cantinhos
brincadeiras de infância
A minha mãe mandava-me todos os dias para a escola. Independentemente da minha vontade. Para além dos desaforos atmosféricos. A minha mãe queria que eu aprendesse a ser gente. E, todos os dias, eu abalava de casa com uma mala determinada a crescer. E a aprender. No regresso contava-lhe coisas que ela não sabia. Encantava-se. E aprendia também. A mala nunca voltava vazia. Trazia brio e aspiração a ser alguém. Apesar do cartão que lhe construía o corpo. E do enorme fecho ferrugento. Cabia lá tudo. Sonhos, fantasias, brincadeiras, livros, imaginação, lápis. A caneta estava na escola. Um aparo que se molhava no tinteiro estrategicamente enfiado na carteira. Ao centro. Um cabo de pau. Um aparo de aço. A incompetência vinha ao de cima. Corava-me o rosto. Estorvava-me os movimentos. As marcas ficaram-me nos dedos. E nas mãos. Embora se esquivassem às reguadas correctoras. Outras sim, eu lá me ia livrando. Era interdito não ter jeito.
- Atenção, meninas! Isto é muito importante. Antes de molharem a caneta no tinteiro, com cuidado, para não se magoarem, metam o aparo na boca, para o molharem com saliva.
- Na boca?? – Interrogações silenciosas. O poder não era questionado. Obedecido, apenas.
- Se o aparo não for molhado com saliva, da primeira vez que se utiliza a caneta, a tinta não se prende ao aparo e suja as folhas do caderno.
- Todas têm as folhas de mata-borrão?
O mata-borrão impedia a imundície enquanto se escrevia. Mas não nos fazia melhorar a caligrafia. Nem a ortografia. Deve ser por isso que prefiro o lápis. Uma borracha chega. O mata-borrão é memória antiga. A preto e branco, apesar de me sugerir uma cor alaranjada. Escolhos na vida de criança a aprender a ser gente. Muitas vezes tragédia escrita em papel de linhas com dobra do lado direito. Outras tantas comédias inventadas à pressa para que não fossem descobertas. Mais umas que se faziam arte. Os borrões de tinta negra ganhavam asas como as borboletas. Pétalas como as flores. Sorrisos como as pessoas. Mas só às vezes…
E depois vinha o intervalo. Admirável momento delineado sem aparo. Antes com giz. Pedacitos. Sobras subtraídas ao quadro preto que me obrigava a saber dividir. O recreio tinha o jogo dos quatro-cantinhos. Um terreno livre de obstáculos. E a escola estava mesmo ali. Cinco participantes. E mais cinco. Outra vez mais cinco. Também sabíamos multiplicar e somar e dividir brincadeiras. Dava para todas.
No chão marcava-se os círculos em forma de quadrado. Quatro dos participantes ocupavam os círculos. A outra ficava no meio. E a do centro inquiria:
- Dás me o teu cantinho?
- Vai àquele vizinho. Responde, pouco disposta a ceder o lugar. Regras do jogo.
A do meio ia ao vizinho. As outras trocavam de lugar. Tudo num instantinho. Qualquer distracção possibilitava que a do centro ocupasse um dos cantinhos. Se o conquistasse, as posições invertiam-se. A do cantinho ia para o meio. Nenhuma se lembrava do aparo de metal e do tinteiro branco que ficara na carteira. Nem olhava para as mãos deslustradas pela tinta. Simplesmente corriam de um canto para o outro. Jubilosas. Tagarelas.
- Correu bem? Aprendeste coisas novas?
- Sim! O jogo dos quatro-cantinhos.
E lá expliquei. A técnica. As gargalhas. A professora. A caligrafia. A táctica. As borboletas. E disse-lhe que quando fosse grande não queria um jogo de jogar sentada na cadeira. A ver no ecrã. E que ia implorar ao Pai Natal um naco de terra só para mim. Com quatro-cantinhos. E quatro amigas! E um pedacito de giz. A táctica não foi a de Nuno Álvares Pereira. Não se aprendeu a lição. E os quatro cantos que há são insuficientes para tanto infortúnio...