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ponto de admiração

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13
Jun08

envelhecer

Paola

jpelo alívio das tensões

as regras do jogo - parte II

 

Eu

sigo pelo passeio do lado direito. O Ti João continua amparado ao muro branco da casa das nespereiras. Ainda não entendeu a história dos genéricos. Pede que alguém lha conte outra vez. Não percebe nada de publicidade. Amanhã é sábado, dia de compras. Um, dois, três… acção! Já comprou. É assim que eles abanam o Ti João. Inventam-lhe ansiedades. Ele está velho, cansado, já pouco resiste. Afirma que também é gente. Afiança que não vai desaparecer deste mundo sem provar, nem que seja uma vez. E compra. E come. Uns exagerados! É tudo mentira! Confessa que se não fosse a publicidade não tinha conhecimento de nada. Que a televisão lhe destapa o que a vida encobre. Comprou duas embalagens. Uma comeu-a de imediato A outra colocou-a no frigorífico. O papel amarrotado continua agarrado à porta. Nunca se esquece de tomar os comprimidos a horas.

 

Uma promoção, disseram-lhe. Leve duas e oferecemos-lhe uma bola. Escolha. Aquela branca e vermelha. Escasseava-lhe o corpo para pensar em usá-la. Colocá-la-ia na cozinha. Num cantinho junto à mesa onde estende a sua consciência depois da sesta. Confidente de mágoas inconfessáveis. Por causa da toalha prostrada na mesa da cozinha. Junto à cesta das laranjas, o saco dos medicamentos ostenta alívios de oito em oito horas. Para não se esquecer. Tem que poupar passos e pernas e memória. Uma prenda. E sorria. Já se tinha esquecido da última que recebera. Nem tinha a certeza de ter recebido muitas. Talvez nenhuma. Não valorizava obséquios mercantilizados. Com data condenada. Não exercia presentes marcados no calendário. Gosta da bola porque é vermelha. Linda de ver, concluía sempre que a apreciava.

 

Nunca tive a certeza se o Ti João se referia à bola. Intimidades secretas na vida do homem.

 

O moço insiste num jogo a solo. Num conjunto de envergonhadas técnicas e tácticas que expõem a competência do seu executante. É premente avaliar o rendimento do atleta. Ignoro o resultado. Não lhe pergunto. Ao intervalo vou lá saber. E indago também o nome da equipa com quem está a jogar. Porventura de um escalão secundário. Nunca ouvi falar deles. Não me atrevo a interromper um jogo colectivo imitado na solidão da rua. Deserta de jogadores improvisados no relvado verde-alcatroado-fantasia.

 

O resto da equipa tem falta de comparência. Presumivelmente estão em casa. No quarto ou na sala. De olhos cativos e com mãos amarradas. Feitiço de botões coloridos. De publicidades em hora nobre. Porventura a jogar um jogo de equipa simulado. Programado. Desenhado num ecrã verde-relvado-estádio. Com bruaá ao vivo. Rumores confusos de muitas vozes mescladas com emoções plurais. Com agitações fingidas. Ali, os meninos não despelam os joelhos. Não espatifam as calças de ganga rasgada. Estão sentados. Calados. Sossegados.

 

O futebol do Ti João nunca foi a fingir. Entregou-se de verdade. Ele e os seus parceiros ao domingo de manhã. Confessa que não percebe nada de videojogos. Prefere a rua. A eira.

 

O Ti João está moído. Entra e senta-se. Olha para ela, para a sua bola-prémio. Toca-lhe com a bengala. Um remate de meia distância. Forte. Seco. A culminar uma fantástica jogada individual. A vida é um jogo de solidão. Sem intervalo.

 

E lá conclui que golo marcado com botão de consola não tem cheiro. Nem voz. Nem abraços. É golo e pronto. Não é golooooooooooooooooooooooooooo! Não tem sabor. Não tem não!

 

  

[Fotografia Pedro Jorge Matos]

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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