palavra de aluno
Hoje apetece-me subir ao monte e explicar ao céu que a terra não é redonda. Que os rios não correm para o mar. Que o Sado navega ao contrário. E não disse nada a ninguém. Que amanhã é já hoje. Que ontem é passado. Que as raivas se abraçam todos os dias. E finge-se a paz. Que o meu nome não é o meu nome. Porque odeio possessivos. Que o vento é apenas o vento. Não sabe o que faz, o tonto. Que os poetas são enganosos. Eles roubam-me as palavras. Aquelas que eu quero, e sei, para narrar emoções. Ocultam-nas para que eu não as arruíne com admiração e amor. E entoam sentimentos mascarados de engano. Disfarçam-se e querem que eu finja também. Inventam situações para camuflar as palavras, os poetas. Jogam um jogo que não sei jogar. E as palavras escondem-se e mostram-se e calam-se e comunicam e dizem-nos. Os poetas sabem o léxico todo. Sinónimos e contrários. E querem mais. Inventam palavras que emudecem as minhas. O mago da palavra burila-a. Como se fosse de cristal. Tira-lhe a luz. Extrai-lhe as impurezas. Cura-lhe os males. Copia-lhe a beleza. O poeta lança as sortes. Invoca os deuses e as forças da natureza.
No monte, oiço a musa do poeta. Que escreve poemas. Ao som da lira...
O meu gáudio advém do facto de eles se traírem. Baralham o esconder com o mostrar. Só para que eu perca o jogo. E me desnorteie na discórdia de sentidos. E brincam comigo para me deslumbrar. No desacordo de opiniões. Na subjectividade dos olhares. O poeta baralha o que quer mostrar escondendo. O poeta trabalha o mostrar e o baralhar para não ter que dizer o que quer esconder.
Mas não posso! Não sei trepar.
Nota - Hoje, os meus alunos viram assim os poetas. Este texto é quase só deles…
(imagem de www.aleac.ac.gov.br/.../