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ponto de admiração

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10
Jun08

jogar I

Paola

alívio pelas tensões

regras do jogo - parte I

 

 

A estrada atravessa o burgo. Um enorme tapete negro-buraco, ornado por tiras de cinzenta calçada seguia-a num apoio incondicional. Caminhavam lado a lado. Rotas, luzidias, consumidas, moídas, esmurradas. Desniveladas. Titubeantes. Amarrotadas pelas passadas dos caminhantes enfurecidos com a faltar de parqueamento para a carrada.
 
As pessoas agitam-se de cá para lá. Às vezes ao contrário. Apressadas umas, gastas outras. Todas carregam sacos com sonhos. Projectos para o tempo que ainda têm. As que se encostam ao muro da casa das nespereiras tem nas mãos, derrubadas por artrites e artroses, sacos de plástico do supermercado repletos de caixas de maleitas determinadas na consulta da madrugada. Das horas de espera. Na mendigagem de um parecer. Na consulta das nove. Foram acudidos com os olhos presos ao papel das triplicadas prescrições. No saco conduziam promessas de cura escritas em letra muito miudinha. Em bulas que não se cansavam de dar mandamentos, sem entender que eles não as conseguiam ler. Os olhos já estão muito cansados. A cabeça já não dá. O ti João não teve tempo de ir à escola. Começou por podar as vinhas. Mais tarde, estabeleceu-se por conta própria. Um café de bairro. Coisa pequena, mas dava para comer. O ti João nunca pediu muito à vida.
 
Eu sigo pelo passeio do lado direito. Nos meus pés arrasto a canseira do dia e os arranhões que os sapatos, que calçara ontem, me fizeram no dedo grande. É coisa pouca, mas dói. A meu lado, a minha sombra obstina-se em mostrar-me lembranças. Memórias. Temores. Fraquezas. Uma curta-metragem com protagonistas desconhecidos no mundo das fitas de cinema. Por isso, os meus preferidos.
 
E de repente, o pavor alastra-se. Os meus olhos embaciam-se e reflectem o negro do asfalto. Borboletas esvoaçam no meu ventre como se transportassem medo nas asas multicores. Um estremecimento percorre-me o corpo, de um lado ao outro. De alto a baixo. Sinto que na minha cabeça se acha um mundo de vidas.
 
O ti João permanece encostado ao muro branco da casa das nespereiras.
 
- Bom dia! Está melhor?
- Bom dia. Nem por isso… agora tenho…
 
E do saco, que lhe deram na farmácia, puxou pelo rol das doenças todas. As que tem. As que não sabe que tem. As que há-de ter. E nunca saberá que tem.
 
Ao fundo da rua, numa praceta inventada na vontade das crianças, um rapaz joga à bola. Único. Ele e uma bola redonda pintada de branco e preto. Com a marca bem à vista. Os miúdos gostam de etiquetas importantes. Sobretudo nas bolas. Nomes repetidos na televisão. Campanhas publicitárias criativas. Inventadas por criativos publicitários. Seres diabólicos. Predadores de vítimas vulneráveis. O catraio e o ti João. Mal sabem ler. Entretêm-se a ver os bonecos. Os homens da publicidade estudam tudo ao pormenor. Espiam-nos. Cheiram-nos as vontades. Descobrem-nos as vulnerabilidades. São uns inventores de ansiedades. Gerem ruídos e gestos esquisitos para conquistar a nossa atenção. É claro que o interesse vem logo a seguir. Salivamos. O ti João foi a correr questionar o farmacêutico sobre os genéricos. Não percebia que custassem menos se saravam o mesmo que os originais. O boticário lá explicou que a substância activa era, de facto a mesma, que se tratava da marca. O ti João não entendeu nada. O rapaz que continua a jogar à bola explicou-lhe, mas o homem ficou a magicar no assunto.
 
O desejo cresce. Anotamos o nome da coisa no papelito alapado na porta do frigorífico. Com um íman em forma de cenoura. Com um nariz e uns olhos muito grandes. Negros. Junto a um pedaço arrancado a uma folha de um caderno de linhas. Letras grandes, numa caligrafia tosca, mal desenhada, quase indecifrável! Ofensa doméstica aos manuscritos antigos que expõem a beleza feita caligrafia com requinte de arte. O ti João nem sabia que existiam livros desses. O que ele não podia era esquecer-se de tomar o remédio por causa dos bicos de papagaio.
 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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