, acabavam de ser lidas por alguém que nunca as compreenderia. Por uma questão de linguagem. A minha, a dos pássaros e a dos medronheiros. Dos medronhos também. E dos piscos que trauteavam sublimes melodias.

 

 

- Já vou! Gritei de modo a ser escutada no lado de lá. Não queria intromissões.

 

 

 

A minha mãe persistiu no chamamento. Afinal, eram horas de lanchar. Convenhamos que a merenda vinha mesmo a calhar. Mas permaneci zangada durante algum tempo. Não era justo, resmungava eu, suspender sossegos. Cumplicidades e silêncios. Lanchei no mais profundo mutismo. De tal maneira, que a mãe resolveu compensar-me pelos danos provocados. Tinha uma surpresa para mim. Explicou que tinha dúvidas quanto ao momento da oferta, que não sabia se o deveria fazer. Eu persisti taciturna. Pensei que ela me estava a enganar, a corromper, com falsas promessas. Às vezes as mães têm destas coisas. Fantásticas, as nossas mães. Admiráveis, mesmo quando nos intrujam.

 

Levantou-se da cadeira em que se sentara. Olhou para mim, como quem olha para uma das maravilhas do mundo, e pronunciou qualquer coisa que não entendi. Eu continuava furiosa por ter sido compelida a deixar o medronhal. No exacto momento em que tinha apanhado uma formiga com asas. Uma dávida que tinha sobrado para mim.

Regressou com uma caixa de papelão. Grande. Muito grande, mesmo. Colocou-a calmamente no chão, devagarinho, numa dança mesclada de prazer, desejo e encantamento. Nos seus olhos destapei uma luz mais radiosa do que o usual.

 

 

- Vem ver. É para ti…

 

 

 

Eu fui, apesar de estupidamente despeitada. E vi o que sempre julguei impossível ver. O que acreditava impossível existir ao cimo da terra. O que não sabia que vivia. Assim tão bela. Ali estava, só para mim, uma boneca. Do meu tamanho. Uma perspectiva hiperbólica a mostrar quanto a boneca era, de facto, grande. Uma mulher! A minha mãe já a tinha trajado com um vestido cor-de-rosa, com folhos na saia e com uma fita que se transformava num enorme laço na cintura. Um vestidinho às florzinhas, como ela fazia para mim.

 

A boneca que antes tivera era de trapos. Dos retalhos que sobravam da costura da minha mãe. Paulatinamente, olhei para ela e tomei conta da realidade. Era de papelão, só a cabeça rodava, pés e braços esticados, olhos pintados de azul, boca vermelha, duas pintas fingindo as narinas, cabelo castanho-escuro. Apesar da minha incredibilidade, sorri para ela.

 

 

Hoje, tenho a sensação de ter aberto uma gaveta, dentro de mim, e ter reinventado o seu conteúdo. E dos silos dos meus sossegos reapareceu a saudade.

 

 

 


(imagem de www.stigmas.blogger.com.br/boneca.jpg)

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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