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ponto de admiração

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19
Jun08

bandeira

Paola

pA mulher entrou no autocarro à pressa. Nos gestos altivos via-se a determinação de não ficar para trás. Nos olhos desvendava decisões acertadas na véspera. Talvez ao jantar. Eventualmente no silêncio da noite. Na cama, ela completara o rol de afazeres. Um conjunto de coisas descritas e enumeradas. Uma relação de actos que não cabe no dia. Por isso, entra noite dentro. Chega ao quarto. À cama onde se aconchega em lençóis em puro algodão liso. De originalidade e qualidade comprovadas em etiquetas formais. Todos os artigos são alvo de rigorosos testes no nosso laboratório, leu no catálogo. Por isso, os comprou. Uma lista rabiscada que cumprirá milimetricamente. Sempre com urgência. Sempre  com ideias fixas.

 

Uma saia evasé na base tapava-lhe os joelhos. Estampado às flores a anunciar o regresso do Verão. E a sua feminilidade. Um padrão actual desenhava umas floritas brancas num fundo cinzento-escuro. Uma camiseta branca, generosa no decote, mostrava um colar de brancas esferas armadilhadas numa corrente de elos prateados. Os pés despiam-se numas chinelas brancas. Uma tira larga resguardava os dedos com unhas vermelhas. Uns atilhos mais finos envolviam-se com os tornozelos. Como a Thunbergia alata da minha avó. Ela não conhecia nome tão erudito. Zelava com muito carinho a sua amarelinha. De tal modo que a trepadeira de magníficas flores amarelas pensava estar acima do bem e do mal. Todavia, todas as manhãs percebia que era escassamente uma menina vulgar. Amarela e Vaidosa. Embora a avó a protegesse com caretas de jardineiro.

 

Cabelos curtos com as pontas alongadas. Assimétricas. Louro-escuro. Hoje, as mulheres pintam o cabelo de amarelo. Ou de vermelho. Um destes dias não há cabelos castanhos nesta terra. Outrora havia. A típica mulher baixa, morena, cabelos pretos ou castanhos, tradicional não se sentia ali. Aquela ostentava bagatelas de modernidade globalizante. Talvez 45 ou 50 anos. Bonita, considerei.

 

Entrou e sentou-se. A mala que transportava ao ombro aninhou-se no colo. Enorme. Branca em harmonia com as sandálias. Com fecho. Com bolsos. Com correntes. Com um lenço atado a uma das alças. Um lenço acanhado. Engelhado e a fingir de bandeira. Por desfraldar. E eu fiquei a perceber como se amava com o coração. Aquele lenço enfezado não era uma bandeira. Não podia ser.

 

Também as janelas expunham nervosas bandeiras. Algumas envergonhadas, já que misturadas com roupa presa no estendal. Outras desencorajadas, já que embrulhadas com cortinados descorados. E mais umas disputavam a terra de recipientes floreados. Pálidas e cansadas. A mala branca permanecia em silêncio sobre os joelhos da mulher. O lenço também.

 

Tempo houve que Portugal se gritava com lágrimas de chorar. Num sossego contido e orientado por gente que se orgulhava sozinha. Era um vocábulo sem amigos. Desconsolado. Isolado. Paciente. Tinha bocas silenciadas mesmo quando entoavam hinos de fé. Tinha mãos duras e cerradas mesmo quando exaltavam a bandeira.

 

Um dia a bandeira desfraldou-se. Cobriu-se de verde e vermelho. Encontrou amigos e disse que sim. Orgulhosa. Vaidosa. Afirmou-se nação. Língua. Povo. País. Símbolo.

 

A mulher deixa o autocarro. Com a mala branca e com um lenço amarrado a fazer de estandarte.

 

A mim acodem devaneios cabisbaixos. Que ao ar livre, a bandeira iça-se ao nascer do sol e arria-se ao pôr-do-sol. Que deve ser erguida com determinação e descida com cerimónia. Em todos os feriados nacionais e datas comemorativas, nos edifícios públicos e de entidades nacionais. Instantes emocionantes, calorosos. É Portugal que se hasteia. E chora de comoção. Pelo lenço não.

 

Tinha que ser o futebol a ressuscitar a minha bandeira? Tinha?

 

Mas a minha bandeira tem as cores do meu país. E a minha bandeira não é do futebol. E o meu país não se reduz a uma bola a jogar. E o fado não conta?

 

Nota - Estou furiosa! Portugal perdeu com a Alemanha. Outra vez! Lá se foi a hipótese de ver a minha bandeira hasteada...um dia será, eles é que não.

 

(A bandeira é de Portugal, porém a imagem é da Internet)

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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