à janela - por causa dos robalos / parte IV
Contava e ria-se. Uma história gasta no tempo e recontada quase sempre ao serão. Tinha sido o único que ousara entrar em territórios que não eram os seus. Perigosos. Um corpo de serpente, negro, acinzentado. A boca de lábios grossos escondia fileiras de dentes esfomeados e insaciáveis. Um safio quase congro escondia-se na fenda rochosa que ele descobria. O medo cedia à adrenalina gerada pelo desafio. Os outros fugiram. E ria-se. Os seus olhos azuis sorriam, emanavam um brilho com gosto a vitória. Enfiou o braço no buraco. Assim, às escuras. Apostava na coragem, na determinação. Na insensatez, também. Quando se é jovem o sangue corre com celeridade. O bicho estava lá e mordeu-lhe. Defendeu-se. Danado! Mas apanhei-o. Um congro! Enorme. Feroz. Garantia que não sabia como ainda tinha os dedos todos ou mesmo a mão. Quem sabe o braço. Mas tinha! A descrição hiperbolizava-se num tom quase épico. Nunca lhe percebi a dimensão. Nem me interessa. Um safio com vontade de ser congro ou um congro que um dia foi safio... Nem me interessa.
E remava. Num rio azul. Num céu azul. Com uns olhos azuis. Sorriu de novo quando avistou a praia. O bote entrou pela areia. Ele saltou para a água. Colocou o balde em terra. Uma terra segura que substituíra o mar. Depois deu-me a mão.
- Salta.
E eu saltei.
- Lava as feridas...
E eu lavei. Mergulhei na água azul de um rio azul. Com sabor a mar. Como se fosse uma grandiosa pia baptismal. De novo me baptizei. E renasci do alto, pela água purificadora do meu rio. Que não é Jordão, já que não havia arrependimento em mim. O sal roçava as feridas e roubava-lhes o sangue. Cicatrizava-as. O meu pai empurrou o bote para a água. Fixou-o com a fateixa e deixou-o ali. Ancorado! Agarrado a uma âncora. Para que não se desorientasse. Para que não fosse sozinho à pesca. E o bote permaneceu ali ao sabor das vontades do rio.
- Deve haver lume.
- Para quê?
- Para os robalos.
- Pois é!
E foi! Assados em lume ateado pela minha avó...
Hoje, na minha cabeça, há alguns brinquedos vencidos. Bonecas, poucas. Uma máquina de costura e um bote que ninguém salvou. Só porque não podiam, presumo. Nem sempre as âncoras são panaceia para males incuráveis.
Hoje, na minha cabeça, tenho um bote que cessou de navegar. Que naufragou. E um pai que foi com ele. Ambos sabiam a rio. Um rio que se enleou com o mar. E o cerúleo céu pintou-se com ébano. Um desenho sonoro embaciado. Uma fotografia com sabor a naufrágio.
E no céu azul repetiu-se um brado carregado de profunda mágoa.
- Salvem-me!
- Não posso...
E ninguém os salvou... não sabiam.